Animais como pessoas e 'dignidade animal'

AutorBruno Amaro Lacerda
CargoDoutor e Mestre em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Páginas49-64
49
DOI: 10.5433/2178-8189.2013v17n1p49
SCIENTIA IURIS, Londrina, v.17, n.1, p.49-64, jul.2013
Animais como pessoas e
“dignidade animal”
ANIMALS AS PERSONS ANDANIMAL DIGNITY
Bruno Amaro Lacerda *
Resumo: Este artigo pretende abordar alguns problemas
suscitados pelo uso recente da expressão “dignidade animal”. A
atribuição de um valor intrínseco aos animais, feita inclusive
por constitucionalistas e bioeticistas, não pode ser vista como
uma mera ampliação da noção de dignidade humana, pois envolve
(ou deveria envolver) um repensamento do conceito filosófico
de pessoa e das ideias de contrato social e de justiça. A aceitação
fácil e irrefletida dessa pretensa dignidade, além de deixar sem
resposta diversas questões de ordem prática, corre um duplo
risco: o de não encontrar o fundamento adequado para a proteção
dos animais e o de enfraquecer as razões pelas quais a pessoa
humana é considerada, em oposição a tudo que a rodeia, um fim
em si mesmo. Além disso, “pessoa” não é um conceito meramente
descritivo, mas uma aquisição axiológica. A personalidade é uma
categoria ética que surge não de aproximações de capacidades,
mas de um reconhecimento recíproco por seres de igual valor.
Embora os animais tenham valor, não são reconhecidos como
tendo o mesmo valor, um fato que os exclui da ideia de direito,
representada pelo imperativo hegeliano ou comando do direito:
“Sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas”.
Palavras-chave: Animais; Pessoa; Ética.
Abstract: This paper aims to examine some questions raised
by the recent use of the term “animal dignity”. The attribution
of an intrinsic value to animals, including by constitutionalists
and bioethicists, cannot be seen as a mere extension of the
notion of human dignity, because it involves (or should involve)
a rethinking of the philosophical concept of person and the
ideas of social contract and justice. The easy and unthinking
acceptance of this alleged dignity leave unanswered many
practical issues and have a double risk: not find the appropriate
basis for the protection of animals and weakens the reasons
why the human person is considered, in opposition to
everything, an end in itself. Furthermore, “person” is not merely
descriptive concept, but an axiological acquisition. Personhood
is an ethical category that arises not from approximations of
capabilities, but of a reciprocal recognition by beings of equal
value. Although animals have value, are not recognized as having
the same value, a fact that excludes them from the idea of law,
represented by the Hegelian imperative or commandment of
right: “Be a person and respect others as persons”.
Keywords: Animals; Person; Ethics.
* Doutor e Mestre em Filoso-
fia do Direito pela UFMG. Pro-
fessor Adjunto da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF).
E-mail:
brunoalacerda@ig.com.br
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BRUNO AMARO LACERDA
SCIENTIA IURIS, Londrina, v.17, n.1, p.49-64, jul.2013
INTRODUÇÃO
O conceito de “pessoa” tornou-se nas últimas décadas um problema
teórico e prático de grandes proporções, e as inovações tecnológicas contribuíram
muito para que isso ocorresse. Basta lembrar, por exemplo, das técnicas de
reprodução humana assistida e de prolongamento artificial da vida para que
fortes dúvidas apareçam: o embrião é uma pessoa ou uma pessoa potencial?
Quando exatamente começa a personalidade? Seres humanos em coma, cujas
vidas são mantidas artificialmente, possuem direitos mesmo não tendo uma
vida consciente e livre?
As dificuldades trazidas por essas questões são tão grandes que se poderia
dizer, com Umberto Vincenti, que “hoje não sabemos quem seja pessoa do
ponto de vista jurídico” (2007, p. 139). A essa incerteza conceitual segue-se
uma confusão no plano da ação: embriões podem ser manipulados
geneticamente? Podem ser descartados quando excederem o necessário para
um procedimento de fertilização in vitro? Os aparelhos que mantêm a vida de
alguém em coma podem ser desligados, ou esse ato contraria a condição pessoal
do doente?
Muitos são os esforços para responder essas perguntas, sobretudo no
âmbito da Bioética. Tarefa difícil, pois esses novos problemas colocam em
xeque o conceito mesmo de pessoa, tal como desenvolvido pelos juristas, teólogos
e filósofos ocidentais, desde a jurisprudência romana até o personalismo do
século XX. Há enorme dissenso sobre se o embrião é pessoa, se a autoconsciência
é determinante para a proteção moral plena e se o valor da vida pessoal é ou
não indisponível.
Nesse contexto de incerteza, surgiram os estudos animalistas, procurando
repensar a pessoa a partir dos animais e colocando perguntas como: os interesses
dos animais são relevantes? Os seres humanos têm deveres perante eles? Aos
animais deve ser reconhecido um status similar ao dos seres humanos? Alguns
animais são pessoas?
Neste artigo, pretendo investigar estas questões, por mais estranhas que
elas possam parecer aos não familiarizados com os debates éticos atuais, nos
quais se nota a consolidação de uma verdadeira tendência que não pode ser
ignorada, mas que deve ser discutida e avaliada: a aproximação entre humanos
e animais. Objetiva-se, então, oferecer uma resposta para duas questões
interligadas: os animais podem ser compreendidos juridicamente como pessoas?
A ideia de dignidade pode ser a eles estendida?

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