As coleções arqueológicas e museológicas face às reivindicações internacionais: recuperação de objetos rituais, restituição e reinumação de restos mortais

AutorJoão Mitia Antunha Barbosa - Marco Antonio Barbosa
CargoAdvogado. Doutor em Direito pela Universidade d'Angers, França e pela Universidade de São Paulo - Advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo
Páginas65-92
As coleções arqueológicas e museológicas
face às reivindicações internacionais:
recuperação de objetos rituais, restituição
e reinumação de restos mortais
João Mitia Antunha Barbosa*
Marco Antonio Barbosa**
Introdução
É notório que numerosas coleções museológicas atuais, presentes em grande
número principalmente no mundo ocidental, foram abundantemente apro-
visionadas a partir de pilhagem das grandes expedições europeias realiza-
das a partir do século XVI e depois com a nova expansão colonial iniciada
no século XIX. Essas coleções, ou acúmulo material, compostas de toda
espécie de “restos” pitorescos (restos de animais, vegetais, humanos, assim
como de produções de outras sociedades) recolhidos em regiões longín-
quas – assim como exposições posteriores do tipo “exposições coloniais”1
* Advogado. Doutor em Direito pela Universidade d’Angers, França e pela Universidade de São Paulo.
Indigenista da Fundação Nacional do Índio na região da Bacia do Araguaia-Tocantins. mitiaantunha@
hotmail.com.
** Advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor do Curso de Direito e do Progra-
ma de Mestrado em Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo.
mabarbosa@fmu.br
1 BLANCHARD, 2004, p.417. SegundoVincent Dourmec, “As exposições coloniais procuram responder
a essa curiosidade da população. O ano de 1906 assiste a organização de uma exposição em Paris, mas
também em Marselha. O princípio é simples: trata-se de reconstituir espaços destinados à descoberta dos
territórios coloniais. Todos os campos são concernidos: a arquitetura, os modos de vestimenta, o modo de
viver, as práticas rituais… Para tanto, verdadeiras aldeias indígenas são construídas e pessoas são deslocadas
para ‘povoar’ esses ambientes decorativos. Alguns animais característicos acompanham essas populações.
A representação está pronta, os expectadores podem af‌luir, os zoos humanos estão na moda». Ver também
BLANCHARD, 2004, p. 417: A partir de 2002 o termo zoos humanos populariza-se para designar esse
tipo de exibição a partir da obra Zoos humains, escrito por vários historiadores franceses, especialistas no
fenômeno colonial. Em sua acepção histórica e etimológica os zoos humanos correspondem a um período
preciso, do primeiro terço do século XIX aos anos 1930. Esse fenômeno começa com as primeiras exibições
estruturadas e prof‌issionalizadas das populações “exóticas” - entre 1830 e 1880 na Europa e nos Estados
Direito, Estado e Sociedade n.43 p. 65 a 92 jul/dez 2013
66
João Mitia Antunha Barbosa
Marco Antonio Barbosa
(onde f‌iguravam, aliás, exemplares humanos) do século XIX ao XX (so-
bretudo de 1830 a 1940) – garantem tradicionalmente a dupla função
de responder aos fantasmas e às inquietações do ocidente sobre o outro
e sobre o outro lugar, e dão realidade assim como legitimidade à empresa
colonial. Esse mesmo procedimento estratégico, quer dizer, a realização de
um balanço “científ‌ico” sob a forma de exposição pública servirá mais tar-
de a confortar as bases de um discurso racial (ancorado no senso comum)
então em construção2.
1. Colecionadores de despojos: direito e ética
Grande parte dos sistemas jurídicos em vigor após a nova expansão co-
lonial, assim como aqueles em vigor durante o período da “Conquista do
Oeste” nos Estados Unidos, estabelece que “tudo o que é encontrado no
solo pertence, em regra geral, seja ao Estado, seja ao proprietário do terre-
no”3. Essa regra autorizou numerosos exploradores e arqueólogos a escavar
e a se apropriar de múltiplos objetos e esqueletos encontrados em sepultu-
ras autóctones. Nos Estados-Unidos, por exemplo, esses lugares não eram
ainda reconhecidos juridicamente como cemitérios, estando, portanto,
desprovidos de toda proteção enquanto tais. A coleta de toda espécie de
objetos sagrados assim como dos restos humanos autóctones por ocasião
da guerra não declarada do governo americano contra os ameríndios, vul-
garizada e “lavada” com o nome de “Conquista do Oeste”, esteve muito
na moda durante um grande período da história norte-americana. Esses
objetos, bem como “um grande numero de crânios e outros restos huma-
Unidos – e desaparecem progressivamente com as grandes exposições coloniais do entre guerras (Marselha
em 1922, Glasgow em 1925, Paris em 1931, Porto em 1940).
2 É o caso, por exemplo, dos estudos e exibições de restos humanos e de sua morfologia (antropologia
física) ou de exposições humanas propriamente ditas. cf. LANGANEY, 2004, pg. 375: “As coleções devem
ser objeto de organização, depois de inventários, cuja racionalização exige o estudo sistemático dos objetos,
e cuja qualidade melhora se a coleta se faz com objetivos e critérios correspondendo a um questionamento
sistemático. A ordem e a nomenclatura da coleção podem ser arbitrárias, mas também nutrir-se de pro-
priedades dos objetos que a compõem, propriedades que a coleção põe em exibição, conduzindo assim à
elaboração de um discurso científ‌ico sobre esses objetos. A posição tomada pelos gabinetes de curiosidades,
depois pelos herbários e coleções zoológicas na condição das ciências do vivo e da descoberta da teoria da
evolução é assim bem conhecida. Não é mais do que um exemplo entre outros nas ciências físicas e naturais
[...] O século XIX fez entrar o estudo da diversidade física dos humanos no domínio das ciências da nature-
za e da evolução. Tornou-se então coerente constituir coleções de espécimes humanos comparáveis àquelas
dos animais e plantas naturalizadas.”
3 DAES, 1997, p.6.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT