Anotações sobre o Risco de Desenvolvimento: Análise do Caso da Talidomida

AutorJuliane Teixeira Milani/Frederico Eduardo Zenedin Glitz
CargoAdvogada/Advogado. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais (UFPR)
Páginas177-205

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1. Introdução: Talidomida, fato do produto e exclusão da responsabilidade civil

Descoberta em 19531, a talidomida começa a ser comercializada a partir de 19572como medicamento indicado para tratamento de enjoo em gestantes. Os experimentos realizados em roedores haviam constatado efeitos extremamente potentes, aparentemente sem contraindicações3. Em pouco tempo, o produto era comercializado de forma indiscriminada como medicamento seguro e atóxico, sem a necessidade de prescrição médica4, tornando-se, rapidamente, o remédio mais comercializado na Alemanha5.

Simultaneamente à expansão comercial da talidomida, começam a surgir os primeiros relatos de efeitos colaterais do medicamento6e, a partir de 1959, relata-se o aumento significativo do nascimento de crianças com malformações congênitas: focomelia7, amelia (ausência completa de um membro), ausência de órgãos internos, malformação em mãos e pés, surdez, cegueira, ausência de orelha, defeitos no coração, entre outras deformidades8.

Somente em 1961 é que se sugere que tais deformidades pudessem estar relacionadas ao uso da talidomida durante o período de gestação e seu efeito teratogênico9. Neste momento, contudo, já havia milhares de crianças vítimas da focomelia, especialmente na Alemanha e na Inglaterra. Em resposta a estas suspeitas, o laboratório fabricante retirou a talidomida do mercado alemão naquele mesmo ano.

No Brasil, a talidomida começou a ser comercializada apenas a partir de 1958 por diversos laboratórios, sob os mais diversos nomes10. Apesar do alerta internacional, ela continuou sendo comercializada até meados de 196511, o que criou entre nós a chamada segunda geração de vítimas da talidomida12.

A primeira ação indenizatória movida pelas vítimas da talidomida em face da União perdurou por onze anos13, resultando na concessão de uma pensão alimentícia vitalícia às vítimas que conseguissem comprovar o nexo de causalidade entre as malformações e o uso do medicamento14.

É somente a partir desse momento que, lentamente, os direitos dos portadores da síndrome da talidomida começam a ser reconhecidos pelo direito brasileiro15. Atualmente a comercialização da talidomida no Brasil é proibida. O medicamento somente é distribuído pelos programas do Sistema Único de Saúde (SUS), em postos ou hospitais para o tratamento exclusivo de hanseníase16.

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O que se constata, então, a partir desta brevíssima análise fática, é que o desenvolvimento tecnológico, especialmente quando associado a medicamentos, pode vir a colocar em risco a própria segurança do consumidor a que se destina. Trata-se, por certo, de efeito colateral deste mesmo desenvolvimento, mas estes seus efeitos paradoxais não podem ser ignorados.

O caso Talidomida, mormente quando analisado sob a perspectiva brasileira, em que o produto segue sendo vendido apesar de sérias dúvidas sobre seu potencial teratológico, é, justamente, um motivador do raciocínio que se pretende colocar a prova. Pode-se este caso (Talidomida) representar um exemplo do que, atualmente, seria denominado “risco do desenvolvimento” (ainda que em hipótese, já que a legislação não era vigente na época)?

Ora, o principal motivo da inserção de um produto no mercado é o atendimento das necessidades do consumidor. Sendo assim, é essencial que esses produtos funcionem adequadamente ou atinjam a finalidade que deles legitimamente se espera17. Ademais, como bem ressalta Antônio Herman
V. Benjamin18, os produtos colocados à disposição do consumidor, além de atingirem uma finalidade econômica, devem também cumprir uma função de segurança19.

Por essa razão, a Lei 8.078/90 em seu artigo 10 vedou expressamente ao fornecedor a colocação de produtos no mercado que ofereçam um grau de periculosidade ao consumidor. Todavia, ocorrendo acidente de consumo20, o fornecedor estará obrigado a indenizar o consumidor independentemente de culpa.

Sendo assim, pode-se dizer que o dever de responsabilização do fornecedor pelos defeitos21do produto decorre da violação expressa ao dever geral de segurança. Sob essa ótica, referido dever é intrínseco e necessário à atuação do fornecedor no mercado de consumo22.

Entretanto, nem sempre os produtos inseridos no mercado atendem a legítima expectativa do consumidor, podendo, muitas vezes, ocasionar-lhe danos. A esse fenômeno, dos danos causados ao consumidor pelos produtos colocados em circulação, dá-se o nome de fato do produto23.

O Código de Defesa do Consumidor, embora tenha adotado o sistema de responsabilidade civil objetiva, não tornou o fornecedor um responsável absoluto por todos os riscos e danos. Por essa razão, prevê no artigo 12, § 3º, os casos em que o fornecedor não será responsabilizado. Isso ocorre quando ele comprovar que não colocou o produto no mercado, que o defeito não existe ou quando provar que a culpa é exclusiva da vítima ou de terceiro.

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Neste contexto, onde entra o risco do desenvolvimento? Em que medida se pode aceitar que os danos causados por um produto sejam absorvidos pela sociedade como sendo “normais” em razão do necessário progresso material-tecnológico? Até onde o caso Talidomida, no Brasil, pode se encaixar neste contexto?

Por certo que tais indagações não são vazias de sentido. A depender da resposta que se encontre, diversa será a consequência jurídica, pois, como se sabe, o risco do desenvolvimento pode vir a ser alegado como uma excludente da responsabilidade civil.

Este artigo, portanto, se propõe perpassar estas nuances teóricas apesentadas pela doutrina brasileira acerca deste tema, de modo a poder, ao final, esboçar suas notas conclusivas.

Para tanto, parte-se do conceito do que vem a ser o chamado risco do desenvolvimento, abordando-o de forma abrangente e passando pelas diferentes interpretações normativas. Eis o que se faz a seguir.

2. Risco de desenvolvimento

A tragédia do caso talidomida é o exemplo clássico em que um produto é lançado no mercado como seguro, mas que, após seu uso e o avanço tecnológico, demonstra um alto grau de periculosidade à saúde e segurança do consumidor. Permanece, contudo, em aberto se esta situação de fato pode ser considerada um exemplo de “risco do desenvolvimento”24e, a partir desta caracterização, quais seriam os seus efeitos jurídicos.

Segundo Rui Stoco25, o risco de desenvolvimento se refere a um produto que ao ser lançado no mercado de consumo não apresentava nenhum risco à saúde do consumidor, isso com o grau de ciência e tecnologia disponíveis na época de sua inserção no mercado. No entanto, com o passar do tempo e com o avanço tecnológico, percebe-se que esse produto não mais oferece segurança ao consumidor, podendo lhe causar danos. Nesse mesmo sentido é o conceito trazido por Sérgio Cavalieri Filho26e por Marcelo Junqueira Calixto27, sendo que esse último ainda acrescenta que para a análise do risco de desenvolvimento deve ser levado em conta o “mais avançado estado da ciência e da técnica28no momento da introdução do produto no mercado de consumo”.

Fernando Buscher von Teschenhausen Eberlin29afirma que o risco de desenvolvimento se refere aos casos em que o produto não oferece uma segurança plena ao consumidor. Isso em decorrência de sua natureza, como

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ocorre nos casos em que o produto é inerentemente perigoso (por exemplo, facas e tesouras) ou também pela ausência de informação.

Segundo referido autor30, o risco de desenvolvimento nada mais é do que a descoberta, após a inserção do produto no mercado e o avanço tecnológico, de que esse produto oferece riscos à segurança e saúde do consumidor. Deste modo, o ponto fundamental para se analisar o risco de desenvolvimento é o “estado da arte31”, ou seja, a tecnologia disponível no momento em que o produto passa a estar no mercado de consumo.

Nesse sentido, o risco de desenvolvimento como defeito do produto deve ser analisado sob dois aspectos, um de caráter “temporal” e outro de caráter “técnico”. No que se refere ao requisito temporal, Calixto32afirma que deve ser levado em conta o momento da inserção do produto no mercado de consumo, considerando o conhecimento técnico e científico disponível naquele instante. O segundo requisito, por sua vez, refere-se aos conhecimentos técnicos e científicos utilizados na criação do produto. Exige-se que o fornecedor utilize o mais avançado estado da ciência e da técnica disponível naquele momento, levando em consideração também os posicionamentos minoritários33.

Partindo dessa premissa, para que o fornecedor possa se eximir de possível responsabilidade, seria necessário que ele comprovasse, através de critérios técnicos e científicos, que com o estado em que a ciência se encontrava à época do lançamento do produto não era possível conhecer ou deduzir seus riscos34.

Cabe destacar que o risco de desenvolvimento não se refere a uma mera evolução tecnológica de determinado produto35, mas sim de produtos que, por sua natureza, inerentemente oferecem riscos ao bem-estar do consumidor36.

O grande questionamento que se faz frente ao Código de Defesa do Consumidor atualmente é se o risco de desenvolvimento pode, ou não, ser invocado pelo fornecedor como uma excludente de sua responsabilidade aos danos causados37. Faz-se tal indagação porque à época em que o produto foi lançado no mercado, com os conhecimentos técnicos e científicos disponíveis naquele momento, não era possível conhecer seus riscos38.

2.1. O risco de desenvolvimento sob a perspectiva do direito brasileiro

A questão acerca do risco de...

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