Artigos 856 a 875

AutorGilberto Souza dos Santos
Páginas644-660

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Gilberto Souza dos Santos

Desembargador no TRT-RS.

CAPÍTULO IV

DOS DISSÍDIOS COLETIVOS

O dissídio coletivo é uma ação constitucional que tem como objeto a solução de conflitos coletivos de trabalho, por meio do estabelecimento de comandos abstratos e gerais, a serem aplicados aos contratos de trabalho de uma categoria profissional ou a um grupo de trabalhadores. Para GÍGLIO e grande parte da doutrina, trata-se de nomenclatura não conhecida em outros sistemas jurídicos e inspirada na Carta del Lavoro italiana1, no que é contestado por PEREIRA2, que nega essa influência3.

A atuação da Justiça do Trabalho na solução dos conflitos coletivos de trabalho, segundo BARROS, surgiu antes da CLT, em 1939, com o Decreto-Lei n. 1.237, que a organizou como órgão administrativo e outorgou competência normativa aos Conselhos Regionais do Trabalho para o julgamento de dissídios coletivos, para criar normas para categoria profissional, em atividade tipicamente legislativa4. Como retrata PEREIRA, esse poder normativo trazia a ideia da implantação do Estado Providência, incorporando o proletariado à sociedade: “Pregava-se uma ação estatal buscando a promoção dos operários, mas sempre prevendo uma solução pacífica para os problemas, assegurando vida harmônica entre empregados e patrões5”.

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Introduzido na Constituição de 1946, seguido nas de 1967, 1969 e 1988, o poder normativo da Justiça do Trabalho ganhou nova feição na Emenda Constitucional n. 45/2004 (EC 45), que deu nova redação ao parágrafo segundo do art. 114 da Constituição de 1988, prevendo no § 1º o uso de arbitragem e, no § 2º, a possibilidade de que, na recusa de qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, seja ajuizado dissídio coletivo de natureza econômica, condicionado ao interesse comum das partes.

As controvérsias sobre a constitucionalidade dessa alteração, quanto à previsão de ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica em caso de comum acordo, ainda não foram dirimidas e o dispositivo está em plena vigência, permitindo um debate ainda acirrado, cuja palavra final deverá ser do Supremo Tribunal Federal, que já reconheceu a constitucionalidade questão e a existência de repercussão geral (Tema 841) no julgamento de incidente no recurso extraordinário ARE n. 6791376, da relatoria do Ministro Marco Aurélio.

FORMALIZAÇÃO DE DISSÍDIO COLETIVO – EXIGÊNCIA DE COMUM ACORDO – ARTIGO 114, § 2º, DA CARTA DE 1988 – EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 – CONSTITUCIONALIDADE – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – AGRAVO PROVIDO NOS PRÓPRIOS AUTOS – SEQUÊNCIA – REPERCUSSÃO GERAL – CONFIGURAÇÃO. Possui repercussão geral a controvérsia acerca da constitucionalidade da previsão de comum acordo entre as partes como requisito para a formalização de dissídio coletivo de natureza econômica, versada no § 2º do artigo 114 da Carta de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, considerado o disposto nos artigos 5º, incisos XXXV e XXXVI, e 60, § 4º, do Diploma Maior. (ARE 679137 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 27/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-188 DIVULG 21.09.2015 PUBLIC 22.09.2015)

Previram alguns doutrinadores o fim do poder normativo da Justiça do Trabalho, transformado em uma espécie de arbitragem voluntária, para LOPES7. Porém, para grande parte da doutrina, na linha ora sustentada, houve não apenas a sua manutenção, como também a recepção da regulamentação já existente em matéria de dissídio coletivo. Essa é a posição, por exemplo, de Carlos Henrique Bezerra Leite, Alice Monteiro de Barros, e Mauricio Godinho Delgado. Para NASCIMENTO, trata-se de uma exigência inconstitucional, que busca inverter o direito de ação, pois a sua eficácia implicaria na transferência do poder de agir do autor para o réu, com a supressão do direito de ação do autor e a submissão do seu direito à opção do réu. Inviabilizaria, portanto, o livre direito de ação, o mesmo que negar o direito de ação8.

Localizam-se decisões de Tribunais Regionais, como os da 2ª e 3ª Regiões seguiram esse entendimento doutrinário9, bem como na Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 4ª Região, retratada em trechos das razões de decidir do acórdão 0018100-21.2010.5.04.0000 (DC), da relatoria da Desembargadora do Trabalho Flávia Lorena Pacheco.

Nada obstante o esboço de uma tendência de alguns Tribunais de conhecimento de dissídios sem prévio acordo, essa posição não é firme em outros tribunais, como exemplifica o julgado oriundo do TRT da 5ª Região, Ac. 20.539/05. Processo 00837-2005-000-05-00-4. Relator: Des. Luiz Tadeu Leite Vieira.

Após uma aparente tolerância do TST com o ajuizamento sem prévio acordo, nos autos do processo TST-DC 150.085/2005, em que admitido como tal o fato de a suscitada ter retirado a última proposta de acordo e manifestado o interesse de aguardar o julgamento do processo, o Tribunal passou a decretar a extinção de dissídios coletivos econômicos com oposição da parte adversa, por falta de condição da ação (TST, AG-DC 167901/2006-000-00-00.9, publ. 27.10.2006).

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Admitindo-se que seja a anuência adversa condição sine qua non para o ajuizamento do dissídio coletivo, pode ser suprido o consentimento negado com abuso de direito, por se tratar de prática ilícita e pela impossibilidade de se condicionar o exercício de um direito à vontade unilateral de uma das partes, conforme os arts. 129 e 187 do Código Civil. Também em caso de recusa de participação na negociação coletiva, sob pena de se impor à parte a submissão à condição puramente potestativa, como previsto no novo Código do Trabalho português, que instituiu o sistema de arbitragem obrigatória, em caso de conduta abusiva da parte adversa, em face da carência de regulação direta sobre o tema no direito pátrio, firme no art. 8º da CLT.

O dissídio coletivo de natureza econômica envolve pretensão de criação de normas ou melhores condições de trabalho, destinadas a vigorar nas relações individuais, para uma categoria profissional, em atividade tipicamente legislativa. Por sua vez, o de natureza jurídica busca a aplicação ou interpretação de normas preexistentes, destinadas às relações individuais de trabalho dos membros das categorias ou empresas envolvidas, conforme o art. 313, ll, do Regimento Interno do TST. SPIES reconheceu a sua recepção pelo texto constitucional, com a EC n. 45/2004, comparando-o às ações anulatórias de cláusulas de convenções coletivas de trabalho10. Para LOPES, “por não ser expressão do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, mas atividade jurisdicional típica (aplicação de norma preexistente a caso concreto para solução de lide), está contido na regra da competência ordinária do inciso I do art. 114 da CF11.

Embora consagrada doutrinariamente, a classificação tradicional nesses dois tipos não abarca dissídios coletivos em que é necessário interpretar normas jurídicas e, ao mesmo tempo, criar direitos ou condições de trabalho para a solução do conflito. Por isso, LEITE refere-se a dissídios coletivos de natureza mista, como os de greve:

[...] o dissídio coletivo de greve (Lei n. 7.783/89, art. 8ª) pode ter natureza meramente declaratória, se seu objeto residir apenas na declaração de abusividade ou não do movimento paredista. Todavia, se o tribunal julgar procedente os pedidos versados nas cláusulas constantes da pauta de reivindicações, o dissídio coletivo de greve terá natureza mista, pois, a um só tempo, a sentença normativa correspondente declarará a abusividade (ou não) do movimento de paralisação concertada do trabalho e constituirá novas relações coletivas de trabalho.12

Os dissídios coletivos ajuizados no país, em geral, são de natureza mista. Como antes da EC 45 não havia importância para a distinção entre os tipos de pedidos formulados, mesmo após, as partes continuaram ajuizando com cláusulas econômicas e interpretativas, em verdadeira cumulação objetiva de ações. Agora, essa condição impõe que cada pedido ou cláusula receba tratamento específico, inclusive quanto a eventuais efeitos da inexistência de comum acordo.

Grande parte das cláusulas propostas em dissídios coletivos tidos como de natureza econômica são jurídicas ou de interpretação, pois visam efetivar direitos fundamentais preexistentes nas relações de trabalho, como as que buscam a manutenção do poder de compra dos salários; os pisos salariais proporcionais à extensão e à complexidade do trabalho; proteção ao mercado de trabalho da mulher; e a redução dos riscos inerentes ao trabalho. Implementam direitos previstos nos incisos V, VI, XX e XXII, do art. 7º da Constituição Federal, e são propriamente de natureza jurídica. Igualmente, as que pedem acesso de dirigentes sindicais às empresas para atividades sindicais e a liberdade de participação em reuniões sindicais, com a efetividade de princípios e preceitos do art. 8º da Constituição e das Convenções 98 e 154 da OIT.

Agora, com a introdução da expressão comum acordo, o TST, não se apercebendo dessa cumulação de pedidos de naturezas diversas, tem extinguido ações de dissídios coletivos tidos como de natureza

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econômica, sem ressalvar as cláusulas jurídicas. É relevante a distinção, pois não se cogita da extinção de pedidos próprios de dissídios coletivos de natureza jurídica. Havendo cumulação de pedidos em dissídios coletivos de cláusulas jurídicas e econômicas, se for o caso de censurar-lhes pela ausência de comum acordo, podem ser extintos sem resolução de mérito apenas os pedidos de natureza econômica.

A natureza jurídica do dissídio coletivo não se desnatura por pedido de criação de meios para implementação de direitos. É inerente à prestação jurisdicional o caráter criativo e constitutivo da interpretação e, até mesmo, os reflexos econômicos advindos das decisões judiciais, pois, como ensina ALEXY, “nenhum dador de leis pode criar um sistema de normas que é tão perfeito que cada caso somente em virtude de uma simples subsunção da descrição do fato sob o tipo de uma...

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