Anatomia da intersexualidade: do hermafroditismo mítico à anomalia do desenvolvimento sexual

AutorÉrika Pretes
Páginas108-161
CAPÍTULO 3
ANATOMIA DA
INTERSEXUALIDADE do
hermafroditismo mítico à anomalia
do desenvolvimento sexual
“Tão forte é o dogma da dicotomia anatômica, que quando não é
encontrado, é produzido. Quando os órgãos genitais são ambíguos, a
ideia da natureza dual dos órgãos genitais não é revisada, mas eles são
disciplinados para que se adaptem ao dogma.” 1
A definição do que é a intersexualidade, como pôde ser
percebido ao longo do primeiro capítulo, faz misturar o
conhecimento produzido pela medicina e a vivência dos sujeitos
intersex tornando o trabalho aqui desenvolvido uma questão
instigante e complexa.
Partindo dos discursos desenvolvidos por profissionais das
ciências médicas e biológicas, a intersexualidade compreende uma
variedade de condições congênitas, caracterizadas pela ocorrência
de alguma ou algumas falhas ou desordens no processo de
desenvolvimento e diferenciação sexual. As falhas ou desordens
podem se dar em qualquer uma das fases do processo típico de
diferenciação sexual, quais sejam, desenvolvimento do sexo
cromossômico, gonadal ou fenotípico.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-11)
uma variedade de configurações sexuais ou condições atípicas do
desenvolvimento sexual podem ser consideradas como espécies de
intersexualidade.2 De acordo com a Associação Americana de
Psiquiatria (APA), a intersexualidade pode, também, ser classificada
como uma Disforia de Gênero, uma condição médico-psiquiátrica
que tem como causa o desconforto ou inadequação em relação ao
sexo designado no nascimento e está sujeita a tratamento
psiquiátrico e psicológico.3
Dentro do binarismo masculino/feminino, a diferença do
desenvolvimento sexual intersex é percebida como uma falha. Tal
concepção explicaria por que a Resolução Nº1664 de 2003 do CFM
entende que a intersexualidade representa um risco biológico e
social para o sujeito. A tipicidade natural se encontraria na
morfologia dos corpos humanos do macho e da fêmea,
essencialmente diferentes entre si, cujo aparato sexual normal é
aquele claramente identificável no nascimento, sob o qual as
normas e os papéis de gênero são desenhados e estabelecidos de
maneira intrinsecamente diferentes.4
Por outro lado, a intersexualidade também é pensada a partir
das teorias críticas produzidas pelas ciências sociais, filosofia,
antropologia e psicologia. Tais saberes orientados pelas análises
sobre corporalidade, identidade de gênero, sexo e sexualidade
questionam o modo como é realizado o manejo da intersexualidade
por parte da ciência médica e o protocolo cirúrgico e hormonal.5
Das análises feitas nos primeiros capítulos desta tese pode-se
perceber a tentativa de desvelamento médico de um sexo
verdadeiro nos corpos dos sujeitos intersex, apesar das pesquisas
feitas pelas áreas da biologia e genética apontarem que inúmeros
são os fatores que influenciam na definição do sexo biológico.
Sejam tais fatores genéticos, hormonais, gonadais, sociais ou
psicológicos não se sabe ao certo qual ou quais desses são
determinantes.
Notamos que para o saber médico existe um padrão corporal a
ser encontrado, uma norma que se destaca do protocolo de manejo
da intersexualidade e, esta norma, o gabarito de inteligibilidade é do
sexo verdadeiro. Sexo feminino ou masculino, fêmea ou macho,
vagina ou pênis, qualquer coisa que não se enquadre nesse
gabarito é percebida como uma marca da falha da natureza, um
erro, uma desordem ou anomalia.
“Nesse contexto a norma se afasta de uma forma que a oferece como um princípio
de distribuição de objetos e sujeitos nos campos do normal e do anormal e
assume a forma de uma ação, remetendo à ideia de mecanismos e estratégias de
constituição dos objetos e dos sujeitos. A norma se desubstantiva e se torna
verbo. Mais pertinente do que se falar em ‘norma’, será falar em ‘normalização’. 6
O corpo é a instância material em disputa na busca pelo sexo
verdadeiro, o local onde as marcas de aceitabilidade e
inteligibilidade se inscrevem nos termos de “natural” e “normal”.
Nesta perspectiva, Guacira Louro recorda como, a partir de uma
concepção dualista, o corpo acaba sendo negado como âmbito de
projeção da cultura e localizado apenas no âmbito da natureza:
“Na concepção de muitos, o corpo é “dado” ao nascer; ele é um legado que
carrega “naturalmente” certas características, que traz uma determinada forma,
que possui algumas “marcas” distintivas. Para outros, no entanto, é impossível
separar as duas dimensões. Nessa perspectiva, o corpo não é “dado”, mas sim
produzido – cultural e discursivamente – e, nesse processo, ele adquire as
“marcas” da cultura, tornando-se distinto. As formas de intervir nos corpos – ou de
reconhecer a intervenção – irão variar conforme a perspectiva assumida. Ilusório
será acreditar, contudo, que, em algum momento, as instâncias pedagógicas
deixaram de se ocupar ou se preocupar com eles.”7
Ainda, de acordo com Guacira Louro, os corpos femininos e
masculinos, corpos de meninos e meninas, suas características
físicas, são observados como dados naturais que estariam fora da
cultura. Avaliam-se tais os corpos sobre pressupostos de categorias
femininas e masculinas, medidos e classificados em razão das
“marcas corporais” que inscrevem e instauram as diferenças
“naturais” entre os machos e fêmeas da espécie humana. Caso não
estejam dentro do padrão esperado para as categorias feminino e
masculino, serão corrigidas as falhas e moldadas conforme aos
padrões e convenções sociais. 8
Guacira Louro questiona, o que deveriam essas marcas dizer
sobre os corpos? O que tais marcas deveriam evidenciar? Deveriam
sem ambiguidade indicar a identidade feminina ou masculina? Um
pênis ou uma vagina carregariam a evidência de tais identidades? O
simples olhar sobre o corpo seria capaz de interpretar e indicar as
marcas (gênero, raça, sexo e sexualidade), estas percebidas como
fixas e universais. “Então, ficamos desconfortáveis se, por algum
motivo, nossa leitura não é imediatamente clara ou reveladora; se

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