Apontamentos sobre algumas regras de interpretação dos contratos comerciais: pothier, cairu e código comercial de 1850

AutorPaula A. Forgione
Páginas31-40

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Quem observa a modemâpraxis do direito mercantil depara-se com fenómeno peculiar: no mais das vezes, as lições trazidas pela doutrina especializada simplesmente ignoram a realidade de grande parte dos contratos empresarias, deixando de trazer soluções para os problemas e conflitos que deles afloram. Pouca ou nenhuma importância dá-se à atividade de interpretação desses negócios, como se a letra do instrumento existisse por si só, e por si só fosse capaz de disciplinar a relação formatada pelos agentes económicos nos amplos quadrantes da autonomia privada.

Uma das possíveis explicações para esse fenómeno está na preponderância, até meados da década de 1980, do movimento positivista que, a pretexto da obtenção de maior grau de segurança e de previsibili-dade jurídicas, renegava a atividade inter-pretativa a segundo plano. O "intérprete deve ater-se à mera interpretação literal ou remeter-se sempre á 'interpretação autêntica' - entendida esta como a dada ao texto pelo legislador".1 Há de se reservar "ao legislador o papel de único intérprete, negando-se o mesmo aos juizes".

Nessa linha, interpretar não deveria ir além de expor o "verdadeiro sentido de uma lei obscura por defeitos de sua redação, ou duvidosa com relação aos fatos ocorrentes ou silenciosa. Por conseguinte, não" teria "lugar sempre que a lei, em relação aos fatos sujeitos ao seu domínio, é clara e precisa".

Na súmula de Gaudemet sobre a Escola Exegética: "toute solution juridique doit se tirer d'un texte du Code, soit direc-tement, soit par déduction, soit par induc-tion; (...) tout problème de droit se réduit à Ia recherche de Ia volonté, expresse ou pré-sumée, du législateur".2

Gerações influenciadas por Paula Baptista, ainda que o neguem formalmente, ou façam-no inconscientemente,3 seguem reproduzindo as seguintes máximas:

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a interpretação deve limitar-se aos "casos acidentais de obscuridade nas leis". A doutrina que nega esse pressuposto possui natureza "vaga e absoluta", que "pode fascinar o intérprete, de modo a fazê-lo sair dos limites da interpretação para entrar no domínio da formação do direito"; o primeiro dos meios de interpretação é o exame da construção do texto segundo as regras da ortografia, da sintaxe, e "do mais que respeita à pureza da linguagem". Após, "[d]eve-se também recorrer aos diversos sentidos das palavras, o gramatical, jurídico, usual, absoluto ou relativo, exemplificativo ou taxativo, simplesmente enunciativo ou dispositivo, etc, conforme o caso exigir, e sempre com o cuidado de dar às palavras a significação que tinham ao tempo em que a lei foi feita. Con-seguindo-se, assim, ligar ao texto seu verdadeiro sentido, já não é lícito aventurar-se a outros meios, salvo se servirem de corroborar este mesmo sentido, redobrando sua força e autoridade";

- "[e]m nenhum caso (...) é permitido negar execução ou alterar o sentido de uma lei clara por ser a sua letra rigorosa, dura e desarrazoada, e não se lhe pode atribuir um motivo justo e razoável, porquanto a ignorância dos verdadeiros motivos da lei não fá-la decair de sua força e autoridade, e por muito que o intérprete presuma de si, deverá convencer-se de que, neste caso, a falta é antes sua do que do legislador";4

- "[f]ica subentendido que, quando a disposição da lei é clara é ilimitada, se não devem fazer distinções arbitrárias, que enervem o seu sentido, e destruam a sua generalidade".5

Compõe ainda esse cenário - cujo principal apanágio é o ostracismo da ativi-dade interpretativa - o fato de apenas recentemente termos-nos dado conta de que o regramento jurídico talhado para contra-tos de intercâmbio (i.e., cujo escopo é estabelecer prestação e contraprestação destinadas a exaurir-se no momento do adim-plemento) não basta à disciplina dos contratos de longa duração, cujo foco é o estabelecimento de uma relação duradoura entre as partes e não somente uma troca imediata ("contratos relacionais").

Assim, até bem pouco tempo, as discussões jurídicas sobre os negócios mercantis gravitam quase que exclusivamente6 em torno de contratos em que o lucro de uma parte significa o prejuízo da outra ("meu lucro é o seu prejuízo"),7 tais como as operações de compra e venda. Ao adquirente interessa obter o menor preço possível pelo bem, ao passo em que o alienante pretenderá aliená-lo pela maior quantia possível.

No entanto, as empresas, visando à maior eficiência, optam por estabelecer relações estáveis com outros agentes económicos, que se concretizam por meio da celebração dos contratos relacionais, a que acima nos referimos. Neles, o agente económico não mais visualiza o outro como "contraparte", mas sim como "parceiro", cuja atividade auxiliará a persecução do lucro; aqui, "seu lucro é meu lucro".

É mesmo óbvio que esses contatos, ao manterem certo viés de intercâmbio, não encerram uma onírica comunhão completa de interesses. Mas essa busca da auto-satis-fação mescla-se e é suplantada pelo caráter colaborativo.8

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Em virtude da longa duração planejada para os contratos relacionais, busca-se de forma mais acentuada a disciplina de problemas futuros que serão enfrentados pelas partes; não se visa apenas estabelecer regras sobre as trocas em si, mas disciplinar o relacionamento a ser fruído ao longo da vida do contrato. É comum que, na redação do instrumento, as partes valham-se de termos amplos, sem significado claramente definido no momento da celebração do ato. Lançam-se as bases para um futuro comportamento colaborativo, mais do que a ordem específica de obrigações determinadas. Certa interdependência é instaurada entre os contratantes, uma vez que o sucesso de uma (e do negócio globalmente considerado) reverterá em benefício da outra (i.e., de todas elas).

Sem prejuízo da pouca importância dada à atividade interpretativa, já no passado alguns autores elaboraram máximas, cuja criação, embora muitas vezes inspirada no direito romano, levava em conta a necessidade de pautas para viabilizar a concreção dos negócios jurídicos e, conse-quentemente, o comércio. Reavivar essas regras é possível porque, de há muito, o direito comercial desenvolve-se sobre pressupostos semelhantes. Não afirmamos com isso que nada teria mudado nos últimos séculos ou que, desde o início, a acumulação de capital fosse o escopo perseguido pelos agentes económicos (mesmo porque essas regras foram inicialmente talhadas para os contratos em geral e não apenas para aqueles mercantis). Apenas lembramos que as modificações não alteraram a principal função do direito comercial, motivo mesmo de sua génese: dar condições para a atividade dos mercadores, diminuindo custos de transação e eliminando efeitos autodestrutíveis decorrentes do funcionamento do próprio sistema.910

Especialmente quando se cuida da interpretação contratual, muitas dessas anti-gas direções atendem ao escopo de azeitar as relações do mercado, aumentando o grau de segurança e de previsibilidade a partir do momento em que impõem o respeito à boa-fé, à confiança, à proteção da legítima expectativa da contraparte (enfim, consideram uma ractonalidade jurídica).11

As mais famosas dessas regras de interpretação contratual foram sistematizadas/construídas por Pothier, editadas em 1761 e traduzidas para a língua portuguesa .em 1835 por Corrêa Telles.12 Regras incorporadas ao Código de Napoleão,1314 que

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claramente influenciaram nosso Visconde de Cairu e acabaram positivadas no art. 131 no Código de 1850.1516 Considerando que, muitas vezes, a manualística predominante refere-se a essas regras sem indicar sua origem - e sem lhes tributar sua real dimensão no sistema de direito comercial - vale revisá-las uma a uma,17 lembrando que "mais do que meras máximas de experiência", essas regras "assumem como conteúdo uma exigência ética de correção social", imprimindo "à atividade interpretativa um endereço, uma diretiva, que exprime em si um juízo de valor",18 especialmente útil à interpretação dos contratos mercantis.

Primeira regra: "Nas convenções mais se deve indagar qual foi a intenção com-mum das partes contrahentes, do que qual he o sentido grammatical das palavras".

Pothier refere-se à "intenção commum das partes" e não, meramente, à "intenção das partes". Isso significa que a primeira regra de interpretação toca ao intento comum, àquilo que chamamos de "causa ob-jetiva", relacionada aos usos e costumes

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comerciais. Afinal, qual a função económica que as partes pretenderam obter com a avença? Para que a celebraram? Qual a racionalidade (jurídica) que deve ser considerada como mote interpretativo, levando em conta a objetivação trazida pelo mercado? O que, no mercado, normalmente se busca com tal prática? (a "intenção comum" deve ser entendida como reflexa da práxis mercadológica, ou de fatos socialmente reconhecíveis, como ensina Betti).

Essa primeira regra - que, repisemos, toca à intenção comum, objetiva, das partes - abrange os seguintes pressupostos, cuja consideração é indispensável para a análise dos contratos empresariais:

O primeiro é que os agentes económicos não contratam pelo mero prazer de trocar declarações de vontade,19 ou seja, ao se vincularem, as empresas20 têm em vista determinado escopo, que se mescla com a função económica que esperam o negócio desempenhe.

O segundo é que a empresa, ao contratar, parte do pressuposto que o negócio trar-lhe-á mais vantagens do que desvantagens. Pode até ser que essa perspectiva frustre-se no futuro - levando o agente económico ao rompimento do contrato - mas, no momento da celebração, ambas as partes acreditam que estarão "melhor com o contrato do que sem ele".

Por terceiro, como já observamos com Eros Roberto Grau, as partes, quando negociam e contratam, não tomam conforta-velmente assento diante de um código e escolhem, entre fórmulas preexistentes (i.e., tipificadas), aquela que mais lhes apraz. O negócio é formatado pelos empresários para a satisfação de suas necessidades económicas; daí que os contratos empresariais nascem da prática dos...

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