Arquivamento e classificação em 'Canhota, bagunça, hidrelétricas', de Nuno Ramos

AutorPaulo Caetano
CargoUFMG
Páginas141-158
http://dx.doi.org/10.5007/1984-784X.2012v12n18p141
141
A
RQUIVAMENTO E CLASSIFICAÇÃO EM
CANHOTA
,
BAGUNÇA
,
HIDRELÉTRICAS
”,
DE
N
UNO
R
AMOS
Paulo Roberto Barreto Caetano
UFMG
paulo-caetano@ig.com.br
Resumo:
O texto “Canhota, bagunça, hidrelétricas”, de Nuno Ramos, presente no livro Ó,
parece trazer uma reflexão acerca dos processos de classificação e possíveis relações
que eles estabelecem com uma moldagem da experiência humana. Nessa “história”, as
cores, os tamanhos (e outros critérios), usados nos arranjos das gavetas e nas
categorizações dos arquivos, são tentativas de organizar o caos do entorno. Tais
desarranjos são feitos pela espontaneidade desajeitada da mão esquerda (por não
possuir o adestramento da direita) e acabam por engendrar uma experiência humana
que é fruto, dentre outras coisas, desses procedimentos de ordenação. À luz de Michel
Foucault, este artigo, portanto, discute como tais efeitos de ordenação se dão no texto
de Ramos.
Palavras-chave: arquivo, classificação, enumeração.
Abstract:
The text “Canhota, bagunça, hidrelétricas”, by Nuno Ramos, from the book Ó, seems
to bring a reflection of classification processes and possible relationships they establish
with a casting of the human experience. In this "story", colors, sizes (and other criteria)
used in the arrangement of drawers and the categorization of files, are attempts to
organize the chaos of the surroundings. Such breakdowns are made by the clumsy
spontaneity of the left hand (due to the lack of the right hand training) and then
engender a human experience that is the result, among other things, of these ordering
procedures. In the light of Michel Foucault, this paper therefore discusses how such
ordering effects occur in Ramos’ text.
Keywords: archive, classification, enumeration.
http://dx.doi.org/10.5007/1984-784X.2012v12n18p141
142
No fundo, queremos transformar o grito áspero da matéria e dos formatos num baralho
numerado em que as cartas se dispersam apenas para retornar a nós em seguida, em tediosas
canastras.
1
1. Introdução
O livro Ó, de Nuno Ramos, foi publicado em 2008 e no ano seguinte arrebatou o
prêmio Portugal Telecom. O autor publicou ainda Cujo, em 1993; O pão do corvo, em 2001; O
mau vidraceiro, em 2010, para citar alguns.
A versatilidade desse compositor, artista plástico e escritor não reside apenas na
variedade de suas profissões. Os textos que formam Ó não permitem os rótulos redutores
de “contos” ou “ensaios”. Sua amplidão de temas, seu tom que tangencia o ensaio, suas
sondagens absurdas colaboram para que fique impossível domá-lo num gênero somente.
Outro aspecto recorrente nessa publicação de 2008 diz respeito a passagens sutis
entre os temas abordados: tendo normalmente um arrolamento como título, o enunciador
passa de um assunto a outro (por mais díspares que sejam) de uma maneira fluida, que
pode passar despercebida ao leitor menos atento.
Em “Canhota, bagunça, hidrelétricas”, por exemplo, é possível ver já no título o
caráter aparentemente díspar dos temas desse “conto ensaístico”. É com muita fluidez que
o “narrador” passa das inabilidades da mão canhota até chegar aos acidentes naturais que
uma hidrelétrica comporta – sempre tangenciando a bagunça que a mão esquerda faz.
Assim, ele relaciona tal ruína a um desejo (às vezes de cunho insólito) de ordenação, cujo
objetivo seria se esquivar do caos por meio da organização.
Nessa “história”, as cores, os tamanhos (e outros critérios), usados nos arranjos das
gavetas e nas categorizações dos arquivos são tentativas de organizar o caos do entorno.
Algumas dessas desordens são feitas pela mão esquerda (espontânea e desajeitada), por não
possuir o treinamento da direita, e acabam por gerar uma experiência humana que é
produto, dentre outras coisas, desses artifícios usuais de ordenação: “Assim, associações,
similitudes e combinações imprevistas, a estranha gramática que une uma camada de poeira
às listras de um veludo, são substituídos pelo alinhamento cientificista de nossas gavetas.”
2
.
É devido a sondagens como essa que Ó é chamado de “vasta fantasia antropológica” ou
uma “crítica da percepção” ou ainda “uma meditação sobre a ruína”. Essa impossibilidade
de redução leva José Antonio Pasta a fazer tais brincadeiras na orelha do livro,
1
Ramos, Ó, p. 114 - 5.
2
Ramos, Ó, p. 115.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT