As ações de servidores e administração pública após a ADI N. 3.395: uma questão de incompetência ou improcedência?

AutorElysa Tomazi
CargoBacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas172-203

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Introdução

Como reação ao entusiasmo manifestado por boa parte dos juris-tas após a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, os quais acreditavam que o novo inciso I do art. 114 da Constituição Federal teria inaugurado um novo paradigma da competência1, o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395 no Supremo Tribunal Federal veio a inaugurar um constante movimento limitador da competência trabalhista para o julgamento de causas movidas por servidores públicos2 em face da Administração Pública Direta, autárquica e fundacional.

Referida ação, bastante difundida nos debates sobre a competência da Justiça do Trabalho, foi promovida em 21.5.2005 pela Associação dos Juízes Federais do Brasil - AJUFE e também pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais - ANAMAGES, com a inalidade de questio-nar, além de possível inconstitucionalidade formal na elaboração da EC n. 45/04, a própria interpretação do termo "relação de trabalho", inserido pela emenda no art. 114 da CF:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

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O Ministro Nelson Jobim, presidente da Suprema Corte à época, ao apreciar o pedido de cautelar, entendeu não haver, no texto do art. 114, inciso I, da Constituição Federal - conforme a redação dada pela EC n. 45/04 - inconstitucionalidade formal. Concedeu, assim, liminar com efeitos ex tunc para dar interpretação conforme ao art. 114, inciso I, da Constituição Federal, para suspender, ad referendum:

toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CF, na redação dada pela EC n. 45/04, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a "[...] apreciação [...] de causas que [...] sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.

Na oportunidade em que a decisão do Presidente foi submetida ao Pleno do STF, a Corte afastou, em sede de cognição sumária, o alegado vício formal na EC n. 45/04, mas concluiu que as relações havidas entre servidores públicos estatutários e a Administração Pública não estão inseridas no conceito de "relação de trabalho", razão pela qual a medida cautelar na ADI foi concedida.

A partir desse julgamento, pode-se dizer que o STF - desconsiderando o evidente conteúdo ampliativo do novo art. 114 da CF - optou por manter intacto o entendimento já consolidado nos debates da ADI n. 492, ação em que se decidiu que a Justiça do Trabalho não detinha competência para julgar causas envolvendo servidores públicos estatuários, ainda que o art. 240, e, da Lei n. 8.112/90 tivesse previsto o contrário.

Nada obstante tal opção da Corte, é importante destacar que o Min. Carlos Ayres Britto, ao longo da sessão de julgamento da ADI n. 3.395, suscitou um debate crucial, qual seja, a necessidade de se delimitar o al-cance da liminar concedida, no seguinte sentido: quando o STF exclui da competência da Justiça do Trabalho as causas instauradas entre o Poder Público e os seus servidores com relação de ordem estatutária ou jurídico-administrativa, está tratando as duas relações como sinônimos?

O ministro relator, diante de tal indagação, esclareceu que, no contex-to da ADI n. 3.395, relação jurídico-administrativa seria, sim, sinônimo de relação estatutária, sendo que tais expressões foram retiradas do voto do Min. Celso de Mello na ADI n. 492. Em razão desse esclarecimento, concluíram os ministros, na ADI n. 3.395, que as causas envolvendo servidores temporários seriam de competência da Justiça do Trabalho.

Após essa decisão do Supremo, ratiicando a liminar concedida pelo Min. Nelson Jobim, surgiram diversas manifestações sobre o acerto ou não

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do posicionamento da Corte, seja em relação ao aspecto da inexistência de inconstitucionalidade formal, seja quanto à abrangência conferida à ex-pressão "relação de trabalho". Esse não é, entretanto, o foco do presente artigo, senão a análise dos efeitos produzidos, nos tribunais brasileiros, pela medida liminar proferida na ADI n. 3.395.

1. A construção da incompetência da justiça do trabalho

A partir do contexto exposto, poder-se-ia dizer, em princípio, que o conteúdo da liminar proferida pelo STF não ensejaria maiores controvérsias práticas, haja vista ter sido fundamentada, em regra, nos mesmos termos da ADI n. 492, para assim excluir da competência da Justiça do Trabalho o julgamento de lides envolvendo servidores estatutários de todos os entes da Federação e de suas autarquias e fundações.

É esse o indicativo que se extrai da decisão proferida pelo STF na Reclamação n. 4.317/PA3, poucos meses após o julgamento liminar da ADI n. 3.395, na qual o Min. Relator, Carlos Ayres Britto, ao indeferir o pedido de liminar, esclareceu que, quando do julgamento da ADI n. 3.395, o STF:

assentou o entendimento de que compete à Justiça comum processar e julgar as causas instauradas entre a Fazenda Pública e seus servidores estatutários (agentes públicos investidos em cargos públicos efetivos ou comissionados). Pois bem, sob este visual das coisas, não me parece consistente a alegação de que o processamento das precitadas reclamações trabalhistas na Justiça Obreira contraria o decidido na ADI n. 3.395-MC. Assim me posiciono por-que, à primeira vista, não se me aigura deter caráter estatutário a relação jurídica mantida entre os autores das reclamações trabalhistas em questão e a municipalidade. [...] No caso dos autos, porém, a relação jurídica entre a Fazenda Municipal e os obreiros não é ex vi legis, mas contratual. Basta observar que os contratos constantes dos autos preveem direitos e obrigações do recrutado como, verbi gratia, jornada de trabalho, remuneração, vigência da contratação, etc.

Na mesma esteira, o Min. Menezes Direito, apreciando a Reclamação n. 5.248/PA4, entendeu que o processamento de reclamações perante a Justiça do Trabalho, nos casos em que o autor alegasse ter sido contratado irregularmente pelo poder público, não iria de encontro

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à decisão da ADI n. 3.395, haja vista tratar-se de discussão relativa ao reconhecimento de vínculo empregatício, diverso de relação estatutária ou jurídico-administrativa.

O que se veriica, porém, em análise à jurisprudência do STF, é que o aparente consenso jurisprudencial acerca do tema foi colocado em dúvida pela própria Corte, que, quando instada a se manifestar sobre a violação da medida liminar da ADI n. 3.395, passou a admitir a incompetência da Justiça do Trabalho para casos inicialmente não abrangidos pelo alcance da liminar.

Esse afastamento do que fora decidido originalmente na ADI n. 3.395 ganhou contornos evidentes a partir de duas ações: a Reclamação n. 5.381 e o Recurso Extraordinário n. 573.202.

A primeira delas foi ajuizada pelo Estado do Amazonas, com vistas a suspender ação civil pública em curso na Justiça do Trabalho, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho para anular a contratação de servidores temporários. Travou-se, na oportunidade, um intenso debate, o qual explicitou as claras divergências entre os ministros no que tange à interpretação da liminar concedida na ADI.

O relator, Min. Ayres Britto lembrou, durante o julgamento da Rcl n. 5.381, que embora tenha considerado, de início, caber à Justiça Comum somente o julgamento de casos relativos a servidores estatutários, ou seja, ocupantes de cargos em provimento efetivo ou em comissão, "não é assim que outros Ministros têm pensado".

De fato, o alerta do Ministro tinha razão de ser, pois essa diferença de posicionamento entre os ministros pôde ser evidenciada, a título de exemplo, no julgamento das Reclamações ns. 4.9905 e 4.7626, ambas do ano de 2007. Nessas ações, os Ministros Gilmar Mendes e Carmen Lúcia tiveram entendimento diferente daquele acima defendido por Ayres Britto, pois entenderam que nos casos de contratação para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, Constituição Federal), previstas em legislação do ente público contratante, há uma relação de caráter jurídico-administrativo, não abrangida, portanto, na competência da Justiça do Trabalho.

Diante dessa situação, o Min. Ayres Britto provocou o Pleno, na Reclamação n. 5.381, a debater e delimitar, "de uma vez por todas" - conforme

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suas palavras - a competência nos casos de contratação temporária, asseverando que, segundo seu entendimento, a competência da Justiça do Trabalho só poderia ser afastada nos casos em que os entes federativos editassem a lei autorizadora das contratações, segundo o art. 37, IX, da CF. Esclareceu, ainda, que se essa lei não dispusesse expressamente acerca de direitos e deveres das partes, limitando-se a criar um número de vagas, estar-se-ia diante de uma relação de natureza contratual e, portanto, de competência da Justiça trabalhista.

O principal argumento contrário ao entendimento do Min. Ayres Britto foi exposto, então, pela Min. Carmén Lúcia, segundo qual a contratação temporária é destinada a atender necessidades excepcionais dos entes públicos e, portanto, urgentes, razão pela qual possuem necessariamente caráter jurídico-administrativo. Assim, o regime celetista não seria o adequado para essas situações, especialmente em face da obrigatoriedade do regime jurídico único.

Quanto a esse último aspecto - regime jurídico único - esclareceu a Ministra que após a decisão liminar proferida na ADI n. 2.1357, em 2007, os efeitos da Emenda Constitucional n. 19/08 foram...

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