Aplicaçáo extraterritorial da Lei antitruste

AutorLior Pinsky
Páginas130-141

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I Introduçao

A aplicagao extraterritorial de leis na-cionais a fatos ocorridos em países estran-geiros já nao é nenhuma novidade, ocor-rendo com razoável freqüéncia, principalmente no campo do direito concorrencial (ou direito antitruste).1 É assunto extremamente complexo e que vem suscitando apaixonadas discussoes, entre os que a de-fendem e os que a condenam.

Como será visto, existe no direito positivo brasileiro um dispositivo que permite a aplicacjío extraterritorial de nossa lei antitruste. Entretanto, muito pouco já se discutiu a respeito. O presente trabalho pretende, respeitadas as suas limitagoes, ajudar a suprir tal lacuna, Aqui tentaremos apresentar a possibilidade e os limites da aplicacjío extraterritorial, pelo Brasil, de sua lei antitruste.

Para tanto, seráo primeiramente ana-lisados os conceitos de soberania e territorio. Após, averiguaremos as hipóteses em que o direito internacional admite a aplica-gáo extraterritorial de leis. Entáo, passare-mos á análise do direito extraterritorial antitruste - justificativa, evolugáo histórica e situacjio atual (inclusive no Brasil). Em seguida, abordaremos a utilizagáo de tratados internacionais para "substituir" a aplicagáo extraterritorial. Finalmente, apresentare-mos nossas conclusóes.

2. Territorio e soberania

Para a compreensáo do assunto objeto deste trabalho, fazem-se necessárias al-gumas linhas sobre dois conceitos político-jurídicos importantes, intimamente ligados, que sao territorio e soberania. Vamos a eles.

A aplicagáo extraterritorial de leis pres-supóe que leis nacionais sejam aplicadas fora de seus limites territoriais. A nogáo de territorio nao é una. Paul Reuter2 defende a teoría do territorio-competencia: "Le ter-ritoire est un espace limité dans lequel l'État exerce des compétences, en principie

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genérales et exclusives". Celso D. de A. Mello3 define territorio como o local "onde o Estado exerce sua soberanía". É a teoría da soberanía territorial, mais recente que a anterior.

E o que é soberanía? Os Estados in-dependentes (inclusive o Brasil) possuem urna qualidade peculiar, reconhecida pelos demais Estados, que é serem Estados soberanos. Nesse sentido o art. Ia, I, da nossa Constituido Federal. Soberanía é a racio-nalizagáo jurídica do poder político. Este conceito experimentou urna evolugao significativa ao longo da historia das idéias. Seu significado, que já foi o de monopolio de determinados poderes pelo soberano,4 hoje em día se encontra esvaziado, principalmente pela colaboragáo internacional e pela críagáo de órgáos supranacionais.5 Al-guns autores a qualificam de "conceito meramente formal".6

Mesmo assim, a soberanía aínda com-preende o direito á igualdade jurídica, o direito á integridade territorial, o direito á li-berdade, o direito á independencia política, e o direito que cada nagáo soberana possui de escolher e desenvolver livremen-te seu sistema político, social, económico, cultural e de determinar suas leis e regula-mentos.7

3. Leis extraterritoriais em geral

Definidos os conceitos de territorio e soberanía, passemos agora a análise das leis com aplicaclo extraterritorial.

Em principio, a leí de um país é apli-cável somente dentro de seu territorio. Isto ocorre porque todos os Estados sao iguais e nenhum pode impor qualquer coisa a ou-tro. Ou seja, pois respeita-se, ainda, a soberanía externa dos Estados.

Nem sempre é assim. Em determinadas situagoes, o direito internacional admite que a lei de um país se aplique a fatos ocorridos em outro, independentemente de qualquer condigno subjetiva do agente a quem a leí se dirige.

O mais obvio dos exemplos está no direito penal. Embora a regra geral seja a aplicagáo do principio da competencia territorial (o delito deve ser punido no territorio do Estado em que foi praticado), existe também o principio da competencia real, ou da defesa, aplicado em casos especiáis. Por este principio, o que determina a apli-cacçao da leí penal é a nacionalidade do bem atingido pela agáo delituosa, nao importando onde ela seja praticada nem a nacionalidade do agente. Assim, "procura-se suprir lacunas (...) na tutela de bens ou in-teresses de especial relevancia para o Estado".8

O art. 7° do Código Penal brasileiro determina a aplicagáo da nossa lei penal a certos fatos praticados no estrangeiro. Cri-mes contra a vida ou a liberdade do Presidente da República, e crimes contra o patrimonio ou a fé pública da Uniao, que sao considerados pelo nosso direito positivo como de especial relevancia, sao regidos pela lei brasileira. Pouco importa a nacionalidade do agente, o local da prática do ato e outras circunstancias.

Nao nos parece que a aplicagáo extraterritorial de determinadas leis extrema-

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mente importantes fira o conteúdo da soberanía. Pelo contrario, so a fortalece. E nao nos parece razoável que qualquer na-gáo se oponha a esta aplicado extraterritorial. O problema surge quando se pretende aplicar, extraterritorialmente, leis com interesses prevalentemente económicos, como as leis antitruste. Sobre isso falare-mos nos tópicos seguintes.

4. Direito antitruste extraterritorial

No inicio, as legislagóes antitruste em geral so consideravam ilícitos antitruste os atos ocorridos dentro do seu país.9 Com o tempo, ficou claro que urna agao ou omis-sáo de um cidadáo de um país poderia ter efeitos fora deste local. Isso se agrava pelo fato de que as legislagóes antitruste nació-nais tém natureza protecionista ou egoísta - so se preocupam realmente com os mercados nacionais (ou com exportadores nación ais).1011

Assim, de nada adiantaria regular internamente os mercados, se alguém neles pudesse influir externamente, e impunemente.

A aplicagao extraterritorial da lei antitruste (ou algo que tenha o resultado pretendido por tal aplicagáo) é indispensável, por pelo menos tres motivos:12

(a) urna doutrina que a negasse poderia acarretar na criagáo de paraísos anti-concorrenciais - países com legislagao antitruste inexistente ou amena, de onde po-deriam ser efetuadas praticas destruidoras da concurrencia, visando outras nagóes;

(b) mesmo que todos os países tives-sem leis antitruste, as decisóes de um país tendem a ser menos rigorosas quando o impacto é sentido total ou predominantemente no exterior; e

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(c) os países tém visoes diferentes da forma de aplicado da legislagáo antitruste.13

Como veremos, deverá ocorrer a apli-cagáo extraterritorial sempre que os efeitos de um ato proibido ou controlado pela le-gislagáo antitruste de um país sejam sentidos naquele país. Assim, deverá ser aplicada tanto em face de condutas ilícitas (p, ex., divisao de mercados) como de estru-turas indesejadas (como a decorrente da fusáo de duas competidoras, resultando num quase monopolio).

A apiicagáo extraterritorial do direito antitruste vem experimentando importantes evolugóes, em um curto espado de tempo. Vejamos:

4. 1 Estados Unidos

Os Estados Unidos da América sao o país com o mais farto material sobre o objeto deste estudo. O caso precursor nessa materia, American Banana Co. u United Fruit Co.,14 julgado pela Corte Suprema norte-americana, negou a jurisdigáo extraterritorial pretendida. O Juiz Holmes, em famoso voto, afirmou que "a regra geral, quase universal, é de que o julgamento de um ato como legal ou ilegal deve ser determinado totalmente pela lei do país onde tal ato foi praticado". Como os atos do réu nao eram ilegais face a lei do Panamá ou da Costa Rica, nao eram ilegais.

Tal opiniao da Supreme Court norteamericana permaneceu inconteste até 1945. É desse ano o leading case favorável a aplicado extraterritorial da legislagáo antitruste: United States u Aluminum Co. of America (Alcoa).15

Em Alcoa, algumas fabricantes de aluminio foram acusadas de dividir o mercado mundial de materias-primas e aluminio pronto. A opiniao do Juiz Learned Hand, radicalmente contraria á decisáo em American Banana, foi de que "it is settled law that any state may impose liabilities, even upon persons not within its allegiance, for conduct outside its borders that has conse-quences within its borders which the state reprehends; and these liabilities other sta-tes will ordinariiy recognize" (grifamos). Evidentemente, as demais nagóes nao con-cordaram com o magistrado e protestaram contra essa amplíssima orientagáo que, nao obstante, foi seguida em decisoes posteriores de cortes norte-americanas.

A jurisdigáo praticamente irrestrita prevista em Alcoa continuou sendo usada por um razoável período de tempo, com maior óu menor intensidade.16 Em 1965, com a edigáo do Restatement (Second) of the Foreign Relations Law of the United States, determinou-se que os efeitos nos EUA deveriam ser substanciáis e o resultado direto e previsível da conduta praticada fora do territorio. A doutrina exposta neste Restatement deu margem a criagao da doutrina do interest balancing, que será anali-sada abaixo. Ainda assim, muitos países e seus tribunais nao consideravam as decisoes americanas justificadas. Causava especial revolta o fato de que condutas legítimas em determinados países soberanos eram proibidas pela legislagao dos Estados Unidos. Contribuía para aumentar a indig-nagáo (a) o fato de que, nos Estados Unidos, sao devidas a título de sucumbéncia em agoes antitruste privadas perdas e da-

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nos triplicadas (treble damages); e (b) a amplitude de documentos requerida, o tem-po e os gastos incorridos pelos que se en-contravam na posicjio de réus em aqóes an-titruste nos Estados Unidos.

A orientado de Alcoa so saiu definitivamente de cena com o desenvolvimento das comity considerations17 doutrina esta que teve clara e pioneira exposigáo em Timberlane Lumber Co. u Bank of America National Trust &. Savings...

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