Antecedentes, para os fins do art. 59 do Código Penal

AutorRenato Marcão
CargoJurista. Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo
Páginas145-155

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1. Introdução

Tarefa árdua e tormentosa, a individualização judicial da pena - garantia fundamental disposta no art. 5º, XLVI, da CF - configura momento sensível da prestação jurisdicional, ainda hoje falho em boa parte dos processos, e o quadro se revela ainda mais preocupante nos contornos da quase inexistente individualização execucional.

Por aqui, deveriam ser consideradas com mais acuidade algumas das preocupações criminológicas de Garofalo2, Mezger3, Beristain4, Baratta5, Figueiredo Dias e Costa Andrade6, dentre outros que se dedicaram ao tema, bem como variados aspectos da penologia magistralmente enfrentada por Bentham7e Mir Puig8.

Seja como for, procedente a ação penal, encontramos no art. 59, caput, do Código Penal, regras gerais norteadoras da dosimetria da pena, escolha do regime prisional a ser fixado, bem como elementos que devem ser valorados pelo julgador a fim de melhor concluir se, no caso concreto, se apresenta indicada, ou não, a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, quando se apresentar cabível.

Conforme o dispositivo invocado, para tais deliberações, ao proferir condenação o magistrado deverá levar em conta a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do delito, bem como o comportamento da vítima.

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Complexo como se apresenta o dispositivo, vem de longa data as discussões que se estabeleceram, na doutrina e na jurisprudência, a respeito do melhor alcance a ser dado a cada um dos aspectos valorativos apontados.

Não bastassem as dificuldades para encontrar a melhor interpretação teórica, na prática a situação se agrava, e muito, em razão da fraca/ insuficiente (muitas vezes inexistente) colheita de prova a respeito das norteadoras apontadas, de modo a desprestigiar ou negar plena incidência ao princípio da individualização da pena, que embora dotado de inegável eficácia jurídica, tem sua existência marcada pela ineficácia social, frente ao caso concreto.

Na grande maioria dos processos, por força de condenável e generalizada despreocupação, não ocorre adequada apuração da conduta social do acusado, compreendida esta como seu proceder na vida cotidiana; seu agir rotineiro no meio em que vive, e eventual influência que seu "estilo de vida" possa ter na realização do delito imputado. A personalidade do agente - de difícil e extremamente complexa aferição - não constitui objeto de investigação profissional e por isso não é verdadeiramente sopesada. Sobre tal elemento de individualização, no mais das vezes o julgador, desprovido de conhecimentos técnicos que o habilitem a conhecer a personalidade do agente e a ela se referir com propriedade científica, se permite apontar algumas conclusões por ele tiradas da própria conduta imputada e também das circunstâncias em que o delito foi praticado, mas, convenhamos que, por melhor que seja a intenção a empolgar tal proceder, tais apontamentos dizem pouco ou quase nada a respeito da personalidade do agente, quando muito, aferível após longo e meticuloso trabalho levado a efeito por profissionais habilitados e equipe multidisciplinar composta por psicólogo, psiquiatra e assistente social, tal como reconhecido, por exemplo, nos arts. e da LEP.

Alvino Augusto de Sá ensina a esse respeito que "o exame de personalidade não se volta para o ‘lado criminoso’ do condenado, mas, sim, para sua pessoa, na sua realidade integral e individual, incluída aí toda sua história de uma pessoa, e não mais de um criminoso"9.

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Para agravar o quadro, não é muito diferente no tocante à real apuração e valoração da culpabilidade, dos motivos, das circunstâncias e consequências do delito, bem como do comportamento da vítima, sendo valiosas, por aqui, as reflexões de Pellegrino10e Moura Bittencourt11, dentre outros.

Emoldurado por tais inquietações, assim caminha, em regra, o processo individualizador frente aos casos concretos. É preciso admitir; não dá para negar esta triste e perigosa realidade estampada na rotina judiciária-penal, a desconsiderar a advertência de Ferri no sentido de que "a individualização deve ser tecnicamente sistematizada"12.

Mas não é só.

Ainda nos quadrantes do art. 59 invocado, constitui objeto de profunda discussão determinar o que se deve entender por antecedentes, para as finalidades inicialmente apontadas.

Doutrina e jurisprudência fundamentadas em interpretação constitucional e sistêmica do dispositivo divergem do posicionamento adotado por aqueles que, data venia, procuram emprestar interpretação meramente gramatical e que, convenhamos, atende melhor aos ideais de endurecimento no trato judicial das questões penais.

Antes de apontarmos nossa conclusão (já sinalizada) a esse respeito, é preciso enveredar por algumas considerações, como as dispostas nos tópicos que seguem.

2. Princípio da presunção de inocência e favor rei

Dispõe o art. 9º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) que "todo acusado é considerado inocente até ser considerado culpado."13Nessa mesma linha de pensamento, diz o art. 8º, § 2º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada pelo Brasil por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1993, que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprovar legalmente sua culpa", regra também disposta em outros textos internacionais.

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Essa presunção de inocência, estado de inocência14ou presunção de não culpabilidade também está assegurada no art. 5º, LVII, da CF, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

A rigor, o dispositivo constitucional não fala em "presunção de inocência", mas em "não culpabilidade", daí a existência de discussão doutrinária com vistas a definir o real alcance da garantia em questão.

Nesse particular, conforme leciona Gustavo Badaró: "Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade. As expressões ‘inocente’ e ‘não culpável’ constituem somente variantes semânticas de um idêntico conteúdo. É inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias - se é que isso é possível -, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas. Procurar distingui-las é uma tentativa inútil do ponto de vista processual. Buscar tal diferenciação apenas serve para demonstrar posturas reacionárias e um esforço vão de retorno a um processo penal voltado exclusivamente para a defesa social, que não pode ser admitido em um Estado Democrático de Direito"15.

Milita em favor de todo acusado a presunção relativa (juris tantum) de que é inocente em relação ao cometimento do delito imputado, de tal modo que a garantia constitucional remete ao acusador o ônus de produzir prova em sentido contrário. Bem por isso, a advertência de Gimeno Sendra16no sentido de que a carga material da prova incumbe exclusivamente ao acusador.

La Ley fundamental - ensina Mayer - "impide que se trate como si fuera culpable a la persona a quien se le atribuye un hecho punible, cualquiera que sea el grado de verosimilitud de la imputación, hasta tanto el Estado, por intermedio de...

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