Apesar da pena: execução penal e redução de danos

AutorDaniel Fonseca Fernandes - Lucas Vianna Matos
CargoAluno Especial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: danielfonsecafernandes@outlook.com - Mestrando em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia...
Páginas158-183

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Daniel Fonseca Fernandes1

Lucas Vianna Matos2

Recebido em 4.4.2016

Aprovado em 12.5.2016

Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão teórica em torno do direito de execução penal, compreendendo-o enquanto conjunto de normas, conceitos e práticas que orientam a imposição da pena de prisão e que, a partir de uma concepção agnóstica e negativa da pena, deve funcionar como elemento limitador dos seus efeitos deletérios. Pensando a execução penal a partir da violência exacerbada do sistema prisional brasileiro, o artigo articula uma crítica do direito de execução penal, analisando pontos problemáticos deste campo jurídico no Brasil, e empreendendo esforço teórico para não cair na armadilha legitimante das ideologias “re”. Objetiva-se, assim, abrir uma fissura no discurso jurídico hegemônico, possibilitando que a execução penal seja pensada a partir da lógica de redução dos danos intrínsecos à experiência prisional.

Palavras-chave: criminologia crítica; concepção agnóstica da pena; execução penal.

Abstract: This paper proposes a theoretical reflection about sentence execution and its procedure, understanding it as a set of standards, concepts and practices that guide the imposition of a prison sentence and that, from an agnostic and negative conception of penalty, must function as a limiting factor of the its harmful effects. This study analyzes the sentence execution from the violence of brazilian penitentiary system, articulating a critique of the process of sentence execution, identifying trouble spots of this legal field in Brazil, and making a theoretical effort to don’t fall into the trap of legitimating ideologies "re". The purpose is thus open a crack in the hegemonic legal discourse, enabling the sentence executing process to be thought from the perspective of reduction of the intrinsic damages in the prison experience.

Keywords: critical criminology; agnostic conception of penalty; sentence execution process.

Introdução

A conjuntura da execução penal no Brasil revela um quadro grave de violação sistemática de direitos. De um lado, observa-se um sistema prisional no qual os efeitos

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deletérios sobre as vítimas da experiência carcerária são intensificados diante dos níveis extraordinários de violência física e simbólica que marcam o seu desenvolvimento histórico.

Por outro lado, o discurso jurídico-penal parece paralisado diante desse quadro, incapaz de assumir responsabilidades e propor alternativas. Existe certo consenso discursivo no Brasil em torno da execução penal. O discurso jurídico costuma utilizar a lei nº 7.220/84, Lei de Execução Penal (LEP), para exemplificar jargão muito comum em nosso país: a ideia de que o Brasil tem boas leis, mas que por diversos motivos – ineficiência da administração, falta de vontade política, corrupção etc. – não são devidamente aplicadas. Nessa toada, multiplicam-se os discursos de que o Brasil tem uma lei de execução penal avançada, moderna e humana, que – por uma fatalidade qualquer – não é aplicada.

O discurso jurídico-penal, assim, evita o debate em torno da execução, desprezando o fato de que a questão prisional é, especialmente na nossa margem, um dos principais eixos de deslegitimação do sistema penal. Este discurso jurídico hegemônico, reticente em enfrentar o grave processo da deslegitimação, assume, na linguagem proposta por Zaffaroni (2001, p. 11/45), uma atitude que evita o enfrentamento do problema e a assunção de responsabilidades, escorando-se na noção de que a legislação é “avançada”, como verdadeiro mecanismo de fuga.

Neste contexto, há outro discurso jurídico, que pretende impor ao campo da criminologia e do direito penal crítico uma falsa dicotomia, objetivando desmoralizar a crítica deslegitimadora da prisão. A tese central é que diante da situação do sistema prisional não há espaço para a crítica estrutural à pena de prisão. Opera-se, assim, uma tradução para o campo penal do mito neoliberal do “fim da história”. Este discurso acusa os setores críticos de não oferecerem caminhos concretos para superação da dramática situação do sistema prisional, encarando-o como obstáculo a medidas como a construção de novos presídios, intensificação do uso de monitoramento eletrônico e, especialmente, iniciativas de privatização de presídios.

Entendemos que o reconhecimento da deslegitimação da pena de prisão é um imperativo ético-político, diante da empiricamente demonstrada incompatibilidade entre seus discursos legitimantes e o seu desempenho histórico real. O discurso deslegitimador, todavia, também por um imperativo ético não é imobilista, nem tampouco idealista. Deve ser crítico e propositivo, deslegitimador do cárcere e orientado por uma utopia abolicionista, em sentido positivo, mas disputada a partir da reforma progressiva e permanente do sistema prisional,

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sempre atento às possibilidades reais de cada conjuntura histórica (MATHIESEN, 2003, p. 88).

Na perspectiva de buscar alternativas à esta (falsa) dicotomia e assumindo a responsabilidade diante do atual quadro da nossa execução penal, é que este trabalho se apresenta como uma aproximação ainda inicial em torno do tema, no sentido do desenvolvimento de uma execução penal como mecanismo político-criminal e jurídico-penal de redução dos danos intrínsecos à experiência prisional.

A execução penal e seu processo só se justificam quando colocados como obstáculos aos efeitos perversos da pena, na contramão da institucionalização do sujeito, sem lhe conferir, no entanto, qualquer efeito positivo. A adoção de uma concepção negativa e agnóstica da pena, no campo da execução penal, deste modo, parece se realizar a partir de uma dupla perspectiva: necessidade de incorporação radical das garantias jurídicas formais ao campo da execução (afastando-se do obscuro direito penitenciário) e propositura de alternativas que reduzam os efeitos negativos da pena, buscando reduzir a incidência das inevitáveis consequências prisionais.

Criminologia e deslegitimação do sistema penal
2.1. Pensar com a criminologia

Para compreender a deslegitimação do sistema penal e do cárcere, é preciso ter como ponto de partida o instrumental oferecido pela produção do saber criminológico e a problematização das teorias da pena, tidas como suporte discursivo deste sistema. Sem pretender realizar um panorama histórico das diversas criminologias e suas implicações, este estudo tem como marco teórico sua vertente crítica e as desconstruções radicais de autores abolicionistas. Deste modo, a criminologia é encarada como “ferramenta de leitura da realidade”, pelo que pretendemos “pensar com a criminologia”, sem realizar a mera descrição de suas teorias (CARVALHO, S., 2013, p. 41/45).

Reconhecemos, sem medo das desqualificações que buscam tratar a produção crítica enquanto ideológica, que a criminologia apresenta sempre conteúdo político e envolve a disputa por posições acerca do sistema penal e suas consequências. Deste modo, rejeitamos a criminologia enquanto “regulador apolítico, técnico-científico” (RAUTER, 2003, p. 58).

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Portanto, para articular um pensamento criminológico crítico, com intuito de propor e induzir mudanças no sistema penal, em especial no campo da execução penal no Brasil, tomamos como ponto de partida três eixos de premissas: a criminologia crítica, as rupturas radicais do abolicionismo penal e o realismo marginal latinoamericano.

O primeiro eixo de premissas diz respeito aos deslocamentos produzidos pela criminologia crítica, com base na obra de Alessandro Baratta. Partindo das rupturas geradas pelo interacionismo simbólico e pela obra de Marx, a criminologia crítica contrapõe-se à criminologia positivista de enfoque biopsicológico, através de dois importantes processos: deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas (estruturais e funcionais) e deslocamento da busca pelas causas do crime para análise de mecanismos institucionais e sociais que aplicam e criam as definições de criminalidade e processos de criminalização (BARATTA, 2002, p. 160/161). O crime é desnaturalizado, destacando-se a seletividade problemática de bens protegidos e pessoas atingidas pelo sistema penal.

O segundo eixo, consiste na incorporação das críticas de autores abolicionistas como Thomas Mathiesen, Louk Hulsman, Angela Davis e Nils Christie. O que é de central na obra destes autores é a compreensão de que a justiça penal não é resposta legítima para situações problemáticas e tem característica de problema público (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 157). Deste modo, não é mecanismo apto à resolução de conflitos, mas se apresenta como causa de tantos outros, como desagregação de células familiares, perda de laços afetivos, redução do espaço sociabilidade, submissão a intenso controle policial e exposição à violência de grupos diversos que disputam os espaços de poder nas instituições carcerárias.

A prisão – pena que ocupa posição central na grande maioria dos sistemas penais (formais) contemporâneos – se apresenta como um universo artificial onde tudo é negativo, se apresentando como um sofrimento estéril, não criativo, desprovido de sentido (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 62). No currículo oculto do sistema penal, nega-se legitimidade a uma série de alternativas que deveriam ser consideradas para resolução de conflitos. Através do discurso contra a arbitrariedade das decisões, o sistema barra soluções alternativas...

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