Apontamentos sobre a normatização do instituto da terceirização no Brasil: por uma legislação que evite a barbárie e o aniquilamento do direito do trabalho

AutorSebastião Vieira Caixeta
CargoEspecialista em Direito e Processo do Trabalho; Procurador do Trabalho; foi Presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT)
Páginas124-140

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1. Introdução

O setor empresarial reclama da falta de um marco legal que regulamente e estimule a terceirização, eliminando a combatida distinção entre atividades fim e meio e disciplinando a responsabilidade dos contratantes de modo a afastar a alegada insegurança jurídica1. Tal medida levaria à criação de milhões de empregos no setor, que, em 2009, ocupava a segunda posição mundial em quantidade de empregados, só sendo superado pelo Japão2.

Buscando dar resposta a tal anseio, tramita na Câmara dos Deputados, em estágio adiantado de votação, a proposta de substitutivo ao Projeto de Lei

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n. 4.330/2004, de autoria do Deputado Sandro Mabel (PMDB/GO), que visa à disciplina da terceirização de serviços especializados no âmbito público e privado. O substitutivo foi aprovado pela Comissão Especial Destinada a Promover Estudos e Proposições Voltados à Regulamentação do Trabalho Terceirizado no Brasil, sob a relatoria do Deputado Roberto Santiago (PV/ SP). No momento, encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, onde foi distribuído, em 5.8.2011, ao Deputado Arthur Oliveira Maia (PMDB/BA) para elaboração de voto.

A iniciativa de regulamentação do fenômeno da terceirização, definitivamente instalado nos meios de produção mundiais, abrangendo 10.865.297 de trabalhadores no país3, é bem-vinda, ante a reconhecida insuficiência de marco legal sobre o tema.

A preocupação primeira, todavia, deve ser a estruturação de modelo legal que, sob pena de comprometimento de sua validade constitucional, aplaque a precarização das relações terceirizadas de trabalho, infelizmente a nota característica do fenômeno no Brasil.

Comumente, aponta-se como escopo da terceirização a transferência de atividades acessórias ou secundárias a outras empresas com a concentração no negócio principal; a especialização da atividade e, consequentemente, a melhor qualidade dos serviços; o aumento da produtividade; a redução do custo de produção; o aumento do lucro4.

A par desses desejáveis objetivos, a prática tem evidenciado, com frequência cada vez mais constrangedora, a ocorrência de efeitos danosos, como o excessivo foco na redução dos custos com a mão de obra; a redução de direitos; a exigência de jornadas excessivas; o descuido com o meio ambiente de trabalho; a dispersão e falta da representatividade sindical; enfim, a precarização do trabalho terceirizado.

A corroborar a assertiva de que a terceirização no Brasil é feita, basicamente, para reduzir custos, com a transferência da responsabilidade pelo pagamento de direitos e encargos trabalhistas a empresas muitas vezes inidôneas, apesar dos riscos inerentes a esse arranjo, a recente reportagem da Folha de S. Paulo, dando conta de que os setores cuja folha de salários foram desonerados da contribuição previdenciária “já estudam benefícios de contratar funcionários” diretos5, ou seja, com a diminuição

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dos encargos sobre a folha, que deveria ser o foco do empresariado, volta a ser benéfica, pelo afastamento da insegurança jurídica e pelo incremento de produtividade, a contratação direta.

Além disso, o trabalhador terceirizado é tratado como cidadão de segunda classe6, não tem identidade, nem nome: é o terceirizado, sofre preconceitos de toda ordem, desde o local de refeição até o atendimento de saúde.

Pesquisa recentemente divulgada demonstra, com clareza, o quadro de precarização:

[NO INCLUYE TABLA]

No que concerne à saúde e à segurança, o quadro é ainda mais preocupante. De cada dez acidentes de trabalho, oito são registrados em empresas terceirizadas; de cada cinco mortes decorrentes desses acidentes, quatro são de terceirizados7.

Esses estudos, corroborados por vários outros, evidenciam que os trabalhadores terceirizados, apesar de terem níveis de escolaridade semelhantes aos dos empregados diretos, ganham menos, trabalham mais, têm

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menos direitos e, principalmente, adoecem e morrem mais, sendo muito mais sujeitos a acidentes de trabalho.

Outra face negativa da terceirização tem sido sua utilização para evasão fiscal. Recentemente, o Ministério Público do Trabalho (MPT) constatou a transferência de atividades de empresas grandes para pequenas (optantes pelo SIMPLES), ambas funcionando no mesmo endereço, com a direção da prestação pessoal de serviços por aquelas, funcionando o dono das pequenas como mero gerente. Evidente o expediente fraudulento para sonegar impostos.

Nesse contexto, afigura-se correta a constatação da pesquisadora da Universidade Federal da Bahia Tânia Franco: “A terceirização fragiliza o tecido social como um todo e as representações sindicais”8.

Como se vê, são muitos os desafios a serem vencidos para uma regulamentação adequada da terceirização no Brasil, que, alinhando-se aos valores fonte da Constituição da República de 1988, como a dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho, a igualdade, a relação de emprego e os direitos sociais visando à melhoria da condição social dos trabalhadores, venha expurgar a nota característica da precarização, permanentemente arraigada à prática da chamada relação triangular do trabalho.

Nesse contexto, apenas com intuito de colaborar com o debate, apresentamos esses breves apontamentos, com sugestões de algumas premissas que militam em favor daquele desiderato, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, mas abordando os pontos mais sensíveis relacionados à terceirização: a limitação da terceirização aos serviços especializados ligados à atividade-meio das tomadoras; a instituição da responsabilidade solidária entre as contratantes; e o reconhecimento da isonomia de direitos entre os trabalhadores da contratada e os da tomadora.

2. Imprescindibilidade da vedação da terceirização na atividade-fim da empresa tomadora

A Declaração da Filadélfia de 1944 (Declaração referente aos Fins e Objetivos da Organização Internacional do Trabalho) já afirmava este primeiro princípio fundamental: “O trabalho não é uma mercadoria”.

Atenta a tal preceito, a doutrina nos fornece o conceito da terceirização: “fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno

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insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente”9.

Pressupõe a existência de um terceiro que, com competência, especialidade e qualidade, em condições de parceria, presta serviços ou produz bens para a empresa contratante10.

Assim, a terceirização consiste em transferir para outrem atividades consideradas secundárias, ou seja, de suporte, atendo-se a empresa à sua atividade principal11.

Nesse diapasão, sua regulamentação deve grassar no campo das atividades não essenciais ou nucleares da tomadora de serviços, sob pena de desconhecer a realidade da legislação trabalhista e violar dispositivos constitucionais.

Como se sabe, a relação de emprego perfaz-se a partir da coincidência dos conceitos de empregado e empregador, definidos nos arts. e da CLT:

“Art. 2º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

...

Art. 3º Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

A doutrina tem enfatizado a funcionalidade do conceito de empregador ligado à empresa como atividade que realiza o objeto social, admitindo, assalariando e dirigindo a prestação pessoal de serviço12.

Por sua vez, o empregado é a pessoa física que trabalha com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.

Dessa forma, o sistema trabalhista — e a legislação correlata — define que o empregador deve contratar diretamente, ao menos, os empregados

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que serão responsáveis imediatos pela consecução do empreendimento econômico, ou seja, aqueles alocados na atividade-fim da empresa. Trata-se da clássica forma de contratação estabelecida no ordenamento jurídico pátrio, que leva, necessariamente, à conclusão de que a terceirização é sempre excetiva13.

É dizer: não pode haver escolas sem professores, hospitais sem profissionais de saúde, bancos sem bancários.

Além disso, o art. 2º da CLT determina que o risco do negócio não pode ser repassado a terceiros, impedindo, assim, que a atividade-fim seja transferida para a empresa terceirizada.

Não se pode, validamente, ignorar essa realidade, que decorre da ordem natural das coisas, insuscetível de ser mudada, arbitrariamente, pelo legislador, sob pena de inconstitucionalidade por violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

A lei civil, apta a disciplinar as contratações entre empresas, tampouco pode desnaturar todo o arcabouço jurídico do Direito do Trabalho, que tem suas premissas e vigas centrais estabelecidas na Constituição Federal, determinando consequências diversas das normas de proteção a ele inerentes, sob pena de aplicação do art. 9º da CLT, o qual impõe a nulidade de preceitos tendentes a desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação das leis trabalhistas.

Por outro lado, toda medida que reduza a proteção social e favoreça a precarização do labor humano também viola os arts. 1º, III e IV, e 170 da Carta Magna, menoscabando a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, além de promover o retrocesso das condições sociais, o que é vedado pela Constituição e por vários instrumentos normativos internacionais ratificados pelo Brasil.

Contraria, ainda, o disposto no 7º, I, da Constituição da República. Esse preceito...

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