Apontamentos sobre a função social da empresa e o moderno direito privado

AutorCassio Cavalli
Páginas207-212

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O liberalismo clássico entende a sociedade como o conjunto de indivíduos. O indivíduo é entendido independentemente das suas relações sociais com outros indivíduos, pois o que faz o indivíduo é a sua autonomia patrimonial, consistente no seu poder sobre os seus bens (propriedade e créditos). Se o indivíduo deseja sair da sua ilha patrimonial, o faz porque voluntariamente deseja - sem que se recorra à vontade ou aos interesses dos demais indivíduos que conformam a sociedade. Desse modo, para o direito de inspiração da época liberal, diz-se que há umapes-soa se reunidos três requisitos: (a) a capacidade patrimonial - o sujeito deve ser capaz de possuir um património; (b) a capacidade negociai - o sujeito deve ser capaz de dispor livremente de seu património; e (c) a capacidade de estar em juízo - o sujeito deve ser capaz de defender seu património em juízo. Com a vinculação do conceito de pessoa ao de patrimônro, as relações jurídicas se interiorizam em direção à vontade capaz do indivíduo.

Assim, o indivíduo é marido porque autonomamente relaciona-se com a esposa. O indivíduo é pai porque relaciona-se autonomamente com seu filho. O indivíduo é inquilino porque relaciona-se autonomamente com seu senhorio. E entre essas diversas relações não faz o modelo jurídico liberal associação alguma.

O ideal máximo que se pode esperar da ideia de justiça, nessa perspectiva, é a justiça comutativa bilateral, interna à relação - e mesmo essa noção foi profundamente restringida pelo pensamento liberal, face ao dogma da vontade, afirmação máxima do individualismo.

O indivíduo é fruto da livre manifestação de sua vontade. À medida que suas relações decorrem da livre manifestação de sua vontade, elas não aproveitam nem prejudicam terceiros que não integraram voluntariamente a relação. O próprio direito afirma normas específicas aplicadas a determinada categoria de pessoas. É a ideia da relatividade dos pactos, segundo a qual os pactos (a) não aproveitam a terceiros no sentido de que eles não podem exigir comportamentos em virtude do pacto, e, por outro lado, (b) não os prejudica, à medida que deles, que não participaram voluntariamente do pacto, não se pode exigir comportamento algum. Essa lógica permeou todo o modelo jurídico liberal, a ponto de sustentar-se que o casamento seria um contrato e que o reconhecimento da propriedade imobiliária decorreria de um pacto feito por todos no momento da formação da sociedade.

Assim, o indivíduo que, por qualquer razão, resolve separar-se da esposa, cuidará de desfazer essa relação, em nada associada às suas outras relações enquanto pai ou enquanto inquilino, de modo que a separação não interferirá nos interesses do filho nem vice-versa.

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Ocorre que o indivíduo, conforme se percebeu, não é indivíduo por força de sua autonomia interior, vincada no ideal kantiano, mas somente enquanto ser que se relaciona com outros indivíduos. Ou seja, o que faz o indivíduo é, na verdade, o plexo de relações que entretém com outros indivíduos. Assim, o que faz o indivíduo é o seu conjunto de relações sociais, ou, na dicção de Clóvis do Couto e Silva, o conjunto de contatos sociais. A sua marca distintiva é, então, exterior, e não interior. Nesse sentido, o património, que reflete as relações do indivíduo com o mundo, projeta-se em seu aspecto externo. Desse modo, a sociedade não é o somatório de indivíduos autónomos, mas um conjunto de relações entre indivíduos.

Deste ponto em diante, preferirei utilizar o vocábulo sujeito ao invés de indivíduo, para reforçar a ideia de superação do paradigma liberal.

Em cada uma das suas relações, o sujeito assume diversos papéis, conforme demonstrou Ludwig Raiser. Atribuir-se à alguém um papel com base nas suas diversas relações com vários sujeitos representa imensa guinada em relação ao modelo do indivíduo característico do liberalismo, pois evidencia que o que faz o sujeito é justamente o fato de ele relacionar-se com diversos sujeitos, perante os quais assume/ra-péis. Ou seja, para que haja sujeito é necessário um plexo de relações havidas com outros sujeitos, os quais, individualmente considerados são sujeitos à medida que estabelecem diversas relações com outros sujeitos.

Assim, atualmente, busca-se pensar o sujeito, p. ex., enquanto marido que cuidará de desfazer sua relação com a mulher, mas sem que esse fato afete demasiadamente os interesses do filho. Ou seja, os interesses daquele que se relaciona com o su-jeito-pai são oponíveis, em certa medida, às relações do sujeito-marido. Com efeito, o direito de família, cada vez mais, se preocupa com as relações do sujeito-marido em relação ao filho, por meio de institutos...

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