Apontamentos sobre a redução de direitos previdenciários (MP n. 664/14) e ao segurodesemprego (MP n. 665/14) - ou: nunca uma vaca tossiu tão alto e de forma tão inconstitucional

AutorJosé Antônio Ribeiro de Oliveira Silva - Sandro Eduardo Sardá
CargoJuiz Titular da 6a Vara do Trabalho dde Ribeirão Preto (SP) - Procurador do Trabalho em Santa Catarina
Páginas17-35

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Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para.

Cazuza

1. Introdução

Aos 17.8.2014, em plena campanha eleitoral, a Presidente Dilma Roussef garantiu em seu site oi cial que não pensava em mudanças nos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras deste país. "Nem que a vaca tussa", ai rmou categoricamente a candidata à reeleição, ressaltando que jamais mexeria em direitos assegurados desde a era Vargas.

No entanto, diferentemente do anunciado, as Medidas Provisórias ns. 664/14 e 665/14, editadas pelo Executivo Federal em 30.12.2014, fizeram a vaca não somente tossir alto, como ir ao "brejo" das inconstitucionalidades, das graves precarizações e da retirada substancial de direitos constitucionais.

Para o Ministro da Casa Civil Aloizio Merca-dante, trata-se de mera correção de distorções "e, por isso, não vão de encontro a promessas feitas pela presidente Dilma Roussef durante a campanha". Segundo Mercadante, "os direitos estão sendo mantidos. Estamos dando isonomia [aos trabalhadores] e alguns programas precisam de correção".

Colocando os números sobre a mesa, verii ca-se que o Governo pretende economizar, em 2015, R$ 66,3 bilhões, sendo R$ 55,3 bilhões por parte da União e o restante da parte de Estados e Municípios, o equivalente a 1,2% do PIB.

As medidas anunciadas nas medidas provisórias referidas resultarão na economia de R$ 18 bilhões ao ano, correspondendo a 0,3% do PIB de 2015. Isoladamente, somente o pacotão de final de ano vai garantir 32,54% do superávit das contas públicas da União, prometidas pelo Ministro da Fazenda Joaquim Levy (calculados

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sobre R$ 55,3 bilhões). De se destacar: os R$ 18 bilhões que serão retirados dos trabalhadores correspondem a 70% do gasto com o Bolsa Família em 2014.

Transcorridos apenas dois dias da edição das referidas medidas provisórias, em seu discurso de posse, a Presidente insistia em sua malfadada tese, tentando convencer a si própria ou a algum desavisado de que nenhum direito havia sido retirado, bradando em alto e bom tom: "nenhum direito a menos, nenhum passo atrás."

Entretanto, o jornalista Ricardo Melo bem destaca que, "com uma tesoura na mão e a ideia fixa na cabeça, a equipe econômica pretende defender o programa neoliberal ortodoxo. Não lhe cabe culpa: é isso o que ela aprendeu. O problema está em quem a contratou. A troika trabalha como aquelas consultorias que todo mundo já viu nas empresas do dia a dia. Ao primeiro sinal de dii culdade, a providência automática é cortar ‘custos’, diga-se, empregos e salários. Desde que, bem entendido, resguardado o quinhão dos controladores e acionistas majoritários".

Cabe questionar: a quem se destinam essas duras medidas? Não há dúvidas de que o segmento social que será mais atingido é o dos que recebem benefícios previdenciários que serão objeto de "corte". Contudo, dados do Anuário do INSS comprovam que o valor médio dos benefícios previdenciários concedidos no ano de 2013 gira em torno de R$ 987,54 ao mês. Pois bem, são exatamente estas pessoas que "pagarão" 25% dos valores necessários para a efetivação desse "ajuste fiscal", que será necessário para que o país continue a crescer, desenvolver-se e gerar riqueza.

Verifica-se, ainda, que as precarizações resultantes dessas medidas também afetam os direitos dos servidores públicos, especialmente em relação à pensão por morte.

Nessa perspectiva, o presente artigo pretende demonstrar as inconstitucionalidades e graves precarizações dos direitos (sociais) constitucionais, decorrentes das MPs ns. 664/14 e 665/14, medidas adotadas com o intuito exclusivo de reduzir gastos governamentais, na ordem de R$ 18 bilhões de reais, sem a menor preocupação com a dignidade humana de um relevante segmento populacional em situação de vulnerabilidade social, em virtude de doenças, desempregos involuntários e mortes de entes familiares.

Ressalta-se que a brevidade destas mal traçadas linhas as torna, imediatamente, merecedoras de rel exões e estudos mais aprofundados. Sem embargo, é preciso dar o primeiro passo.

2. Principais precarizações e reduções de direitos fundamentais

As precarizações mais signii cativas pre-vistas nas MPs ns. 664/14 e 665/14 são as que seguem:

I - exigência de 24 meses de casamento ou de união estável para recebimento de pensão por morte;

II - redução do valor da pensão por morte de 100% para 50%, acrescido de 10% por dependente;

III - redução do tempo de duração do benefício de pensão por morte, de acordo com a expectativa de vida do cônjuge;

IV - carência de 24 meses para pensões por morte;

V - alteração da base de cálculo do auxílio-doença, observando-se a média das 12 últimas contribuições;

VI - ampliação de 15 para 30 dias do período pago pela empresa, na hipótese de incapacidade para o trabalho, pois apenas depois do período de trinta dias é que o trabalhador deverá ser encaminhado ao INSS para realização de perícia;

VII - possibilidade de realização de perícias médicas por empresas, mediante acordo de cooperação técnica;

VIII - alteração das carências para requerimento de seguro-desemprego, de 6 meses para 18 meses na 1ª solicitação, de 6 para 12 meses na 2ª, mantendo-se o período de 6 meses apenas a partir da 3ª solicitação.

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3. As inconstitucionalidades das Medidas Provisórias ns 664/14 e 665/14
3.1. Ausência dos requisitos de relevância e urgência para a edição de medida provisória (art 62 da CF)

As Medidas Provisórias ns. 664/14 e 665/14 não se encontram revestidas dos requisitos da relevância e urgência, preconizados no art. 62 da Constituição brasileira.

Pelo contrário, redundam na redução de direitos sociais decorrentes da construção histórica do Estado Social e Democrático de Direito, bem como de patamares civilizatórios mínimos que asseguram a dignidade humana.

Inexistente, portanto, o estado de absoluta necessidade (urgência), que justificaria o recurso do Poder Público à adoção imediata de providências de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias do devido processo legislativo, diante do periculum in mora consubstanciado no provável atraso na concretização da prestação legislativa.

Ao contrário, as medidas provisórias editadas colocam em grave risco social trabalhadores em situação de vulnerabilidade decorrente de adoecimento, desemprego involuntário e morte de ente familiar, o que, por si só, já afastaria os requisitos autorizadores da edição de medida provisória.

Eventual relevância sob o prisma do ajuste fiscal seria facilmente suplantada pela relevância de se manter na íntegra direitos sociais constitucionais até que, mediante democrático processo legislativo, subsidiado pelo debate dos atores dos segmentos políticos, econômicos e sociais envolvidos, se decidisse pela supressão ou redução de tais direitos.

Sobre a matéria, assim já decidiu o E. STF: A edição de medidas provisórias, pelo presidente da República, para legitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62, caput). Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualii cando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela CR. (...) A possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apoia-se na necessidade de impedir que o presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais. (ADI n. 2.213-MC, rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4.4.2002, Plenário, DJ de 23.4.2004.)

Portanto, sob o aspecto formal, são inconstitucionais as Medidas Provisórias ns. 664/14 e 665/14, posto que ausentes os requisitos previstos no art. 62 da CF.

3.2. Vedação da edição de medida provisória para a regulamentação de matéria previdenciária

Como sabido, o art. 246 da Constituição Federal veda a edição de medida provisória para a regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 e a data da promulgação da Emenda Constitucional n. 32, de 2001.

Considerando-se que a Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, versa sobre o sistema de previdência social, não resta dúvida quanto à impossibilidade de regulamentação da matéria por meio de medida provisória, razão

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pela qual resta coni gurada outra inconstitucionalidade formal da MP n. 664/14.

Imperioso concluir que...

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