Antecedentes aos princípios constitucionais do art. 4º no processo de integração do brasil ao mercosul

AutorFernanda Eduardo Olea do Rio Muniz - José Filomeno Moraes Filho - Antônio Walber Matias Muniz
CargoMestranda em Direito (PPGD-UNIFOR 2017). Especialista em Direito Internacional (UNIFOR-2014) - Doutor (USP-2011) Professor do PPGD da Universidade de Fortaleza - Pós-Doutorando (UNB, 2017). Doutor em Integração da América Latina pela USP (2015). Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR (2008)
Páginas139-161

Page 140

Ver Nota1234

Considerações iniciais

É aceitável que o processo de integração regional na América do Sul, segundo o formato que se apresenta nos dias atuais, possui relação direta com o marco mundial da globalização, a qual vem ditando o ritmo do desenvolvimento humano desde os anos 1970. A revolução nos meios de comunicação, advinda do processo de globalização, foi e continua sendo um meio de redução de distâncias geográficas e inevitável aproximação econômica, política e cultural entre estados e pessoas. Dessa forma, as barreiras fronteiriças deixaram de existir e o contato físico entre povos diferentes se estreitou por meio do desenvolvimento da tecnologia, com destaque também para os meios de transporte e comunicações a um custo baixo, resultando desse novo cenário a formação de comunidades globais e regionais a exemplo do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL ou Mercosul). Porém, a ideia de integração surgida em 1823 e ampliada nos meios acadêmico-científicos nos anos 1980 parece-nos fazer perceber que trilharia caminho diferente daquele que se apresentou a partir de 1991 com o Tratado de Assunção.

Dessa forma, pode-se questionar que o processo de integração do Mercosul, o qual inclui o Brasil, não tem no Tratado de Assunção o seu principal ponto de partida. Nem esse Tratado, da forma como foi concebido em 1991, chega a representar as ideias discutidas a partir de 1823, tanto destacadas por Saraiva (1995,
p. 34-42) ao mencionar sobre a concepção da Doutrina Monroe, quanto às ideias defendidas por representantes da comunidade científica brasileira, conduzidas por Ennio Candotti, por exemplo, quando entabulava, por diversas reuniões com representantes da comunidade científica argentina no decorrer dos anos 1980, sobre a formulação de um formato de integração entre países sul-americanos. Formulação essa facilmente identificada em relatos contidos na Revista Ciência Hoy, na narrativa feita pelo físico brasileiro Ennio Candotti, em julho de 2017 (online). Em ambos os casos, se consideradas as argumentações em cada momento histórico defendidas, elas poderiam ter resultado num formato diferente de integração, ou seja, não teríamos chegado, a partir de 1991, a uma integração limitada a aspectos somente de cunho econômico e/ou comercial.

Considerando esse cenário de aproximação de estados diversos no cone sul, tem-se como objetivo neste artigo demonstrar os fatos que antecederam o processo de integração que culminaram na formulação do Mercosul, até a inclusão no artigo 4º e parágrafo único da Constituição da República Federativa do Brasil/1988, que

Page 141

rege os princípios das relações internacionais brasileiras e a formalização jurídica da participação constitucional do País no processo de integração do Mercosul.

Nesse longo e discutível processo de integração regional, a narrativa aqui pretendida se inaugura, portanto, em 1823 e transita pelo período imperial brasileiro, no reinado de Dom Pedro II, destacando principalmente o empenho diplomático e estratégico do Visconde do Uruguai para a paz na bacia do Rio da Prata, no período em que o ditador argentino Juan Manuel de Rosas pretendia monopolizar a região, envolvendo sinteticamente a situação de cada um dos países que, a partir desse período, viriam a constituir um bloco de integração regional em 1991. Inclui-se um levantamento em cada Constituição brasileira, desde 1824, visando conferir-lhes pela existência ou não em cada uma delas de dispositivo constitucional autorizativo à participação do Brasil num processo de integração e, por fim, apresenta-se brevemente o formato de integração que vinha sendo discutido, principalmente por cientistas sul-americanos nos anos 1980, com vistas a ser praticado entre os países do atual Mercosul.

Ao redor dessa narrativa algumas indagações são suscitadas: a) Seria possível extrair das ações do Visconde do Uruguai, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros do Império do Brasil, as primeiras contribuições de cunho integracionista entre países da América do Sul? b) Até que ponto a previsão constitucional brasileira de 1988, contida no artigo 4º, parágrafo único, pode ser considerada fruto dos primeiros “ensaios de integração regionais” iniciados pelo Visconde do Uruguai ou das ideias defendidas pelos representantes das comunidades científicas do Brasil e da Argentina, como pretendia Candotti, no decorrer os anos 1980?

1 O pensamento imperial sobre integração e os estados formadores do mercosul

A história da integração no Brasil, que pode ter se fundado pela cooperação entre países sul-americanos, remonta ao período imperial, mais precisamente com o protagonismo do estadista e diplomata brasileiro Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai.

1. 1 A busca da integração pelo Brasil com países da Bacia do Rio da Prata

No período imperial, os Estados da América do Sul viviam cenários diametralmente opostos, o que não significou um obstáculo para futura convergência de interesses e aproximação. No que se refere à Argentina, cumpre afirmar que Buenos Aires sempre foi a província mais privilegiada, desde o Vice-reinado espanhol do Rio da Prata, no ano de 1776 (FERREIRA, 2013, p. 129), após a independência e, também, sob a liderança do governador Rosas, que começou em 1829. Buenos Aires foi, desde então, o palco da construção política e do desenvolvimento econômico da Argentina, devendo-se tal fato à priorização dessa

Page 142

província em detrimento das demais. De governador, Rosas logo se tornou ditador e chegou a fechar o acesso aos portos para todas as províncias argentinas, dando exclusividade a Buenos Aires. Após a conquista da independência, a Argentina viveu uma divisão de ideologia política entre unitários e federalistas, que eram adversários declarados.

Com relação ao Brasil, houve uma política de continuidade. O poder imperial sucedeu o modelo colonial, de maneira que a economia totalmente dependente da mão de obra escrava permaneceu. Com relação ao poder do imperador, havia total centralização e, no cenário político, o acirramento entre liberais e conservadores era intenso.

No que concerne ao Paraguai, tal país viveu por muitos anos em condição de isolamento, logo após ter se declarado independente, em 1811. A postura do governante da época, José Gaspar Rodríguez de Francia, era manter o país fechado para o resto do mundo, temendo a fragmentação territorial, possivelmente pretendida pelo Brasil e pela Argentina. Ainda, o governo de Buenos Aires não reconhecia a sua independência (TORRES, 2011, p. 65).

Em se tratando do Uruguai, seu território foi desde sempre disputado por outros países e se tornou motivo de guerra entre Brasil e Argentina, conhecida como a Guerra da Cisplatina. Sua independência foi declarada em 1828, porém não foi um fato impeditivo para que ele continuasse nos planos argentinos e brasileiros. A importância do Uruguai residia na localização privilegiada à beira do Rio Paraná, no solo fértil e na bem-sucedida prática pecuarista. Outro ponto importante foi que esse país viveu a dissidência entre o Partido Blanco, ligado à Argentina por meio de Manuel Oribe, Presidente uruguaio deposto e acolhido por Rosas em Buenos Aires e que pretendia retomar o poder, e, de outro lado, o Partido Colorado, associado aos farroupilhas.5A aliança com Manuel Oribe era muito relevante para Buenos Aires, significando a possibilidade de reinstaurar o Vice-Reino do Rio da Prata pretendido por Rosas (FERREIRA, 2013, p. 131), o qual menosprezava a Convenção Preliminar da Paz de 1828, realizada com o Império do Brasil, cujo objetivo era assegurar a integridade territorial e independência do Uruguai.

A Argentina em si não era a princípio governada pelo ditador portenho; cada província tinha seu próprio governo, mas, aos poucos, Rosas influenciou alguns e depôs outros, com o propósito de evitar a resistência e estabelecer uma política econômica de alcance internacional e reconhecimento nacional. Ainda assim, o interesse maior de Rosas era nas províncias litorâneas,6como Santa Fé, Corrientes e Entre Rios, que, paulatinamente, acabou por dominá-las (LYNCH, 2009, p. 656-657).

Page 143

Nesse contexto, observa-se que o Brasil estava muito mais organizado na formação de seu Estado do que os demais países sul-americanos. Embora estivesse administrando diversos conflitos internos, como as revoltas provinciais, ainda tinha que gerir os problemas externos, tendo em vista o bloqueio dos Rios Paraná e Paraguai ordenado por Rosas, impedindo as relações comerciais do Brasil com seus vizinhos.

1. 2 Da Doutrina Monroe ao Visconde do Uruguai como marco da integração do Brasil

Aproximadamente vinte anos antes do início da atuação do Visconde do Uruguai como Ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil em 1843, no ocaso do ano de 1823, o presidente norte-americano James Monroe anunciou, em sua mensagem ao Congresso Nacional, que seu país não admitiria que o Velho Mundo interferisse no Novo Mundo. Para Saraiva (1995, p. 36) surgia então a primeira matriz de uma ideia de integração e, por intermédio dela, os Estados Unidos arvoravam-se no papel de condutores e protetores da América e das soberanias dos países latino-americanos.

A história mostra que a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT