O princípio da constitucionalidade aplicável às organizações internacionais: (im)prescindibilidade do ato constitutivo

AutorRanieri Lima Resende
Páginas103-113

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Introdução

Em seu relatório sobre a responsabilidade das organizações internacionais por atos internacionalmente ilícitos, a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (CDI) adotou Page 104 premissa segundo a qual as organizações internacionais não precisam ser criadas necessariamente por intermédio de tratado, na medida em que admitida a utilização de "outro instrumento regido pelo direito internacional" para a institucionalização de tais entidades. 1 2

O posicionamento demasiadamente aberto da Comissão e da parte da doutrina especializada 3enfrenta sérios questionamentos à luz dos princípios da constitucionalidade e da especialidade, quando se trata da absoluta dispensabilidade do requisito "tratado" para a constituição de organizações internacionais.

Algumas observações evidenciam-se necessárias no tocante à opção conceitual feita pelo Special Rapporteur Giorgio Gaja e pela CDI no âmbito do projeto sob trato, tendo em vista que, ao afastarem a exclusividade do tratado constitutivo como instrumento indispensável para a instituição de uma organização internacional, deixaram completamente em aberto a questão dos limites normativos dos poderes e das competências da própria entidade.

A importância da questão sob debate atinge, conjuntamente, a seara da responsabilidade internacional. Na medida em que os atos institucionais contrários à norma fundamental da organização evidenciam-se juridicamente inválidos, configuram-se eles violações obrigacionais passíveis de enquadramento no campo do direito da responsabilidade, em face da sua qualidade de ato internacionalmente ilícito.

Sem um marco normativo de caráter constitucional, como fixar o prisma teleológico da organização internacional? E a limitação das competências institucionais do ponto de vista externo ou a própria legalidade interna de seus atos? Foram esses alguns questionamentos que impulsionaram a pesquisa empreendida e o relatório ora registrado no presente artigo.

1. Validade e nulidade dos atos jurídicos internacionais

Cumpre destacar, preliminarmente, a plena viabilidade de qualificar-se inválido um ato jurídico internacional, tendo em vista o fenômeno da subsunção a que se submetem as atividades dos sujeitos de direito internacional, sob o prisma da ordem normativa prevalente.

Essa premissa resulta da força normativa imanente ao direito internacional, na medida em que a noção de ordem jurídica pressupõe seu posicionamento autoritativo acima dos sujeitos normatizados, sem o qual não haveria que falar, sequer, na concepção de vínculos obrigacionais possíveis entre tais sujeitos. 4

Em curso ministrado perante a Academia da Haia no ano de 1949, Paul Guggenheim delimitou a classificação dos atos jurídicos internacionais em dois tipos básicos, sejam eles: atos nulos e atos inexistentes. 5

A diferença entre as duas categorias de atos centra-se no fato de o ato nulo pressupor sua constatação mediante a declaração constitutiva de sua nulidade por intermédio da manifestação exterior de um terceiro sujeito (v.g.: árbitro ou tribunal internacional), enquanto que o ato inexistente configura-se passível de aferição imediata e ex officio pela própria parte na relação jurídica especificamente considerada. Na hipótese do ato nulo, portanto, evidencia-se a problemática referente aos efeitos provisórios derivados do lapso temporal anterior à respectiva decretação de invalidade. 6

Em crítica incisiva ao denominado "ato inexistente", Robert Y. Jennings considerou a nomenclatura tecnicamente perversa, na medida em que, se determinado ato demonstra-se passível de ser classificado "inexistente" sob o prisma da efetividade, ilógico seria não levar em conta sua presença ontológica para o direito internacional e, subsequentemente, desprezar toda a série de efeitos jurídicos e antijurídicos dele derivados, inclusive no campo da responsabilidade internacional. Se o ato simplesmente não existe, incongruente falar-se nos incontestáveis efeitos dele derivados. 7

Outra classificação digna de nota foi adotada pelo Juiz italiano Gaetano Morelli em sua opinião individual registrada no âmbito do parecer consultivo Certain Expenses of the United Nations, perante a Corte Internacional de Justiça. 8 Apesar de considerada comum a divisão tricotômica da atividade jurídica em atos válidos, absolutamente nulos e anuláveis perante o direito administrativo estatal, este esquema não pode ser transladado automaticamente para o sistema das organizações internacionais sem as imprescindíveis adaptações. Page 105

Haja vista a ausência de remédios jurídicos equivalentes àqueles disponibilizados no direito estatal interno para o processo de anulabilidade dos atos administrativos, Morelli sustentou entendimento no sentido de que os atos das organizações internacionais somente se configuravam passíveis de classificação nas categorias dicotômicas de atos válidos e atos absolutamente nulos. 9

Ao final, a única distinção que aparenta ter utilidade no campo do direito internacional, pelo menos até o atual estado de desenvolvimento da matéria, sustenta-se no estabelecimento de apenas duas hipóteses elementares: atos válidos e atos nulos, consoante leciona Andrés Aguilar Mawdsley. 10

Nesse sentido, optou-se em não explorar o terceiro gênero vinculado ao conceito de anulabilidade, focado na manifestação volitiva adequada e tempestiva da parte juridicamente interessada no decreto de invalidade do ato internacional, consoante entendimento de Guggenheim. Ainda que extremamente interessante do ponto de vista científico, a questão vai muito além do foco dessa brevíssima explanação.

A partir da premissa segundo a qual os atos produzidos pelas organizações internacionais podem configurar-se, basicamente, válidos ou inválidos do ponto de vista jurídico, insta questionar-se a respeito da regência normativa interna que servirá de cotejo para o atestado de juridicidade ou de antijuridicidade da correspondente atuação institucional.

2. Hierarquia das fontes no direito das organizações internacionais

Em sede de direito internacional geral, eventuais conflitos entre proposições normativas em caso de incompatibilidade de conteúdo são resolvidos com base no critério cronológico (ius posterior derogat iuripriori), sem prejuízo da prevalência da lex specialis sobre os preceitos gerais, conforme entendimento admitido à guisa de princípio. 11

Acresça-se a tais critérios a sobreposição incondicional das normas ius cogens, por carregarem em si o irrefutável caráter imperativo geral. 12

Nada obstante o reconhecimento razoavelmente aceito acerca da hierarquia das normas no direito internacional, como na prevalência do ius cogens sobre o ius dispositivum 13 perante o direito das organizações internacionais, é possível vislumbrar um fenômeno bastante interessante focado na hierarquia das fontes, o qual encontra similitudes com alguns sistemas normativo-constitucionais estatais.

Portanto, configura-se viável considerar a existência de duas fontes normativas básicas de direito interno das organizações internacionais, sendo a primeira fundada no tratado constitutivo - que, de um modo geral, estabelece a estrutura orgânica, delimita as competências da entidade e determina os direitos e as obrigações dos Estados membros -, e a segunda, oriunda do direito instituído pelos órgãos institucionais em consonância com o escopo de sua autoridade.

Tendo em vista que referidas fontes normativas não se situam em um mesmo nível hierárquico, o direito primário fundado no ato constitutivo prevalece sobre o subsequente direito secundário de natureza derivada. 14

Aqui surge a questão referente ao caráter constitucional dos atos constitutivos.

3. Constitucionalidade e supremacia normativa

Ao falar-se em "constitucionalidade" no campo do direito das organizações internacionais, é preciso fazer algumas observações elementares diante da existência de uma diferenciação essencial entre as forças normativas interna e externa dos tratados constitutivos dessas instituições.

Se o caráter constitucional do ato constitutivo evidencia-se como marco jurídico condicionante dos atos e das normas produzidos no seio do ordenamento jurídico interno da própria entidade, a supremacia externa do tratado institucional não é fenômeno comum a todas as organizações internacionais indistintamente. 15 Page 106

Consoante análise feita por Thomas M. Franck, 16 em que utilizados conceitos oriundos do direito público comparado com forte inspiração no sistema constitucional estadunidense, a Carta das Nações Unidas atende às características essenciais de perpetuidade, indelebilidade, primazia e autoctonia institucional, razão pela qual se demonstra possível qualificá-la na condição de um tratado único, muito mais próximo a uma Constituição para a Comunidade Internacional, que a um acordo normativo-contratual de natureza ordinária.

Mesmo a configuração da Carta das Nações Unidas encontra similitude com os atos constitutivos de outras organizações internacionais, eis que materializa uma convenção intencionalmente direcionada à criação de uma entidade jurídica com direitos e responsabilidades autônomos em relação a seus membros.

No entanto, seu foco distintivo sob o prisma da hierarquia normativa externa situa-se no fator "supremacia", positivamente demarcado no Artigo 103, 17 que estabelece a prevalência das obrigações derivadas da Carta na hipótese de eventual incompatibilidade com vínculos jurídicos decorrentes de outros acordos internacionais.

Feitas tais considerações, a questão da constitucionalidade do...

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