Anotações referentes à função legislativa e à função administrativa da justiça eleitoral

AutorDaniel Castro Gomes da Costa - Tarcisio Vieira de Carvalho Neto
Páginas93-114

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1. Introdução

No Brasil, a Justiça Eleitoral é composta pelo Tribunal Superior Eleitoral, pelos Tribunais Regionais Eleitorais, pelos Juízes Eleitorais e pelas Juntas Eleitorais, órgãos estruturais do Poder Judiciário Federal (arts. 118 e 121, CF).

Já, Executivo e Legislativo participam na ‘elaboração’ das leis, relativas ao Direito Eleitoral, na medida em que compete ao Congresso Nacional elaborar o projeto de lei, submetendo-o à sanção [ou veto] do Presidente da República (art. 22, I; 48 e 84, IV, CF). Portanto, Estados e Municípios não legislam nessa área jurídica.

Assim, a competência funcional de ‘aplicação do Direito Eleitoral’ é conferida ao Poder Judiciário. Órgão técnico por natureza, a Justiça Eleitoral decide median-te critérios jurídicos; logo, é imprescindível o conhecimento, adequado, dos lindes jurídicos, bem como dos instrumentos operados pelos cultores da ciência jurídica.

A Justiça Eleitoral, por ser órgão do Poder Judiciário detém, primordialmente, função jurisdicional, na área cível e na área criminal (função típica); sem prejuízo, desempenha funções legislativa (resoluções, instruções) e administrativa (inclusive poder de polícia) (funções atípicas).

Contudo, essas competências atípicas da Justiça Eleitoral, objeto de estudo deste trabalho, nem sempre estão delineadas, pois os contornos jurídicos que as regem pecam pela insuficiência de base, ou sustentação, que poderia desvelar, com nitidez e segurança, o respectivo regime jurídico.

As competências legislativa e administrativa da Justiça Eleitoral encontram-se embrenhadas, em normas contidas em legislações mal elaboradas, de pouca técnica legislativa; essa situação fica bem nítida quando se depara com a exis-

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tência de leis esparsas, que sobrevêm ao texto eleitoral; são as chamadas minirreformas eleitorais.

Vê-se, portanto, quão tormentoso é a tentativa de traçar breves linhas a respeito das funções legislativas e administrativas da Justiça Eleitoral. Sem embargo, pretende-se, neste trabalho, alinhavar pontos importantes do tema, visando identificar parâmetros e critérios idôneos para interpretação e aplicação do Direito Eleitoral.

2. Os ‘órgãos e funções tradicionais’ no Estado Brasileiro

De acordo com o sistema brasileiro, a distribuição tradicional de órgãos e funções do Estado pode ser da seguinte forma resumida: (a) o Poder Legislativo exerce função legislativa; obedecida a Constituição Federal, elabora leis, que são atos normativos, ou seja, gerais, abstratos, impessoais, os quais inovam na ordem jurídica;

(b) o Poder Executivo exerce função administrativa; sem inovar na ordem jurídica, elabora atos administrativos e contratos administrativos, bem como realiza atividades materiais, de execução (para alguns, seriam fatos administrativos); (c) o Poder Judiciário exerce função jurisdicional; aplica as normas do ordenamento, por meio de decisões jurisdicionais, com força de coisa julgada.

Porém, conforme ensinamentos de Gordillo [Tratado de Derecho Administrativo, Tomo I, Cap. IX, p. 1 e ss.], para deslindar o regime das funções estatais, há critérios fundamentais: o critério orgânico, ou subjetivo; e o critério material, ou objetivo; assim:

"Logo, há atos materialmente legislativos que são organicamente administrativos, como os regulamentos; atos materialmente administrativos que são organicamente legislativos (investigação de informações, autorização); atos materialmente administrativos que são organicamente jurisdicionais (nomeação e remoção dos servidores jurisdicionais); atos materialmente jurisdicionais que são organicamente administrativos (quando o Poder Executivo decide um recurso hierárquico)." 1

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Então, numa certa medida, todos os órgãos do Estado realizam funções atí-picas, isto é, que não lhes é comum, ou peculiar; atuam em áreas as quais, a rigor, seriam de atribuição típica de outros órgãos estatais.

Ver-se-ão, a seguir, as consequências dessa afirmação, perante a Justiça Eleitoral.

3. A ‘Função Legislativa’ da Justiça Eleitoral

Conforme se anotou, os ‘Poderes’ do Estado (órgãos constitucionais: Legislativo, Executivo e Judiciário) exercem funções típicas e funções atípicas. Assim, quanto ao Judiciário, tem incumbência primacial de aplicar a lei ao caso concreto, com a imutabilidade de suas decisões (função típica).2Mas, pode exercer função materialmente legislativa (editar atos administrativos normativos) e função materialmente administrativa (seleção de servidores, por meio de concurso; licitações para aquisição de bens e serviços); são funções atípicas.

Assinala o festejado jurista Celso Antônio Bandeira de Mello:

"Eis, pois, que, de acordo com tais formulações, tanto Legislativo, quanto Judiciário, como Executivo, exerceriam as três funções estatais: de modo normal e típico aquela que lhes corresponde primacialmente - respectivamente, legislar, julgar e administrar - e, em caráter menos comum (ou até mesmo em certas situações muito invulgares como ocorre no processo de impeachment), funções, em princípio, pertinentes a outros órgãos do Poder."3Quanto à função legislativa da Justiça Eleitoral, leis estabelecem regras às Cortes Eleitorais; o Tribunal Superior Eleitoral detém competência para editar resoluções convenientes à execução das normas eleitorais (art. 23, inciso IX, da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral). Ademais, tanto o Tribunal Superior Eleitoral quanto os Tribunais Regionais Eleitorais podem elaborar os respectivos regimentos internos (art. 23, inciso I, e art. 30, I, do Código Eleitoral). Sem falar nas consultas, em tese, de competência dessas Cortes, no âmbito de suas jurisdições (art. 23, XII e 30, VIII, do Código Eleitoral).

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Contudo, as funções (materialmente) legislativas do Judiciário e do Executivo são subalternas à Constituição e às leis do país; Geraldo Ataliba explica:

"Assim, a Constituição consagra o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer [alguma coisa] a não ser em virtude de lei. Isto significa que, no Brasil, só lei obriga, e nenhuma norma, a ser a legal, pode ter força inovadora obrigatória (nisso o nosso regime é peculiar e mais estrito que a maioria do direito comparado)."4Cuida-se de critério dogmático, portanto, extraído do Texto Constitucional: "justificação legal" (jure constituto). Para a verificação do acerto dessa proposição doutrinária, basta simples leitura dos artigos 84, IV, 5º, II, e 37, "caput", do Texto Constitucional; quanto aos Ministros de Estado, o artigo 87, parágrafo único; e o artigo 25, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual revogou os dispositivos legais que atribuíam ou delegavam a órgão do Poder Executivo competência assinala pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente quanto à ação normativa.

Já, sob o prisma prático (jure constituendo), nos países do continente europeu, cujos traços o Brasil adota, a função administrativa é subordinada à função legislativa de dois modos, de acordo com Federico Cammeo: esta determina os fins do Estado; e estabelece os meios, para atingi-los, bem como os limites aos quais ação concreta do Estado está subordinada.5Ou, nas palavras de Renato Alessi, numa apertada síntese, a função administrativa é complementar à função legislativa, além de estar subordinada a ela.6Essas ideias, ou noções, fundamentais, decorrem da teoria da divisão das funções estatais (historicamente: dentre outros, Aristóteles e Montesquieu); a qual tem guarida no Texto Constitucional (art. 2º). Consta, nesse artigo, a tripartição de ‘Poderes’ (órgãos do Estado, que realizam funções estatais); assim, nenhum deles pode imiscuir-se na seara do outro, salvo nos casos expressamente permitidos pela própria Constituição.

Há, pois, coordenação das funções desses órgãos, porém, demarcada, plenamente, exaustivamente, na Constituição. Isso garante a autonomia política dos ‘Poderes’ Executivo, Legislativo e Judiciário, estrutura inarredável no regime democrático de Direito.

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Logo, no regime brasileiro, decretos e regulamentos em geral são expedidos para dar cumprimento às leis (fiel execução delas); vale dizer, só podem ser expedidos quando houver necessidade à execução das leis. Daí o nome decretos de execução. Embora a questão não seja unânime na doutrina, para nós, não há, no Brasil, decretos autônomos (de leis), em que o Executivo estabelece normas, inovando na ordem jurídica, ou seja, independentemente de lei prévia.7Ou, nas palavras de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:

"Mas ainda essa característica [o autor refere à novidade] não basta para distinguir a lei do regulamento, pois esta também pode inovar na ordem jurídica. Ocorre, entretanto, uma diferença: a inovação deste sempre cumpre ser nos termos da lei. Consequentemente, a inovação legal, ao contrário da regulamentar, é original, primária, absoluta. Destarte, pode-se concluir que para o Direito a lei é a coercitiva, geral, abstrata e impessoal que inova, originariamente, na ordem jurídica."8O Poder Judiciário não tem competência para editar atos normativos primários, catalogados no artigo 59, da Constituição Federal (emendas à Constituição, leis complementares, ordinárias, delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos resoluções). Especificamente quanto às resoluções, adverte Alexandre Issa Kimura, enquanto as editadas pelos tribunais têm caráter regulamentar, portanto, infralegal, a legislativa "constitui o veículo normativo apto a disciplinar matéria exclusiva e...

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