Arbitragem e mediação no direito coletivo

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1719-1741

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I Introdução

A arbitragem, como fórmula de solução de conflitos na sociedade, tem sido prestigiada em certas ordens jurídicas (EUA, por exemplo). O mecanismo atua em áreas diversas, como Direito Comercial/Empresarial, Direito Civil e, até mesmo, Direito do Trabalho.

No Brasil, entretanto, sua prática ainda não se mostrou frequente em qualquer campo do Direito, embora permitida e incentivada pela ordem jurídica.

A mediação, a seu turno, como técnica de aproximação de partes em conflito, em busca da resolução do litígio, por meio dos métodos próprios existentes, sempre foi prestigiada no País, inclusive no Direito Coletivo do Trabalho.

II Meios de solução de conflitos: autotutela, autocomposição, heterocomposição

São distintos os métodos de solução de conflitos interindividuais e sociais conhecidos no mundo ocidental contemporâneo. Classificam-se, basicamente, em três grandes grupos: autotutela, autocomposição e heterocomposição.

A diferenciação essencial entre tais grupos encontra-se nos sujeitos envolvidos e na sistemática operacional do processo de solução do conflito. É que, nas duas primeiras modalidades (autotutela e autocomposição), apenas os sujeitos originais em confronto é que tendem a se relacionar na busca da extinção do conflito, o que dá origem a uma sistemática de análise e solução da controvérsia autogerida pelas próprias partes (na autotutela, na verdade, gerida por uma única das partes).

Na última modalidade (heterocomposição), ao invés, verifica-se a inter-venção de um agente exterior aos sujeitos originais na dinâmica de solução do conflito, o que acaba por transferir, em maior ou menor grau, para este agente exterior a direção dessa própria dinâmica. Ou seja, a sistemática de análise e solução da controvérsia não é mais exclusivamente gerida pelas

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partes; porém transferida para a entidade interveniente (transferência de gestão que se dá em graus variados, é claro, segundo a modalidade heterocompositiva).

1. Autotutela

A autotutela ocorre quando o próprio sujeito busca afirmar, unilateralmente, seu interesse, impondo-o (e impondo-se) à parte contestante e à própria comunidade que o cerca. Como se vê, a autotutela permite, de certo modo, o exercício de coerção por um particular, em defesa de seus interesses. Não é por outra razão que a antiga fórmula da justiça privada correspondia à mais tradicional modalidade de autotutela.

Contemporaneamente, a cultura ocidental tem restringido, ao máximo, as formas de exercício da autotutela, transferindo ao aparelho de Estado as diversas e principais modalidades de exercício de coerção. Conforme argutamente exposto pela doutrina, “o extraordinário fortalecimento do Estado, ao qual se aliou a consciência da sua essencial função pacificadora, conduziu, a partir da já mencionada evolução do direito romano e ao longo dos séculos, à afirmação da quase absoluta exclusividade estatal no exercício dela. A autotutela é definida como crime, seja quando praticada pelo particular (“exercício arbitrário das próprias razões”, art. 345, CP), seja pelo próprio Estado (“exercício arbitrário ou abuso de poder”, art. 350)”1.

Essa significativa restrição à sistemática autotutelar de gerenciamento de conflitos tem isolado, como esporádicas exceções, no Direito contemporâneo, algumas poucas situações hipotéticas de exercício direto válido da coerção por particulares. No Direito Civil brasileiro é o que se passa, ilustrativamente, com a legítima defesa (art. 160, I, CCB/1916; art. 188, I, CCB/2002), com o desforço imediato, no esbulho possessório (art. 502, CCB/1916; art. 1.210, § 1º, CCB/2002) e, por fim, com a apreensão pessoal do bem, no penhor legal (art. 779, CCB/1916; art. 1.470, CCB/2002).

No Direito do Trabalho, a greve constitui importante exemplo da utilização da autotutela na dinâmica de solução de conflitos coletivos trabalhistas. Entretanto, conforme já anotado nesta obra, raramente ela completa seu ciclo autotutelar, impondo à contraparte toda a solução do conflito: o que ocorre é funcionar esse mecanismo como simples meio de pressão, visando ao alcance de mais favoráveis resultados na dinâmica negocial coletiva em andamento ou a se iniciar.

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2. Autocomposição

A autocomposição ocorre quando o conflito é solucionado pelas próprias partes, sem intervenção de outros agentes no processo de pacificação da controvérsia. A autocomposição verifica-se seja pelo despojamento unilateral em favor de outrem da vantagem por este almejada, seja pela aceitação ou resignação de uma das partes ao interesse da outra, seja, finalmente, pela concessão recíproca por elas efetuada. Na autocomposição não há, em tese, exercício de coerção pelos sujeitos envolvidos.

São modalidades de autocomposição a renúncia, a aceitação (ou resignação ou, ainda, submissão) e a transação.

A renúncia ocorre quando o titular de um direito dele se despoja, por ato unilateral seu, em favor de alguém.

A aceitação verifica-se quando uma das partes reconhece o direito da outra, passando a conduzir-se em consonância com esse reconhecimento. A aceitação pode comportar situações algo diferenciadas (embora muito próximas, é claro), segundo o estado de espírito e a conduta da parte que confere a aquiescência. Ela envolve a aceitação, no sentido estrito, e a resignação ou submissão — que são a inércia em reagir em face da manifestação do direito de outrem. Registre-se, por fim, que também utiliza-se a expressão composição para designar a aceitação ou reconhecimento do direito de outrem.

A transação, por sua vez, verifica-se quando as partes que se consideram titulares do direito solucionam o conflito mediante a implementação de concessões recíprocas.

Evidentemente que as figuras acima podem ocorrer no âmbito exclusivo da sociedade civil (classificando-se como extraprocessuais) ou no interior de um processo judicial (enquadrando-se como endoprocessuais).

Registre-se que o Direito do Trabalho (mais uma vez, no âmbito do Direito Coletivo) apresenta importantíssima modalidade de autocomposição: a negociação coletiva trabalhista. Embora tenda a ser confundida com a transação (fala-se em transação coletiva), não se esgota, na verdade, na simples projeção daquela tradicional figura do Direito Civil2.

3. Heterocomposição

A heterocomposição ocorre quando o conflito é solucionado por meio da intervenção de um agente exterior à relação conflituosa original. Em vez de isoladamente ajustarem a solução de sua controvérsia, as partes (ou

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até mesmo unilateralmente uma delas, no caso da jurisdição) submetem a terceiro seu conflito, em busca de solução a ser por ele firmada ou, pelo menos, por ele instigada ou favorecida.

Na heterocomposição também não há exercício de coerção pelos sujeitos envolvidos. Entretanto pode haver, sim, exercício coercitivo pelo agente exterior ao conflito original — como se passa no caso da jurisdição. A heterocomposição, em sua fórmula jurisdicional, distingue-se, pois, da autocomposição (e até mesmo das demais modalidades heterocompositivas) pelo fato de comportar exercício institucionalizado de coerção ao longo do processo de análise do conflito, assim como no instante de efetivação concreta do resultado final estabelecido.

São modalidades de heterocomposição a jurisdição, a arbitragem, a conciliação e, também, de certo modo, a mediação.

A) Enquadramento Jurídico: controvérsias — O enquadramento de todas essas quatro figuras jurídicas no grupo dos métodos heterocompositivos não é, porém, consensual na doutrina.

Há autores que consideram a conciliação e a mediação meios autocompositivos, reservando à heterocomposição apenas a jurisdição e a arbitragem3. Afinal, nas duas primeiras figuras não se entregaria ao terceiro o poder de decidir o litígio, ainda que sendo inegável sua participação na dinâmica compositiva.

Registre-se, ademais, nesse debate classificatório, a dubiedade inerente à própria arbitragem (principalmente a do tipo consensual): é que o árbitro, mesmo sendo terceiro, é escolhido pelas próprias partes (o que aproximaria o método da autocomposição).

Contudo, parece-nos válida, do ponto de vista científico, a tipologia proposta no presente estudo (isto é, jurisdição, arbitragem, conciliação e, também, de certo modo, a mediação como modalidades de heterocomposição).

É que a diferenciação essencial entre os métodos de solução de conflitos encontra-se, como visto, nos sujeitos envolvidos e na sistemática operacional do processo utilizado. Na autocomposição, apenas os sujeitos originais em confronto é que se relacionam na busca da extinção do conflito, conferindo origem a uma sistemática de análise e solução da controvérsia autogerida pelas próprias partes. Já na heterocomposição, ao contrário, dá-se a intervenção de um agente exterior aos sujeitos originais na dinâmica de solução do conflito, transferindo, como já exposto, em maior ou menor grau, para este agente exterior a direção dessa própria dinâmica. Isso significa

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que a sistemática de análise e solução da controvérsia deixa de ser exclusivamente gerida pelas partes, transferindo-se em alguma extensão para a entidade interveniente.

É evidente que o papel exercido por este agente exterior e a intensidade de sua intervenção são aspectos que variam significativamente em consonância com os tipos de mecanismos heterocompositivos. No método jurisdicional são muito grandes tanto o papel como a intensidade interventiva...

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