Apontamentos sobre princípios internacionais tributários

AutorFlávia Cavalcanti
CargoAdvogada e especialista em Direito Tributário pelo IBET/RJ
Páginas219-230

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1. Introdução

A inter-relação entre o Direito Interno e o Direito Internacional suscita, de longa data, caloroso embate doutrinário, especialmente no atinente à organização hierárquica das normas que os conformam e à definição do ordenamento ao qual elas pertencem.

Os estudiosos da questão intentam, primeiramente, aclarar se as matérias em tela seriam ramificações de um mesmo manancial normativo ou se manteriam vínculos de pertinencialidade com ordens jurídicas distintas. Não suficiente, o impasse referente a tal problemática coloca-se como premissa de outro questionamen-to, consistente em saber qual norma há de prevalecer na hipótese de eventual conflito - se a interna ou a internacional.

Roberto Luiz Silva,1 discriminando o conteúdo das questões ora postas, expõe:

"A questão das relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno envolve, primeiramente, a questão relativa à existência ou não de conexão entre ambos, podendo ainda gerar muitos problemas de ordem prática, especialmente se, havendo um conflito entre eles, decidir qual dos dois prevalecerá".

Interessa ao presente estudo a problemática suscitada pela doutrina acerca da existência ou não de uma dicotomia das ordens jurídicas interna e internacional, que, dessa forma, será apartada da questão relativa à prevalência das normas dentro de cada conjectura.

2. Discussões acerca da dicotomia de ordens jurídicas

Vigoram na doutrina duas correntes antagônicas sobre a questão em epígrafe: (i) a corrente dualista, que pressupõe a coexistência de dois planos jurídicos, um nacional e outro internacional, e (ii) a corrente monista, cujo apanágio precípuo

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concentra-se na existência de uma unicidade sistêmica. Portanto, perquirir-se-á, a seguir, os elementos fundantes de cada uma dessas correntes para, adiante, apontar o posicionamento adotado.

2. 1 Dualismo

O primeiro estudo sistemático da matéria foi feito por Heinrich Triepel na obra Völkerrecht und Landesrecht.2 Parte este jurista da concepção de que inexiste identidade entre o Direito Internacional e o Direito Interno, justificando que cada qual estaria vinculado a ordens jurídicas distintas, que, de acordo com o saudoso Celso D. de Albuquerque Mello,3 "podem ser tangentes, mas não secantes, isto é, são independentes, não possuindo qualquer área em comum".

Frisando ainda esse aspecto, assevera Bruno Simma4 em categórico estudo sobre o tema: "Defendem [os dualistas] a radical separação do Direito Internacional e do Direito Nacional não apenas no sentido de considerar que cada um deles possui diferentes fontes e dirige-se a matérias distintas, mas também no sentido de que normas internas contrárias ao Direito Internacional podem continuar a ter plena força vincu-lante dentro dos limites do sistema jurídico doméstico do respectivo Estado. A essência da teoria dualista pode ser ilustrada da seguinte maneira: o Direito Internacional e o Direito Interno se inter-relacionam como dois círculos 'cujo no máximo se tocam, mas nunca se sobrepõem um ao outro' (H. Triepel, Völkerrecht und Landesrecht -1899)".

Segundo o escólio de Alejandro J. Rodrigues Carrión,5 o arcabouço da teoria dualista estaria assentado sob três pontos específicos.

Primeiramente, as fontes6 do Direito Internacional e do Direito Interno seriam completamente distintas, sendo este resultado da vontade de um Estado, ao passo que aquele oriundo da convergência de vontades de vários Estados (Vereinbarung7), que

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se manifesta expressamente nos tratados e tacitamente no costume internacional.

Nas lições de Dionísio Anzilotti,8 que preconizou a concepção dualista na Itália: "As normas de direito internacional derivam da vontade de vários Estados: 'ex omnium aut multorum gentium voluntate'. Apenas as vontades de vários Estados, ao se tornarem uma única vontade coletiva ou comum, adquirem o caráter de vontade superior àquela dos Estados individualmente considerados, e capaz de impor sob suas condutas normas positivas, às quais não falta qualquer elemento essencial confor-mador".

Em segundo lugar, cada um dos ordenamentos teria por escopo regular relações inteiramente diversas. Enquanto a ordem internacional cuidaria de uma estrutura de coordenação, referente à interação entre os Estados soberanos, o ordenamento interno abrangeria as relações de subordinação estabelecidas entre o Estado e seus súditos, conforme assinala Amílcar de Castro:9 "Tratado não é lei, é ato internacional que obriga o povo considerado em bloco, que obriga o governo na ordem externa, e não o povo na ordem interna. (...) O tratado explana as relações entre governantes (horizontais, sendo as pessoas coordenadas), enquanto que a lei e o decreto explicam relações do governo com seus súditos (verticais, entre subordinantes e subordinados)".

Por fim, haveria um terceiro aspecto relativo aos diferentes processos de elaboração normativa no âmbito de cada um dos ordenamentos. As normas veiculadas pelo direito interno respeitariam os procedimentos previstos pela Constituição, que indica os órgãos de produção, define as competências e o devido processo legislativo. Por outro lado, na esfera internacional, a conformação normativa atenderia a outros critérios típicos, consuetudinários ou definidos em estatutos supra-estatais.

A concepção dualista foi adotada por diversos autores10 que, não obstante terem estabelecido algumas modificações, mantiveram, de forma geral, a matriz ora exposta.

2. 2 Monismo

Contra a doutrina dualista, defendendo a existência de um único ordenamento jurídico com efeitos tanto no âmbito doméstico dos Estados, quanto no contexto internacional, foi erigida uma série de teorias que, em função da unidade pretendida, passaram a ser denominadas de monistas.

Não obstante a coincidência das conclusões propostas pelas referidas teses -vez que todas assentam a estrutura normativa sob o primado da unicidade sistêmica -, partem elas de premissas e fundamentos jurídicos diversos.

Historicamente, o monismo remonta às construções filosóficas da Idade Média e à Renascença, que buscavam justificar, com o auxílio da doutrina da universalidade do direito natural, a unidade de uma Europa dividida entre a hegemonia papal e a imperial.11

Apesar disso, as doutrinas monistas encontraram proponentes tanto entre aqueles autores identificados como jusnatu-

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ralistas, quanto no campo do positivismo legalista, como é o caso de Kelsen e os demais integrantes da Escola de Viena -Alfred von Verdross, Josef L. Kunz, dentre outros.

Para jusnaturalistas, como Hersch Lauterpacht, a unicidade do ordenamento jurídico é o único meio apto a assegurar a defesa dos direitos humanos. Nesse sentido, o Estado é encarado como mero veículo necessário à persecução do bem-estar dos indivíduos, colocados no centro da problemática jurídica de forma a se repudiar a idéia de soberania estatal absoluta.12 "Ao conduzir seu estudo através de uma análise pragmática, Lauterpacht pôde atacar o positivismo voluntarista em seu próprio terreno da factualidade científica, sem a necessidade de socorrer-se da retórica moralizante do naturalismo ou do formalismo da teoria pura do direito. O mesmo terreno o permitiu estabelecer um programa político 'progressivo' que coloca o indivíduo no centro e que considera o Estado como simples instrumentalidade. Por detrás do nacionalismo e da diplomacia o mundo permanece uma comunidade de indivíduos e a norma jurídica é nada mais do que o estado de paz entre eles: 'A Paz é preeminentemente um postulado jurídico. Juridicamente, é uma metáfora para o postulado da unicidade do sistema legal' (The Function ofLaw in the International Community - 1933)".13

Por sua vez, abordando o tema sob um prisma lógico-formal, na sua condenação à concepção dualista, começa Kelsen14 por afirmar que "se as normas de direito internacional e aquelas dos direitos nacionais devem ser consideradas como simultaneamente válidas e como sendo umas e outras normas jurídicas, (...) impõe-se a necessidade lógica de conceber todo o direito a partir de um só e mesmo ponto de vista, de o encarar sob a forma de um sistema único", indicando que a unicidade do sistema repousa na ausência de contradições internas ou, mais exatamente, na existência de meios para a sua superação.

Nessa base, conclui Kelsen que o único sistema cientificamente sustentável seria o monismo - com prevalência do Direito Internacional ou Interno, critérios ambos válidos do ponto de vista da Teoria do Direito15 - uma vez que tal concepção seria apta a garantir a eliminação das antinomias.

Dessa forma, a concepção monista resultaria de um imperativo lógico, destinado a evitar conflitos entre sistemas normativos contraditórios.

Nessa esteira, a relação interno-inter-nacional seria de ordem intra-sistêmica, ou seja,"(...) as relações entre Estado e comunidade internacional, ou ainda entre direito interno e direito internacional, são relações sistêmicas, quer dizer, são dois elementos de um único sistema jurídico".16

2. 3 Posição adotada

Conforme já assinalado, "independente da querela entre monistas e dualis-

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tas é o problema da relação hierárquica entre o Direito Internacional e o Direito Interno".17

Nesse contexto, entendemos que a primeira problemática suscitada concerne à Teoria do Direito, porquanto tem a ver com o exame das estruturas formais e conceitos fundamentais, indispensáveis ao raciocínio jurídico: "A Teoria do Ordenamento se liga diretamente à Teoria da Norma Jurídica. Uma e outra formam, em conjunto, uma completa Teoria do Direito, principalmente sob o...

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