Antigos' e 'novos' no jornalismo brasileiro dos anos de 1980 e 1990: uma identidade profissional em disputa

AutorAlexandre Bergamo
CargoProfessor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Páginas337-368
DOI: https://doi.org/10.5007/175-7984.2020v19n45p337
337337 – 368
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“Antigos” e “novos” no
jornalismo brasileiro dos anos de
1980 e 1990: uma identidade
prossional em disputa1
Alexandre Bergamo2
Resumo
O presente artigo discute como, nos anos de 1980 e 1990, foram delineadas importantes formas
de dominação e estratégias simbólicas no jornalismo brasileiro. Para tanto, discute as mudanças
no mercado de trabalho dos jornalistas, o impacto da exigência legal do diploma para o exercício
da prossão, a ampliação do número de escolas e a importância da adoção de regras próprias para
a redação jornalística visando à consolidação de um modelo de trabalho e de escrita prossional.
Mostra como no conito entre “antigos” e “novos” jornalistas, que marcou o período, estavam
em jogo modicações nas formas de trabalho e de percepção do ofício, nos critérios de hierarqui-
zação e de recrutamento social, assim como em sua identidade prossional.
Palavras-chave: Jornalismo brasileiro. Identidade prossional. Diploma de jornalismo. Campo
do jornalismo. Sociologia da cultura.
1 Introdução
O jornalismo é uma atividade prossional que se dene – autodene
– pela “produção de notícias”. Embora esta seja, nos dias de hoje, a deni-
ção mais aceita para a prossão, não é a única. Durante muito tempo, sua
principal denição foi a “reportagem”: a busca de informações “verídicas”
1 Esta pesquisa foi desenvolvida com recursos de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ-2).
2 Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Contato: a_bergamo@hotmail.com.
Antigos” e “novos” no jornalismo brasileiro dos anos de 1980 e 1990: uma identidade prossional em disputa | Alexandre Bergamo
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e o esclarecimento público das questões políticas e sociais. Embora a “re-
portagem” ainda seja considerada a “denição clássica” para a prossão,
sua essência mesma, impera nos dias de hoje a visão de que o jornalismo é
“noticioso” (BERGAMO, 2011). Entre os dois termos, parece não haver
muitas diferenças. Anal, a informação de que se se reveste um jornal pode
ser tanto “notícia”, uma vez que anuncia e trata de novos acontecimentos,
quanto uma “reportagem” ou o resultado de um trabalho de apuração es-
pecicamente jornalístico.
No entanto, entre os próprios jornalistas, “notícia” e “reportagem” são
termos que designam práticas de trabalho e, principalmente, de escrita
distintas. Escrever uma “notícia” não é equivalente a escrever uma “repor-
tagem”. Não se trata, portanto, de uma mudança terminológica de menor
signicação. Ao contrário, as transformações que podem ser observadas
nos usos e na variação de signicados e de importância entre os dois termos
são reveladoras de uma série de mudanças na prossão: nas suas condições
de trabalho, nos seus critérios de inserção e de legitimação prossionais,
em sua própria identidade prossional.
A introdução, em certo mercado de trabalho, de novas atividades e a
eliminação de outras tantas tendem, sempre que ocorrem, a tensionar os
modelos de exercício prossional então existentes, deles exigindo ajustes
e reformulações. No caso do jornalismo brasileiro, a “reportagem” conti-
nua sendo a “denição clássica” para se pensar a prossão. No entanto, a
armação, hoje, de que o jornalismo é “noticioso”, se lembrarmos de que
“notícia” e “reportagem” correspondem a gêneros diferentes de escrita e de
tratamento dos fatos, tende a tensionar a “denição clássica” para o ofício
e, com isso, também sua própria identidade prossional.
Mais do que tão somente gêneros jornalísticos, “notícia” e “reporta-
gem” traduzem as desigualdades das posições ocupadas no interior da pro-
ssão a partir dos anos de 1980 (BERGAMO, 2014). Especicamente no
caso brasileiro, em que o diploma de jornalista foi uma exigência legal para
o exercício da prossão, que vigorou de 1969 a 2009, produziu-se uma
tensão capaz de opor não apenas a “notícia” e a “reportagem”, mas capaz
igualmente de opor, de um lado, as empresas de informação e, de outro, as
escolas de jornalismo.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 45 - Mai./Ago. de 2020
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A linguagem jornalística, tema insistentemente discutido nesse perío-
do, passou a ser fortemente modelada por relações hierárquicas e por cri-
térios de legitimação, fossem estes pensados dentro de um mesmo veículo
ou uma empresa de comunicação, fossem entre os diferentes veículos que
estruturam a “indústria da informação” – a qual opera em nível nacional
ou, mesmo, internacional. A ideologia da “objetividade”, dos “fatos pelos
fatos”, no entanto, tendeu a mascarar a desigualdade das formas de utili-
zação da linguagem imposta pelas regras de dominação próprias ao ofício,
desviando sua atenção (BERGAMO, 2011, 2014; MIGUEL; BIROLI,
2010; BIROLI; MIGUEL, 2012).
A exigência do diploma para o exercício da prossão, a crescente cen-
tralização da indústria da informação no Brasil, a sistematização do traba-
lho prossional sobre a escrita e a ampliação do mercado de trabalho para
além das atividades desenvolvidas na imprensa foram algumas das transfor-
mações pelas quais passou o jornalismo brasileiro e que estavam no centro
das controvérsias desses prossionais. O resultado disso foi um rearranjo
em suas relações de poder, em sua identidade prossional e, também, no
lugar ocupado pelo jornalismo na dinâmica cultural brasileira. São tensões
que repercutiram e modelaram as formas jornalísticas, suas relações de po-
der e seus critérios de legitimidade, assim como os nexos entre a prossão,
a política e a cultura3.
Neste artigo, serão discutidas algumas das transformações ocorridas
nos anos de 1980 e 1990, em especial aquelas relativas ao trabalho na
imprensa escrita. Sem pretender desprezar as mudanças ocorridas no te-
lejornalismo4, que passou igualmente por uma signicativa transformação
no mesmo período, o objetivo principal deste texto é compreender, em
linhas gerais, as relações de poder e as tensões produzidas na relação entre a
3 Estou me baseando, aqui, para a análise dos nexos entre a forma jornalística, suas relações de poder e as transfor-
mações sociais, nos problemas e nos métodos próprios à sociologia da cultura (AUERBACH, 1998; WAIZBORT,
2004; ELIAS, 2001; BOURDIEU, 1996).
4 Para uma análise mais detida da linguagem, dos critérios de seleção de informações e das relações de poder no
telejornalismo brasileiro, ver Bergamo (2011). Em termos “estruturais”, as análises e conclusões deste texto a
respeito das relações de poder e das tensões entre as empresas de comunicação e as escolas de jornalismo são,
em grande medida, extensivas ao telejornalismo. Contudo, as demais características, aquelas mais especícas do
telejornalismo, não serão discutidas neste artigo.

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