A anencefalia e o crime de aborto - exclusão de ilicitude via autorização judicial - uma real possibilidade no brasil

AutorMarcos Jorge Ferreira de Macedo - Rodrigo Leal
Páginas553 - 573

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Palavras-Chave

Aborto (Direito); Anencefalia (Medicina); Dignidade Humana (Direito).

Abstract

This work offers a reflection on the criminal field concerning the legal relationship established, in abstracto, between the Justice and the unfortunate woman who is pregnant with a fetus with a specific congenital deformity – anencephaly - faced with the Repressive Brazilian Criminal Code currently in force, whose incriminating precepts do not allow, in theory, the possibility of interrupting the pregnancy in the name of protection of the right to life. Thus, the pregnant woman, in this condition, does not have the option to interrupt the pregnancy, even though it has been scientifically proven that the extra-uterine fetus is unviable. We understand that as we come from a Democratic State of Law, where the observance of the constitutional principle of human dignity – based on it – becomes the standard for any form of interpretation in the criminal field, the content of the incriminatory regulations should be in accordance with the reality, otherwise it becomes unconstitutional. Furthermore, the factor of need for content and social adaptation to the regulation as a principle of social justice is added to the paradoxical list in the Criminal Code of exclusion causes of criminality related to the crime of abortion which, if verified in an axiological plan, form a firm basis for the possibility of interruption of the pregnancy, by means of legal authorization - while there is no specific legislation - in cases of anencephaly.

Key Words

Abortion (Law), Anencephaly (Medicine), Human Dignity (Law).

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1. Introdução

Hodiernamente, vivemos numa efervescente descoberta no ramo da Medicina, certamente corolário das constantes pesquisas e avanços tecnológicos acerca do corpo humano, mormente a partir dos últimos anos da década de 70. Assim, cada vez mais, o alto nível cognitivo do funcionamento do organismo humano traz à lume, reflexamente, influências, as quais iniciam sua interiorização na Sociedade, revelandose de forma inédita e exigindo um repensar de valores.

Com efeito, a temática versada na presente pesquisa procura demonstrar uma das vertentes dessas influências, exteriorizada pelo diagnóstico científico efetivo e preciso, durante a gestação humana, da anencefalia. A concreta imputação de crime de aborto à eventual interrupção da gravidez por conta dessa anomalia fetal, nos ditames do vetusto Digesto Penal Pátrio em vigor1 é o que deve ser refletida. Portanto, um dos pilares desse trabalho será o Código Penal de dezembro/1941, cujas normas incriminadoras vigentes acerca do aborto demandam implicações negativas - por certo retrógradas - no âmbito de incidência da tese suscitada, pois não dão conta do processo evolutivo científico e tecnológico das últimas décadas, porquanto limitadas ao contexto dos idos de 19382.

Destarte, o imbróglio na seara jurídica, após vários pronunciamentos de juízes de primeira instância3, e de Tribunais Regionais4, chegou ao Supremo Tribunal Federal5.

Dessa feita, urge estabelecer a Lex e a doutrina (tradicional e contemporânea) na senda penal da conduta do abortamento6, bem como premissas constitucionais, e outros regulamentos, que de algum modo demandam fundamentos ao desate da liça em tela.

É de se ressaltar, que não nos insurgiremos sobre questões religiosas, porquanto entendermos suas lições estarem afetas aos seus súditos em particular e não à sociedade como um todo.7

Do todo exposto, extraise o escopo vestibular da presente pesquisa: vislumbrar possibilidade de autorização judicial para interrupção da gravidez, cujo produto da concepção seja, comprovadamente, um feto anencéfalo, sem que haja comprometimento da ordem e segurança jurídica - malgrado inexistir regramento específico - cujos moldes, sugestivamente a doutrina propugna, na tentativa de extirpar dogmas. ComoPage 556resultado, sobrelevará a excludente de ilicitude da conduta, quando combinada interpretação com os tipos penais permissivos do aborto (por médico habilitado8 ou em caso de prenhez resultante de estupro9 ), atendidos preceitos e princípios constitucionais, e penais.

Cabe salientar ainda que de nenhuma forma se procura fazer apologia ao crime de aborto. O mister auspicioso se consubstancia em contribuir aos debates sem a pretensão de exaurir temática por demais fértil, complexa e controvertida.

2. Vida e morte no Plano Jurídico: aspectos destacados

É imperioso estabelecer juridicamente o que venha a ser a vida e a morte, excluindo excogitações transcendentais, para melhor visualização do problema sub examine.

Como lições primevas, relativamente à vida do produto da concepção, temos as seguintes assertivas de França:

O Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do ovo, depois embrião e feto, começam a tutela, a proteção e as sanções da norma penal, pois daí em diante se reconhece no novo ser uma expectativa de personalidade a qual não poderia ser ignorada pela lei. [...]. Mesmo que se quisesse falar em vida num sentido mais técnico relativamente ao feto, não se poderia esquecer que ele é dotado de vida biológica ou vida intra-uterina, o que não deixa de ser vida. O feto tem capacidade de adquirir personalidade, é pessoa virtual, um ser vivente10.

Na mesma esteira, porém mais realista, Belo agrega informações:

O nascituro é indubitavelmente um ser vivente que cresce, tem metabolismos orgânicos, batimentos cardíacos e, até, na fase mais avançada da gravidez, se movimenta com animus próprio. [...] o feto, e isso é óbvio, tem, sim, vida, e vida própria, não importando o momento da gestação materna. Verdade é que se encontra transitoriamente ligado, pelas deficiências de uma fase de sua evolução, ao corpo materno, de quem tem dependência direta. [...] Não há, pois, confundir vida do processo fisiológico da gravidez – cujo titular é o próprio feto, pois se trata de uma vida própria – com o conceito de vida autônoma, adquirida pelo feto só após o início da respiração e do rompimento do cordão umbilical11.

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Fragoso já lecionava referentemente ao aborto:

Investigando ontologicamente o tipo incriminador temos que o objeto da tutela jurídica é a vida da pessoa em formação, o que justifica a classificação do fato, embora a rigor não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção (feto ou embrião) não é pessoa, mas também não é mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno (portio viscerum ou pars ventris), pois é considerado autonomamente pelo direito para certos efeitos12.

Assim, fica estabelecido, presentemente entre nós, que o produto da concepção, seja na forma de ovo, embrião ou feto, tem vida, e que essa vida é própria, porém dependente do organismo materno, e a proteção jurídica se dá em decorrência da vida em formação, inexistindo considerações acerca da viabilidade ou não de vida extra-uterina.

Já no que concerne à morte do ser humano, é preciso definir o momento em que ocorre o evento. Assim, a doutrina de França nos dá um sinal:

Hoje, através dos critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nr. 1.480/97)13, a morte, pelo menos quando da parada total e irreversível das atividades encefálicas, está definida pelo que se chama de morte encefálica. Este conceito vem substituindo dia a dia o de morte circulatória, tida como a parada definitiva das atividades do coração. [...]

Atualmente, a tendência é darse privilégio à avaliação da atividade cerebral e ao estado de descerebração ultrapassada como indicativo de morte real. [...]14.

Com efeito, respeitadas as opiniões em contrário acerca do evento morte15, dizse no âmbito da Medicina ser ela contemplada pela Resolução supra, cujas disposições são suficientes à convicção do médico atuante, as quais, eventualmente, podem ser adicionadas de uma pitada do senso profissional em cada caso concreto.

Juridicamente, entretanto, respeitadas as linhas médicas, o evento morte se caracteriza em nosso País, através da Lei nr. 9.434, de 4 de fevereiro de 199716, cujas disposições tratam sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Vejase o que diz o art. 3º, da Lex em comento:

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Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

Para regulamentar a Lei 9.434/97, adveio o Decreto nr. 2.268, de 30 de junho de 199717 , cuja Seção I, que trata Da comprovação da morte, no seu art. 16, assim enuncia:

Art. 16. A retirada de tecidos, órgãos e partes poderá ser efetuada no corpo de pessoas com morte encefálica.

§ 1º. O diagnóstico de morte encefálica será confirmado, segundo os critérios clínicos e tecnológicos definidos em resolução do Conselho Federal de Medicina, por dois médicos, no mínimo, um dos quais com título de especialista em neurologia, reconhecido no País;

[...].

Por conseguinte, temos por irretorquível o manejo do suporte da morte encefálica no ordenamento jurídico brasileiro a fim de caracterização do momento do evento funesto.

Cabe gizar, que não podemos descurar do ponto nevrálgico do nosso tema, qual seja o feto. Assim, as considerações de vida e de morte devem se voltar ao foco relativo à vida em formação e à malformação18 específica do feto.

3. O...

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