Aparência de representação: ainsustentabilidade de uma teoria

AutorFábio Konder Comparato
Páginas39-44

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  1. Ao contrário do que comumente se imagina, os desvios de raciocínio jurídico não costumam provir de dificuldades no reconhecimento de exceções aos princípios, mas sim da não aplicação dos próprios princípios, mesmo os mais elementares.

    Assim ocorre, frequentemente, com o princípio fundamental, expresso no art. 49 da Lei de Introdução ao Código Civil e no art. 126 do Código de Processo Civil, de que o juiz decidirá a lide com base na lei, somente podendo recorrer às demais fontes do direito em caso de omissão legal. A lei, como fonte primária do direito, deve ser aplicada de forma direta ou indireta, ou seja, a partir da expressa determinação de suas normas, ou mediante uma interpretação analógica. E somente quando se verificar claramente uma lacuna legal que o juiz está autorizado a invocar o costume ou os princípios jurídicos.

    Mas em que consiste a lacuna da lei?

  2. A literatura jurídica nacional pouco se demorou na análise e definição do que seja uma lacuna legal. Prevaleceu, aqui como em vários outros campos da técnica jurídica, a noção correspondente ao sentido comum do vocábulo: a lacuna seria, simplesmente, uma falha, uma omissão do ditado normativo.

    Ora, essa acepção comum do vocábulo é manifestamente imprestável para o processo de interpretação e aplicação do direito. A lacuna, num texto legal, não é uma omissão qualquer, mas uma omissão qualificada pelo concurso de certas características determinadas.

    Partindo-se do pressuposto lógico de que a ordenação jurídica constitui um sistema, isto é, um conjunto ordenado de elementos interdependentes, cada parte componente desse sistema-por exemplo, cada "ramo" do direito - forma, em si mesma, um subsistema. Segue-se, daí, que a existência ou não de lacunas só pode ser apreciada no quadro sistemático dessa ordenação legal e, nunca, nos limites de um texto isolado ou de um diploma legal destacado do conjunto.

    Nos países pertencentes ao chamado sistema jurídico romano-germânico, em que a fonte primária do direito é a lei, a verdadeira lacuna é uma descontinuidade ou falha no próprio sistema ou plano ordenado da legislação.1 Não há, portanto, rigorosamente falando, lacuna legal, quando é possível decidir uma questão mediante o re-

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    curso à analogia, pois esta representa uma operação lógica de busca, dentro do próprio sistema, da norma genérica, isto é, daquela que se situa, logicamente, acima da norma específica para um caso semelhante.2

    Importa, ademais, salientar que o sistema legal deve ser considerado em si mesmo, sem qualquer juízo de valor por parte do intérprete. Não é lacuna da lei a solução legislativa que o intérprete considere injusta ou inepta, de acordo com o seu critério pessoal de justiça ou congruência.3 No sistema democrático de separação dos órgãos de poder no Estado, o Judiciário não está autorizado a mudar o sentido da lei, pois esta é sempre tida como manifestação da soberania popular. O Judiciário introduziria grave desordem no sistema constitucional, se ousasse usurpar o poder, atribuído pela Constituição exclusivamente aos representantes do povo soberano, de editar regras legais.4

    Tampouco se confundem com as veras e próprias lacunas as omissões voluntárias do legislador, que atribui ao juiz a função de preenchê-las.5 "O juiz", dispõe o Código de Processo Civil (art. 127), "só decidirá por equidade nos casos previstos em lei".

    Não se trata pois, aí, contrariamente à opinião de certos autores,6 de um processo de "heterointegração" da lei, uma vez que é esta própria que assim o determina.

    Da mesma forma, não se pode falar de heterointegração, em nosso sistema jurídico, quando a lacuna legal é preenchida por meio do recurso ao costume ou aos princípios gerais de direito, pois isto também resulta de um comando legal (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 49). Para que se recorra a essas fontes secundárias, é sempre preciso, obviamente, que se esteja diante de uma verdadeira lacuna da lei, no sentido que se acaba de expor.

  3. Dentro do sistema do direito privado, costuma-se dizer que o instituto da representação tem base ou na lei, ou na vontade negociai. Mas essa classificação não é exata: ela deixa de lado uma terceira espécie, em que a representação funda-se, con-comitantemente, na lei e na vontade do representado.

    O protótipo da representação puramente negociai é dado pelo contrato de mandato, por força do qual "alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses" (Código Civil, art. 1.288). Aqui, tudo depende da vontade do mandante, não só quanto à determinação dos poderes conferidos ao mandatário, mas também no tocante à duração da relação contratual.

    Entre nós, já se apontaram as disposições dos arts. 1.318 e 1.321 do Código Civil como exceções ao princípio da vontade auto-regradora do mandante, para com base nelas fundar a teoria da representação aparente,7 mas o raciocínio é incorreto. Partiu-se de uma deficiente análise do negócio jurídico que põe fim à relação de mandato. Deixou-se de levar em consideração o fato

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    óbvio...

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