O argumento a partir da justiça, ou como não responder ao positivismo jurídico

AutorJoseph Raz
CargoProfessor de Filosofia do Direito e Membro Honorário da Faculdade de Balliol, Universidade de Oxford, Inglaterra; Professor Visitante da Faculdade de Direito de Colúmbia, Estados Unidos da América
Páginas39-55

    Artigo publicado originalmente em inglês com o título The argument from justice, or how not to reply to legal positivism. Traduzido com a gentil permissão do autor e do editor George Pavalakos.

Tradução Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

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O professor Robert Alexy escreveu um livro cujo propósito é refutar os dogmas básicos de um tipo de teoria do direito que “há algum tempo se encontra obsoleta na ciência e na prática jurídicas”. A citação é do Tribunal Constitucional Federal alemão em 19681. O fato de o professor Alexy não mencionar quaisquer escritos em inglês na tradição do positivismo jurídico depois da obra de Herbert Hart, The concept of law (1961), pode sugerir que ele compartilha do ponto de vista do Tribunal2. O livro por si só pode, contudo, ser uma evidência do contrário. Ora, porque se esforçar em algo que já nasce fadado ao insucesso? Porque escrever um livro para refutar uma teoria totalmente desacreditada? Talvez Alexy tenha tido apenas falta de sorte. O irromper de reflexivos, sugestivos e interessantes escritos na tradição do positivismo jurídico tomou sérias proporções apenas nos anos que se seguiram à publicação de seu livro, quando Waldron, Marmor, Gardner, Leiter, Shapiro, Murphy, Himma, Kramer, Endicott, Lamont, Dickson, Bix e outros autores se juntaram àqueles que fizeram importantes contribuições à teoria do direito na tradição positivista nos anos anteriores à publicação original do livro de Alexy: Lyons, Coleman, Campbell, Harris, Green, Waluchow e outros, os quais continuam entre os principais colaboradores da teoria do direito na tradição positivista. É uma pena que nada nesses escritos tenha influenciado os argumentos do livro.

Talvez esse pesar esteja fora de lugar. Afinal “positivismo” na teoria do direito significa, e sempre significou diferentes coisas para diferentes pessoas. O que Radbruch, um dos ídolos de Alexy, quis dizer quando ele se viu pela primeira vezPage 40 como um positivista jurídico e então reconsiderado que não era o mesmo que “positivismo jurídico” significa na Grã-Bretanha (e, atualmente, também nos Estados Unidos) entre aqueles que se engajam na reflexão filosófica sobre a natureza do direito. Talvez Alexy esteja se dirigindo apenas à audiência alemã, e refutando, ou pretendendo refutar, teorias jurídicas de um tipo identificado na Alemanha como “positivismo jurídico”. Talvez ele pense que suas referências a Hart mostrem que ele não pretende seguir aquele caminho.

Meu objetivo aqui é, todavia, razoavelmente claro. Meu propósito principal é explorar se algum dos argumentos de Alexy entra em rota de colisão com algum dos pontos de vista que eu tenho defendido. Subsidiariamente, tenho como objetivos: primeiro, tornar mais claro o porquê de Alexy dizer que o que ele entende por positivismo jurídico não é o que se entende no mundo inglês, por isso alguns dos argumentos de Alexy não encontram baliza; segundo, testar e tornar mais claros alguns de seus argumentos que considero, ao menos inicialmente, um tanto quanto obscuros.

Identificando o positivismo jurídico

De acordo com Alexy, uma característica comum a todas as teorias jurídicopositivistas é “a tese de separação que diz que o conceito de direito está por ser definido como aquele [sic] não engloba elementos morais. A tese de separação pressupõe que não há uma conexão conceitualmente necessária entre direito e moral. [...]. O grande positivista jurídico Hans Kelsen capturou isso na assertiva, ‘então o conteúdo do direito pode ser absolutamente nada’3”.

É uma pena que o único suporte para a sua alegação seja uma afirmação de Kelsen a qual é manifestamente falsa em relação à própria teoria de Kelsen. Já que Kelsen vê o direito como um conjunto de normas que direcionam os tribunais a aplicar sanções pela quebra de deveres4, segue-se: (a) que o direito pode consistir apenas de normas, (b) que ele deve direcionar tribunais, (c) que ele deve estipular a aplicação de sanções, e (d) que sua aplicação deve ser condicionada a certas condutas. Tudo isso são, conforme a teoria de Kelsen, restrições necessárias sobre o conteúdo do direito. Talvez elas não violem a tese de separação do modo como Alexy a entende, mas elas certamente não lhe dão suporte, e, como eu disse, elas mostram que a afirmação de Kelsen citada por Alexy é falsa a partir do próprio Kelsen.

Eu devo explicar porque a assertiva de Kelsen citada por Alexy não embasa, mesmo se verdadeira, a tese de separação. Mas antes, é preciso que ponderemos o que tal tese é. No percurso de clarificar a tese, a irrelevância que a alegação de Kelsen tem para ela se tornará mais clara. A tese, de acordo com Alexy, diz que “o conceito de direito está por ser definido como aquele [sic] não engloba elementos morais” – presumivelmente na definição. E, como a definição é uma proposição, os elementos aos quais se refere devem ser conceitos. Portanto, a tese é de que não há conceitos morais na definição de direito.

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Dado que está sujeito a grande debate o que são conceitos morais, essa é uma maneira nada promissória de identificar o positivismo jurídico. Vários conceitos normativos e avaliativos são comuns aos discursos morais e não-morais. Há razões, deveres, virtudes, ofensas, regras, direitos, e outras coisas que são morais e nãomorais. Há dificuldades em demarcar o reino da moral, e em distinguir entre ele e o domínio do não-moral5, o que nada mais é que uma razão de eu ver que há muito pouco a se ganhar na tentativa de identificar que conceitos são morais. Meus próprios escritos sobre direito podem realçar outro problema nesse modo de entender a tese de separação. Eu mantenho que necessariamente o direito alega ter autoridade legítima e que essa alegação é moral6. Trata-se de uma alegação moral porque seu conteúdo contém a asserção de um direito a admitir direitos e impor deveres em questões relacionadas a aspectos básicos das vidas das pessoas e suas interações com os outros. Isso significa que eu acredito em uma definição do direito que inclua conceitos morais? Não necessariamente. Até onde eu me recorde, eu não forneci uma definição de direito. Eu estava apenas discutindo sobre algumas de suas características necessárias.

Foi Hart quem convenceu muitos teóricos do direito que a concentração sobre a definição do direito em alguns escritos antigos sobre a natureza do direito é improdutiva. Ele escreveu sobre isso em sua conferência inaugural em 1953, e novamente em The concept of law em 19617. Sem entrar em detalhes, definições normalmente visam demarcar os limites do que está a ser definido, identificar a posse de um grupo de características necessárias e suficientes para o conceito definido se aplicar ao seu possuidor. Três conclusões relevantes surgem: primeiro, que conceitos podem admitir mais de uma definição (noutras palavras, se pode haver mais de um grupo de condições necessárias e suficientes para a aplicação do conceito); segundo, indubitavelmente alguns conceitos não têm definições, ou pelo menos não são conhecidas definições desse tipo, de modo a inexistirem características conhecidas ou que possam ser conhecidas e instrutivas que sejam condições necessárias e suficientes para sua aplicação; terceiro, inexiste justificativa teórica que foque na definição de conceitos a não ser em suas características necessárias, algumas das quais podem não fazer sentido numa definição sensata. Pelo menos, a questão aparece: que há de especial sobre as características que fazem parte de uma definição? Devem elas estar no cerne da tese de separação, ao passo que outras características necessárias dos conceitos não8?

É melhor reformularmos a tese de separação para enfrentar essas pontuações. Possivelmente isso poderia ser a proposição de que a teoria pertence à tradição do positivismo jurídico se, e somente se, mantiver que as características necessárias doPage 42 direito podem ser postas sem o uso de quaisquer conceitos morais. Por essa tese, meus escritos sobre a natureza do direito não pertencem à tradição do positivismo jurídico, já que eles atribuem ao direito, como uma característica essencial, a reivindicação por uma autoridade legítima, e o conceito de autoridade legítima é um conceito moral.

Eu não me preocupo se meus pontos de vista são classificados com o positivismo jurídico, como eles usualmente são, ou não. Eu acredito que a classificação de teorias do direito como jurídico-positivistas ou não, que é o que embasa a estrutura do livro de Alexy, é inútil e está propensa a enganar. E, de certo modo, meus comentários aqui pretendem ilustrar esse ponto. Contudo, eu não conheço alguém que pense que o fato de uma teoria sobre a natureza do direito fazer alegações que podem apenas ser feitas com o uso de conceitos morais dizer que isso não pertence à tradição jurídico-positivista.

Sem dúvida, Alexy não compreende a tese de separação para dizer que o que ela significa lhe fornece a declaração de seu conteúdo. Como nós vimos, ele acredita que “a tese de separação pressupõe que não há uma conexão conceitualmente necessária entre direito e moral”. Todavia, a proposição de que a definição de direito não contém elementos morais, isto é, pode ser articulada sem o uso de conceitos morais, não pressupõe que não há uma conexão conceitualmente necessária entre direito e moral.

Eu novamente utilizarei de meu próprio trabalho para ilustrar o ponto. Em Practical reason and norms9 eu discuti (reformulando o ponto de um modo que eu agora acho mais claro e exato) que mesmo se todas as características essenciais do direito podem ser postas sem o uso de conceitos morais, pode ser o caso de que aqueles aspectos implicam em algum mérito moral. Em momentos diferentes, quando ao repetir esse ponto eu invoquei as teorias de Lon Fuller e de John Finnis, não que, como possíveis exemplos...

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