A arbitragem envolvendo a administração pública e o processo de homologação da sentença arbitral estrangeira no superior tribunal de justiça

AutorDaniel Coelho
CargoMestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado
Páginas98-108

Page 98

Introdução

Após a promulgação da Lei nº 9.307/96 e o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, a arbitragem vem se difundindo como mecanismo alternativo de solução de conflitos. A celeridade, a especialização dos árbitros, a privacidade e a confidencialidade que se notabilizam no procedimento arbitral vêm se revelando de grande valia para a resolução de conflitos de elevado valor econômico e extrema complexidade legal, tais como disputas societárias entre acionistas de grandes empresas, responsabilidade contratual de fornecedores de equipamentos e serviços de grande porte e controvérsias na interpretação de cláusulas de contratos de empréstimos e financiamento.

No Brasil, apesar da dinamização e diversificação da economia nos últimos quinze anos, o Estado ainda possui um papel importante, quiçá preponderante, na geração e circulação de riquezas. Seja por meio dos entes da chamada administração direta, seja por meio de autarquias, empresas públicas e fundações, ou ainda, e principalmente, das sociedades de economia mista, o Estado Brasileiro é um agente econômico extremamente relevante. Para que não se perca tempo com construções teóricas desnecessárias, basta citar o peso econômico de entes como a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES.

Por outro lado, muitas das mais relevantes atividades econômicas exploradas por particulares, tais como geração e distribuição de gás, petróleo e energia elétrica, transportes públicos, distribuição de água, prestação de serviços de telefonia ePage 99fornecimento de dados, mineração, dependem de concessão, autorização ou permissão estatal.

Exatamente em decorrência de sua importância na geração e circulação de riquezas no Brasil, o Estado, ou mais precisamente sua personificação administrativa, isto é, a Administração Pública1, também figura como parte de inúmeras relações jurídicas e/ou contratos de elevado valor e extrema complexidade legal. Isso vem levando a própria Administração a propor ou acolher a eleição da arbitragem como mecanismo de solução dos conflitos oriundos de suas relações negociais.

Apesar de a jurisprudência registrar antigos precedentes esparsos sobre a matéria, somente nos últimos anos os tribunais vêm analisando de forma mais consistente o tema e, ainda assim, de forma bastante restrita à arbitragem entre sociedades de economia mista e particulares. A saída encontrada pela jurisprudência mais atual para se posicionar em favor da arbitrabilidade dos conflitos entre as sociedades de economia mista e particulares foi recorrer à construção doutrinária da teoria dos interesses públicos primários e interesses públicos secundários2, segundo a qual seriam da segunda espécie os interesses patrimoniais da Administração, os quais, por serem disponíveis, seriam suscetíveis de discussão na via arbitral3. Porém, não se sabe ainda como os tribunais, especialmente, os superiores, se pronunciarão quando a eles forem levadas controvérsias sobre o cabimento de arbitragens, notadamente internacionais, envolvendo particulares, organismos multilaterais de crédito ou outros Estados, por exemplo, e, de outro lado, a Administração direta federal, dos estados ou dos municípios. Quais serão os critérios para diferenciação das questões passíveis de solução por arbitragem daquelas que somente podem ser resolvidas pelos tribunais brasileiros? A sujeição de determinadas controvérsias à arbitragem violará a ordem pública? Será que bastará aos tribunais diferenciar o interesse público primário e secundário para que se reconheçam os casos passíveis de solução pela via arbitral?

Muito provavelmente, essas questões mais sensíveis surgirão quando sentenças arbitrais estrangeiras forem submetidas ao processo de homologação para suaPage 100execução no Brasil. Daí me parecer bastante interessante tentar oferecer respostas às indagações colocadas acima com fundamento na interpretação das normas que regem o processo de homologação de sentença estrangeira, cuja competência, por força da Emenda Constitucional nº 45/2004, foi atribuída ao Superior Tribunal de Justiça.

Responder às questões suscitadas acima depende da melhor compreensão possível sobre as normas que regem o processo de homologação de sentença arbitral estrangeira, as quais sofreram grande evolução desde que foram regulamentadas pela primeira vez. Por conseguinte, antes de enfrentar as questões colocadas, apresento uma síntese dessa evolução.

1. Antecedentes Históricos

Apesar de muito pouco utilizado e discutido até a última década do século passado, o processo de homologação de sentenças arbitrais estrangeiras possui regulamentação em nosso ordenamento desde o longínquo ano de 1878, quando editado o Decreto nº 6.892. Ainda no século XIX, o artigo 12 da Lei nº 221, de 1894, também assegurava ao interessado a possibilidade de requerer “a homologação de sentenças arbitrais homologadas por tribunais estrangeiros”4.

Ao longo das diversas Constituições Brasileiras, a competência para a homologação de sentenças estrangeiras foi tradicionalmente atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Até o advento da Lei nº 9.307/96, a jurisprudência do Supremo exigia que o interessado percorresse um longo e penoso caminho para homologação um laudo arbitral estrangeiro em nosso país. Essa jurisprudência não reconhecia a validade pura e simples do laudo arbitral proferido no exterior e entendia que o interessado deveria obter primeiramente a homologação do laudo arbitral no país em que o mesmo havia sido proferido. Munido da sentença homologatória proferida no país de origem, o interessado estaria então apto a requerer a homologação dessa sentença perante o Supremo Tribunal Federal. Segundo José Maria Rossani Garcez5, essa jurisprudência se originou da equivocada interpretação que a doutrina então vigente emprestou às disposições do artigoPage 10113 do Decreto nº 6.892/1878 e do artigo 12 da Lei nº 221/1894, que faziam alusão à “homologação das sentenças arbitrais homologadas por tribunais estrangeiros”. Para os doutrinadores de então, somente seriam passíveis de homologação as sentenças oriundas de tribunais estatais estrangeiros. Apesar de equivocado, esse entendimento prevaleceu mesmo após a revogação do Decreto nº 6.892/1878 e da Lei nº 221/1894.

A jurisprudência cristalizada no Supremo Tribunal Federal tornava o processo de homologação extremamente lento, pois, se o vencido fosse brasileiro, o vencedor era obrigado a citá-lo por rogatória para responder ao processo de homologação do laudo arbitral estrangeiro no exterior, sob pena de que a homologação da sentença homologatória estrangeira fosse rejeitada no Brasil com fundamento na violação dos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. E havia ainda um outro problema muito mais grave que, em alguns casos, tornava impossível o reconhecimento da validade do laudo arbitral estrangeiro: nos países que emprestavam força de sentença ao laudo arbitral proferido em seus territórios, não havia procedimento cabível para a...

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