Arbitragem nas sociedades anónimas: aspectos polémicos da vinculaçao dos acionistas novos, ausentes, dissidentes e administradores à clausula compromissória estatutária, após a inclusão do § 3a ao art. 109 da lei 6.404/1976 pela lei 10.303/2001

AutorMarco Aurélio Gumieri Valério
Páginas164-176

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1. Introdução

Na esteira da difusão do uso da arbitragem como meio de solução de conflitos a partir do advento da Lei 9.307, de 23.9.1996, a reforma da Lei 6.404, de 15.12.1976, operada pela Lei 10.303, de 31.12.2001, previu no art. 109, a partir da inclusão do § 3-, a possibilidade de acionistas, administradores e a própria companhia recorrerem ao juízo arbitrai por meio de cláusula compro-missória inserida no estatuto social.

Como bem destaca Marcelo Bertoldi, já era possível a utilização da arbitragem para solução de disputas societárias mesmo antes da reforma da Lei das S/A. A introdução do § 3° ao art. 109 denotou a intenção do legislador de realçar a possibilidade de utilização desse instrumento para a solução de litígios.1

A velocidade com que as transações se realizam, as mercadorias circulam e a riqueza é transferida exige que eventuais conflitos sejam solucionados em tempo hábil. Não é raro verificar que a tutela juris-dicional tardia, ainda que a decisão seja favorável à parte demandante, lhe causa dano irreparável, tornando inalcançável o ideal de justiça.2

Assim, da mesma forma que para os empresários a arbitragem apresenta-se como um instrumento de consonância com o dinamismo da economia de mercado, o mesmo ocorre para as sociedades empresárias. O instituto pode ser uma alternativa vantajosa tanto à companhia quanto a seus acionistas ou administradores, que poderão resolver seus conflitos internos,3 cada vez

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mais frequentes e complexos, com a ajuda de especialistas no objeto da contenda.4

Todavia, são várias as dúvidas levantadas quanto à possibilidade de o disposto no § 3° do art. 109 da Lei 6.404/1976 alcançar seu real objetivo, e em que medida o fará - ou seja, se a cláusula compro-missória inserida no estatuto social será considerada vinculante para a sociedade e para todos os seus acionistas, inclusive para aqueles que tenham divergido quanto à sua adoção, ou não tenham tomado parte na deliberação que a tenha aprovado, seja porque ausentes ou porque tenham adquirido o status de acionistas em momento posterior.

O ressurgimento da arbitragem no ordenamento pátrio tem a difícil missão de superar a inércia evolutiva advinda de décadas de ostracismo normativo. Esse estudo tenciona contribuir com sua reabilitação, principalmente no que tange à sua utilização para a resolução de conflitos internos na sociedade anónima.

2. Vinculação do novo acionista

"Novo acionista" é aquele que integra a sociedade anónima em momento posterior à sua instituição, geralmente pela aquisição de ações.

Pela rapidez com que o negócio é realizado - em tempo real, a compra é fechada, na maioria das vezes, sem maiores formalidades por parte do adquirente. Assim, é possível que o novo sócio não tome contato algum com o estatuto social da companhia.

Nesse documento, todavia, pode haver uma cláusula compromissória pela qual a sociedade anónima e seus acionistas comprometem-se a resolver futuros litígios, advindos das relações societárias, por meio da arbitragem.

A dúvida inicial gira em torno da vinculação do novo acionista a essa convenção, tendo em vista seu alegado desconhecimento do estatuto social.

2. 1 Manifestação de vontade

O mal-entendido quanto à vinculação do novo sócio à cláusula arbitrai diz respeito, inicialmente, à manifestação da vontade, princípio basilar da arbitragem. O art. 1-da Lei 9.307/1996 garante que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se do instituto para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Assim, sob pena de nulidade da cláusula compromissória, a livre manifestação das partes é imprescindível para a submissão de eventual disputa ao juízo arbitrai.

Para Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik haveria a necessidade de uma aderência específica e posterior do novo sócio à cláusula arbitrai, expressa em documento apartado, encaminhado pela companhia ao adquirente, após a venda das ações.5

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Pela forma com que os negócios são fechados no mercado de capitais, até se poderia dizer - como os autores supracitados - que o novo sócio não manifestou sua vontade de acatar uma cláusula arbitrai estatutária. Contudo, devido às características peculiares dos negócios no âmbito empresarial, essa alegação não encontra qualquer respaldo.

Embora a doutrina se digladie quanto à natureza jurídica da companhia, se institucional ou contratual,6 não se discute o fato de que o estatuto social condensa todas as regras fundamentais da empresa. Assim, quando um novo acionista integra a sociedade anónima, recebe direitos e obrigações atribuíveis não só a ele, como também a todos os outros sócios. As variações, quando existem, dizem respeito à espécie ou à classe das ações adquiridas, a exemplo das ordinárias, que conferem direitos comuns, sem vantagens nem restrições, e das preferenciais, que conferem vantagens de natureza patrimonial mas, em compensação, não atribuem ou restringem o direito de voto.

O novo sócio não pode ter a possibilidade de escolher os direitos e as obrigações a que estará sujeito. Isso inviabilizaria a condução das relações internas da sociedade anónima. O investidor não é obrigado a fazer parte da companhia. Se optar pelo ingresso, presume-se que avaliou e acatou voluntariamente as disposições estatutárias. Até porque o registro do estatuto social na Junta Comercial, ou sua inscrição na Bolsa de Valores ou no Mercado de Balcão, ratifica a presunção de pleno conhecimento pelos acionistas, sejam novos ou velhos.

Claro que sé a cláusula compromis-sória estiver inserida numa convenção ex-tra-estatutária, como um acordo entre acionistas, não registrada em qualquer desses órgãos, o novo sócio não estará obrigado a se submeter ao juízo arbitrai para a resolução de conflitos que o envolvam. A falta de publicidade do ato leva à consequente ausência de manifestação de vontade.7

A regra é que, ao tomar uma decisão desinformada, o novo acionista assuma as consequências de seu desleixo - assim como quem assina um contrato sem lê-lo nem por isso deixa de se sujeitar ao mesmo. Como sustenta José Virgílio Lopes Enei, concluir que o novo sócio não se vincula à cláusula arbitrai constante do estatuto social só porque ele talvez não tenha tomado conhecimento de tal convenção seria equivalente a "dizer que uma eventual limitação do direito de voto ou à circulação das ações adquiridas não seria oponível ao novo acionista que ingressou na companhia sem conhecimento dessa limitação estatutária".8

Pedro António Martins, ao analisar a mesma polémica nas sociedades limitadas, também conclui que a eficácia da cláusula arbitrai atinge aquele investidor que adquire o status socii pela transferência de ações: "Mesmo não havendo manifestação expressa, o pacto arbitrai lhe é vinculante, pois os efeitos da cláusula compromissória atingem os sucessores a título universal c singular".9

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Ao adquirente de ações impõem-se o conteúdo e os efeitos da cláusula arbitrai já contida no estatuto social. A exigência de aceitação expressa e específica da arbitragem não encontra respaldo nem na Lei das S/A, nem na Lei de Arbitragem. Se a norma não limita, não deve o intérprete fazê-lo (ubi lex non distinguit, nec interpret distinguere debet).10

2. 2 Direitos essenciais do acionista

A polémica quanto à vinculação do novo acionista ainda recai sobre o § 2- do art. 109 da Lei.6.404/1976, segundo o qual "os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembléia-geral".

Para Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik o parágrafo supracitado é a garantia de acesso, dos sócios, ao Poder Judiciário. E, por se tratar de um direito essencial, só seria afastado por renúncia formal e específica em documento apartado e firmado pelo novo sócio.11

Partem os autores, todavia, de uma visão limitada de jurisdição, na qual somente ao juiz togado cabe exercê-la. Como acentua Carlos Alberto Carmona, "parece ser universal a tendência de ampliar o conceito de jurisdição, na medida em que aumenta o grau de participação e o interesse popular na administração da justiça, revelando um dos escopos fundamentais da jurisdição, o político".12

O direito essencial garantido ao acionista no § 2- do art. 109 da Lei das S/A é, na verdade, o de deduzir sua pretensão em juízo. E isso pode ser feito tanto pela via judicial quanto arbitrai.

Como já discutido em outro momento,13 a jurisdição é formada pela notio, vocatio, iudicium, coertio e executio. Ao árbitro é atribuído, diretamente, o exercício dos três primeiros elementos - notio, vocatio e iudicium -, o que caracteriza, no mínimo, um exercício de jurisdição fracio-nada.

A arbitragem não exclui nem prejudica quaisquer meios, processos ou ações conferidos aos acionistas. Pelo contrário, são assegurados e concretizados por esse instituto. Ressalte-se que o § 2° do art. 21 da Lei de Arbitragem impõe que sejam respeitados, no procedimento arbitrai, princípios basilares do processo, como o do contraditório, o da igualdade das partes, o da imparcialidade do árbitro e o de seu livre convencimento.

Na hipótese de serem necessárias medidas coercitivas - providências tendentes a forçar a prática de determinado ato, ou cautelares -, providências assecuratórias de um direito, o tribunal arbitrai não tem poderes para concedê-las. O exercício dos dois últimos elementos - coercio e executio - é exclusivo do Poder Judiciário. Contudo, segundo o art. 22, § 4-, da Lei de Arbitragem, poderá o árbitro solicitar tais medidas perante o juiz togado...

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