O Direito de Arrependimento no Âmbito do Comércio Eletrônico

AutorNewton de Lucca
CargoMestre, Doutor, Livre-Docente, Adjunto e Titular pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação
Páginas11-40

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I Considerações introdutórias: o advento da sociedade digital e suas implicações no pensamento jurídico atual

E inquestionável que testemunhamos, no mundo contemporâneo, a ocorrência de profundas modiicações, não somente no plano social, como também no campo político e econômico. Vemos surgir uma nova era para a humanidade, caracterizada pelo advento de inovadoras tecnologias da informação, que transformaram de modo substancial os canais pelos quais dá-se a declaração da vontade humana.

No capítulo 2 do Livro Verde produzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, em setembro de 2000, podem ser lidas as seguintes considerações: "Assistir à televisão, falar ao telefone, movimentar a conta em terminal bancário e, pela Internet, veriicar multas de trânsito, comprar discos, trocar mensagens com o outro lado do planeta, pesquisar e estudar são hoje atividades cotidianas, no mundo inteiro e no Brasil. Rapidamente nos adaptamos a essas novidades e passamos - em geral sem uma percepção clara nem maiores questionamentos - a viver na Sociedade da Informação, uma nova era em que a informação lui a velocidades e em quantidades há apenas poucos anos inimagináveis, assumindo valores sociais e econômicos fundamentais. Como essa revolução vem acontecendo? Que consequências tem trazido para as pessoas, as organizações e o conjunto da sociedade? São perguntas cuja importância mal percebemos e que, na maioria das vezes, não nos preocupamos em responder."

Em decorrência do aparecimento dessas novas tecnologias, passamos a nos deparar com aquela que é, repetidamente, chamada de Sociedade da Informação ou Sociedade Digital e sobre a qual cumpre fazer algumas indagações.

Conforme assinala José de Oliveira Ascensão1com a propriedade de sempre, a sociedade da informação não seria, propriamente, um conceito técnico, parecendo mais um mero slogan, acrescentando-nos que "melhor se falaria até em sociedade da comunicação, uma vez que o que se pretende impulsionar é a comunicação, e só num sentido muito lato se pode qualiicar a mensagem como informação".

De minha parte, inspirado fundamentalmente nas ideias do ilósofo Pierre Lévy, gostaria de vislumbrar, na era que se acha em formação com o advento das novas tecnologias, não apenas uma sociedade da informação, mas uma verdadeira sociedade do conhecimento2.

Discorrer sobre temas que estão imbricados nessa nova sociedade - seja ela denominada digital, da informação ou do conhecimento - constitui uma

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tarefa extraordinária. O jurista, com efeito, é um ser refratário a toda inovação. Falar em relações entre direito e cibernética não desperta nele nenhum entusiasmo, salvo para aqueles que sejam absolutamente conscientes da radical historicidade do fenômeno jurídico a que se referiu, com propriedade, Pérez Luño3.

Em razão dessas inovações tecnológicas, um novo tipo de consumidor nasce no mercado de consumo - o do consumidor internauta -, tornandose necessária a criação de normas com o objetivo de protegê-lo, como já se mostra tão patente no cenário da economia tradicional, e de forma mais acentuada com relação a esse novo personagem já que ele, aventurandose por "mares nunca d’antes navegados", teve a sua vulnerabilidade acentuada4.

Por sua vez diz-nos o professor argentino Jorge Mosset Iturraspe: "Si ser jurista es ‘saber la respuesta que la sociedad necesita’ para una mejor convivencia, hallar el remeedio adecuado para los males o carencias, detectar abusos o iniquidades es aqui, en el Derecho del Consumidor, donde debemos encontrarnos. Todos somos consumidores y todos, aunque en medidas muy diferentes, sentimos la necesidad de respuestas apropriadas"5.

Consequentemente, essas "respostas apropriadas" exigem do jurista de vanguarda6não apenas uma presença de espírito ininita, mas também um sentido verdadeiramente espantoso de resposta para dar conta dessa nova realidade que ora se apresenta na sociedade moderna.

Para o universo do direito, e não poderia ser de outra forma, vem à tona a questão de constituir ou não um ramo autônomo esse novo campo de investigações decorrente do fenômeno cibernético. Ricardo Lorenzetti, ministro da Corte Suprema da nação argentina e professor titular de contratos civis e comerciais da Universidade de Buenos Aires airma, in verbis7:

"Discute-se se surgirá uma disciplina autônoma já que toda vez que surgiu uma nova tecnologia apareceu também a necessidade de reunir seus problemas em torno de um corpo cognitivo especíico. Nessa área de conhecimentos começou-se com a noção de ‘Direito Informático’, o qual dá relevo aos computadores e ao processamento da informação, mas atualmente tem-se difundido a ideia de um ‘Direito do espaço virtual’ que pode abarcar muitos outros aspectos", citando, nesse último caso, a noção de Cyberspace Law, bastante difundida nos Estados Unidos da América8.

Na sociedade atual tudo parece ocorrer de forma mais célere e dinâmica, parecendo estar caracterizado um processo conhecido por aceleração histórica9.

Com efeito, não será difícil observar-se que a progressão geométrica do

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desenvolvimento tecnológico é acompanhada pela efetiva diminuição do tempo que se interpõe entre uma descoberta cientíica e sua correspondente exploração industrial. Sabe-se que esse tempo foi de 112 anos para a fotograia, 56 para o telefone, 35 para o rádio, 15 para o radar, 12 para a televisão, 6 para a bomba atômica, 5 para o transistor e de apenas 3 anos para o circuito integrado10.

Por outro lado, nossos antepassados levaram muito tempo para que trocassem o sal pelo trigo, dos quais serviam-se como moeda, para aprender com os sumérios que, para essa mesma inalidade, revelava-se mais adequada a utilização do ouro, da prata e do bronze. Depois foram os chineses que nos legaram, com o mesmo propósito, a possibilidade de uso de papel e tinta. Modernamente, sabemos que o cartão de plástico magnetizado cumpre razoavelmente essa função da moeda, mas a sua provisoriedade é mais do que evidente...

Gostem ou não os saudosistas de ver seu precário conhecimento empalidecer precocemente em razão de um devir que se aigura cada vez mais galopante, mas a tarja magnética também tende a envelhecer muito rapidamente com o advento do chip microprocessador, e tal sucedâneo não será nenhum outro modismo efêmero ou inconsistente. Os smart cards, ou cartões inteligentes, como devem ser designados no idioma pátrio, irão substituir naturalmente os cartões de tarja magnética, quer pela maior segurança que propiciam, quer pela sua capacidade de gravar e armazenar maior quantidade de informações. Caminhamos, assim, para a adoção da moeda virtual11, embora ainda não muito usada aqui no Brasil, conforme anotado pela professora Cláudia Lima Marques12.

Se os que têm por obrigação pensar o direito não atentarem para essa progressiva transformação dos meios de pagamento, causada pelo avanço tecnológico contemporâneo, nossa ciência distanciar-se-á indesejavelmente, cada vez mais, de sua nobre missão antropocêntrica de servir ao homem, tal como a concebo13.

Assim sendo, por mais expressivas que sejam as diiculdades para que abdiquemos de nossos tradicionais esquemas de pensamento, é necessário fazê-lo o quanto antes.

Para tanto, não serão suicientes, por certo, as virtudes do discernimento intelectual e do acendrado amor à pesquisa jurídica. Tornar-se-á necessária,

O jurista, com efeito, é um ser refratário a toda inovação

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igualmente, grande dose de coragem, pois a petriicação do pensamento em nosso meio, fortemente fomentada pelas pequenas vaidades acadêmicas, conspira consideravelmente contra todo o vigor de ideias, onde quer que estas possam se encontrar...

O mundo contemporâneo parece ter se conscientizado - e Spengler, em profética visão, nos demonstra - de que o fato é que o futuro já não nos chega mais na mesma velocidade de outrora nem do mesmo modo14. O novo e galopante ritmo da história haveria de colocar em crise o nosso próprio conceito do tempo histórico.

Venho assinalando, de forma até insistente, que a cultura ocidental passou a ter, desde o inal do século XVIII, uma nova consciência do tempo, começando a História a ser vista e estudada como um processo universal gerador de problemas. Diz Habermas, em passagem que sempre gosto de citar, que, nesse processo, "o tempo é entendido como um recurso escasso para a superação prospectiva dos problemas que o passado nos legou"15.

A despeito de todas as inesperadas circunstâncias que nos atropelam e nos confundem, o certo é que se torna preciso seguir em frente sem receios, na busca incessante do saber, ainda que o nosso tempo, talvez mais do que qualquer outro, nos tenha mostrado as incríveis limitações do conhecimento cientíico.

Já tive a oportunidade de destacar, não faz muito, fundamentalmente calcado nas ideias do ilósofo francês Georges Gusdorf16, as consequências para o comportamento humano dos prodígios do progresso cientíico:

"Essa técnica triunfante parecia fornecer ao homem moderno uma espécie de segunda natureza, transformando-o no chamado homo circulator, capaz de ir a todos os lugares sem lograr, contudo, estar em parte alguma. A teoria desse homo circulator, em última análise, é considerar a mobilidade como um valor em si mesma e, além disso, pela abolição do espaço-tempo da modernidade e da supressão dos horizontes de deslocamento, transformar-se num valor dominante na estranha axiologia da civilização contemporânea, contribuindo ainda mais para a desagregação da imagem do mundo que os nossos antepassados tanto lutaram para salvaguardar."

A civilização contemporânea - como, de resto, todas as outras que marcaram a história da Humanidade - tanto apresenta progressos...

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