Animais humanos e não-humanos: princípios para solução de conflitos

AutorMery Chalfun
CargoAdvogada
Páginas125-157

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1. Introdução

Ao longo da história sempre prevaleceu a submissão do animal à espécie humana, entretanto, paralelamente, foi se formando um novo pensamento, uma mudança de paradigma, primeiramente como forma de preservação das demais espécies e meio ambiente, mas também, com o tratamento dos animais, não mais como simples objetos de interesse humano, mas sim como verdadeiros seres com valores intrínsecos. Hoje existem diversos posicionamentos e grupos dedicados à efetiva proteção animal; não obstante, ainda há muito a se melhorar, pois a percepção da triste exploração animal ainda permanece desconhecida da maioria da sociedade, e de todos os profissionais não só do direito, mas também de outros ramos do saber.

Ocorre que, durante séculos predominou e ainda predomina o antropocentrismo, mas se inicialmente os direitos fundamentais alcançavam apenas o ser humano, tendo sido criado como forma de proteção mais efetiva contra os diversos abusos contra a vida humana, como proteção da dignidade do homem, hoje já se vislumbra uma extensão de alguns destes direitos para os animais.

Entretanto, apesar da existência do novo direito dos animais, e da vedação constitucional à crueldade contra estes seres, ainda se alega, que existem conflitos de interesses, inclusive constitucionalmente, entre os animais não-humanos e os humanos. Supostos direitos do homem ao lazer, entretenimento, liberdade religiosa, ciência utilizando animais acaba por predominar, ainda que, em detrimento da vida dos animais não-humanos, prevalecendo, na maioria das vezes, e, infelizmente, os interesses do homem. No entanto, um olhar cuidadoso, justo, solidário,

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desmente este suposto conflito, pois, efetivamente o que existe, é a predominância de interesses supérfluos e desnecessários; decorrência da economia, cultura, poder, ignorância.

Na verdade, não há como vislumbrar que a utilização do animal seja algo realmente necessário ao homem, ou que não possuam valor intrínseco. Diversas são as formas substitutivas para o lazer, experiências, religião, sendo prescindível a utilização do animal, e, ainda que, não houvesse alternativa; porque os interesses humanos deveriam predominar em desconsideração as demais formas de vida?

O que ocorre, é que o homem é sem dúvida um ser especista, valoriza a dor humana, seus interesses e valores, ignora os interesses e a dor de outras espécies, e quando há conflito de valores, os da espécie humana predominam. Entende que a dor e a vida das outras espécies são menos importantes que a humana, entretanto, o sofrimento e vida alheia não podem jamais ser ignorados.

Assim, o que se propõe no presente artigo, é uma interpretação ética, biocêntrica da Constituição Federal no que tange aos animais, afastando qualquer resquício antropocêntrico no suposto conflito de bens. Na verdade, o aparente conflito de interesses suscitado pelo homem não se sustenta, quando, em sua interpretação se estende, de forma justa e solidária, princípios como precaução e prevenção aos animais, bem como ponderação de interesses. Além disso, tais conflitos são afastados, quando se adota uma educação que privilegie a solidariedade, justiça, amor ao próximo. Educação que objetive a defesa de todas as espécies, de suas vidas, valor inerente e fundamental de todos, seja animal humano ou não-humano, afinal, toda vida possui valor, ainda que, seja apenas para seu titular, considerado individualmente.

"... Tanto a vida do homem quanto a do animal possuem valor. A vida é valiosa independentemente das aptidões e pertinências do ser vivo. Não se trata de somente evitar a morte dos animais, mas dar oportunidade para nascerem e permanecerem protegidos. A gratidão

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e o sentimento de solidariedade para com os animais devem ser valores relevantes na vida do ser humano"... 1

2. Princípios para solução de conflitos

Analisando a utilização dos animais nas diversas atividades humanas, argumenta-se em muitos casos um conflito de direitos, pois, se de um lado há o interesse humano protegido constitucionalmente, de outro há o direito dos animais e preceito igualmente constitucional vedando a crueldade. Exemplos podem ser citados, tais como: de um lado liberdade cultural ou lazer, liberdade religiosa, liberdade científica, vestuário com utilização de produtos de proveniência animal e alimentação humanos e de outro o direito dos animais de não serem mal tratados, ou vedação constitucional da crueldade contra o animal. Ocorre que os animais são utilizados nas mais diversas maneiras, sendo em muitos casos a atividade protegida constitucionalmente até mesmo como um direito fundamental, assim como exemplo da utilização que podem gerar conflitos podem ser citados: Na questão de lazer/cultura: os circos, zoológicos, rodeios, rinhas2, farra do boi3, vaquejadas4. Na liberdade religiosa, a realização de sacrifícios de animais nas religiões de matriz africana5. Na questão do vestuário a realização de caça de forma cruel e retirada de pele.

Dependendo do posicionamento ambientalista adotado, antropocentrista, biocentrista e seus seguimentos, além dos posicionamentos de vertentes animalistas, bem-estarismo e abolicionismo, haverá maior inclinação e defesa para um dos lados; não obstante, pode-se sustentar que independente do posicionamento que se adote, é possível perceber que não há motivos para tal confronto, e que, em geral, salvo raras exceções6, a utilização do animal não se justifica.

Dois princípios7poderiam ser facilmente adequados e aplicados nestes casos, o primeiro, o princípio ambiental da pre-

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venção e precaução, e, apesar da existência do entendimento no sentido de que o direito dos animais é um ramo diverso do direito ambiental, o que realmente se vislumbra, já que; os animais são protegidos por seu valor intrínseco, indo além do caráter meramente ambiental, para alcançar proteção nos diversos segmentos de exploração e utilização do animal não-humano; em alguns aspectos, não há como isolar totalmente os temas, pois existe uma convergência, sendo possível enquadrar alguns tópicos ambientais para seara do direito animal, como é o caso do princípio citado, estendendo-o aos animais em caso de conflito de direitos. O outro princípio vislumbrado é da proporcionali-dade ou razoabilidade8, no aspecto de ponderação de valores, pois é preciso ponderar as hipóteses e valores em conflito, o que está em jogo, aplicando seus subprincípios9como necessidade, adequação e a própria proporcionalidade10, sendo utilizada como forma de evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação para os animais, ou a desconsideração de seus interesses, a categoria do mínimo existencial como apregoa o professor Fábio de Oliveira para que se alcance também os animais, como forma de proporcionar-lhes uma vida digna e necessidades básicas.

"Comumente, a consciência do mínimo existencial é absorvida em função do homem. O que alguém precisa, minimamente para ter uma vida boa? Normalmente a referência é feita a bens materiais, condições fiscais. Todavia, o mínimo existencial deve ser entendido a englobar também os valores espirituais, psíquicos, pois nem só de coisas palpáveis é feita a vida ... a categoria mínimo existencial abrange também os animais não-humanos, visto que também eles perseguem uma vida boa, têm necessidades básicas, dignidade. Ter uma existência condigna não é direito apenas dos humanos, mas sim de toda criatura. Ao homem compete não somente se abster de prejudicar, comprometer o mínimo existencial dos animais (...)"11Não se pretende aqui aprofundar todos os conflitos, ou mesmo os princípios mencionados, até porque cada um deles poderia ser objeto de nova pesquisa e artigo. Entretanto, de forma a tentar demonstrar claramente a questão discutida, e a existência

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da temática, toma-se como parâmetro uma questão em foco atualmente, ou seja, a questão do conflito lazer ou cultura x animais, com enfoque na questão dos circos, já que existe um projeto de lei que pretende proibir em âmbito nacional a utilização de animais em circos, existindo assim uma polêmica atual. Através da exemplificação, e melhor visualização deste conflito, além da aplicação dos princípios citados, pretende-se demonstrar que não somente este conflito poderia ser facilmente evitado, como também todos os outros.

Primeiramente, veja-se cada um destes princípios:

2.1. Precaução e prevenção

O primeiro dos princípios é o da prevenção e precaução, que apesar de apresentados conjuntamente e de sua semelhança, possuem diferença.

O princípio da precaução e prevenção foi proclamado no princípio quinze da Declaração do Rio/9212:

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.13Apesar de mencionar a degradação ambiental e o enfoque ser este, pode-se estender para os animais a questão da aplicação deste princípio como forma de evitar ameaça de danos sérios ou irreversíveis para saúde física e mental, bem como a vida destes seres, principalmente quando não se tem certeza de que a utilização do animal efetivamente será capaz de gerar um resultado positivo, como no caso de experiências, devendo, portanto, buscar métodos alternativos. Não se sustenta aqui, que havendo certeza de resultados positivos, os animais podem ser livremente utilizados, na verdade não se compartilha desta posição, no

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entanto, a argumentação é favorável como forma de caminhar para abolição da utilização...

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