Constituição e interpretação: uma análise da decisão do STF sobre a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (ADI 3.934-DF)

AutorLívio Goellner Goron
Páginas150-166

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1. Introdução

Toda legislação emanada do Parlamento é um convite a criar e recriar o direito. A lei, como legítima interpretação constitucional do legislador democrático, aspira à sua completa integração no sistema jurídico, encimado e estruturado pelos princípios constitucionais. O intérprete, ciente dessa responsabilidade, é seupositi-vador final. Renova-se, assim, a importância dos temas interpretativos para o avançar da discussão jurídica.

A nova Lei de Falências - Lei n. 11.101, de 2005 - oferece fecundas possibilidades nessa seara, tendo o Supremo Tribunal Federal abordado aspectos importantes da referida legislação no julgamento na Ação Direta de Inconstitucionali-dade n. 3.934-DF. É objetivo do presente texto dar conta de alguns temas que ali foram tratados pelo STF, integrando-os numa visão da interpretação como processo tópi-co-sistemático, cuja riqueza vem sendo crescentemente reconhecida pela doutrina brasileira.

No primeiro tópico será abordada a compreensão do direito como sendo um sistema axiológico e teleológico, analisando-se o modelo interpretativo que tal concepção acarreta e as suas exigências hermenêuticas fundamentais. A seguir, cuidar--se-á de realizar uma abordagem dogmática de dois pontos da Lei n. 11.101: a responsabilidade, no processo de falência ou recuperação, do adquirente de unidades produtivas pelas dívidas da empresa devedora, e limitação dos privilégios do crédito decorrente da legislação do trabalho. No terceiro tópico tais pontos reaparecerão sob a perspectiva da decisão tomada pelo STF na ADI, no exame de sua compatibilidade material com a Constituição. Finalmente, no último tópico, os argumentos decisórios adotados pelo STF - e outros que não foram considerados pela Suprema Corte -serão revisitados em face da concepção sistemática do processo interpretativo. O norte adotado nesse exercício de interpretação consiste, portanto, no exame dos preceitos legais sob uma luz que destine a

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maior efetividade possível ao concerto de princípios fundamentais.

Advirta-se, por fim, que embora a presente análise tome como ponto de partida um fato estabelecido - uma decisão judicial - o processo hermenêutico, aqui também, pouco tem de retrospectivo. O diálogo sobre interpretação é atividade essencialmente voltada ao futuro. Interpreta--se para o porvir, para os fatos que ainda haverão de acontecer, e para as gerações vindouras. É uma tarefa que não finda.

2. Sistema jurídico, Constituição e interpretação

Na atualidade a compreensão do direito como um sistema não é colocada seriamente em discussão. Esse decisivo patamar do conhecimento científico foi alcançado por meio da evolução do pensamento jurídico, que permitiu à consciência penetrar na estrutura do direito e visualizar com precisão os seus elementos constitutivos.

Daí proveio o vislumbre de que o direito está irreversivelmente atraído pela ideia de generalização. Por generalização entende-se a noção de que as unidades componentes de um conjunto podem ser reconduzidas a alguns poucos elementos superiores. Tais elementos conferem aos elementos que lhe estão subordinados as características fundamentais de unidade e de adequação. Ora, esses caracteres, por si sós, permitiram aos juristas surpreender no direito a sua inegável natureza sistemática.

A consciência jurídica apropriou-se de outra notável conquista ao solidificar a percepção de que o direito está cimentado por princípios e por valores, elementos que lhe servem, simultaneamente, de vértice e base, perpassando a estrutura jurídica como um todo. O sistema jurídico, portanto, com base nessa visão contemporânea, é descrito como tendo natureza axiológica--teleológica (ficando superada, em larga medida, a visão do direito como sistema axiomático-dedutivo, constituído tão somente de regras, suscetíveis de dedução more geometrico, umas das outras).

Essa concepção atualizada tem no seu eixo central, como foi enfatizado, os princípios, verdadeiras bases do sistema que estruturam a aplicação de todas as suas normas.1

Do reconhecimento de que o direito está estruturado em torno de normas fundamentais - que projetam efeitos em todos os seus âmbitos - decorrem consequências significativas quanto à definição da própria natureza do sistema jurídico. Consoante faz notar Robert Alexy, o sistema jurídico, nessa visão, passa a ser admitido como um sistema de caráter aberto (independentemente da dimensão dessa abertura), e fundamentalmente, como um sistema que está aberto frente à moral.2

No quadro de um sistema integrado por princípios e valores, como hoje se reconhece, a interpretação do direito sofre uma renovação em seu significado e na sua finalidade, conduzindo a um novo paradigma hermenêutico.

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Toda interpretação da ordem jurídica, para ser qualificada como tal, deve operar tópica e sistematicamente.

Classifica-se de tópica a interpretação jurídica assim concebida, porque hierarquiza os valores e princípios em face dos casos concretos,3 e de sistemática, porque ocorre no âmbito do sistema axiológico--teleológico, devendo sempre considerar a totalidade do sistema e resultar numa posi-tivação que seja coerente com ele. Tal interpretação abrange os variados métodos hermenêuticos tradicionais,4 integrando-se numa visão de sistema. Não representa uma simples alternativa colocada à disposição do hermeneuta. Ao contrário: trata-se já da interpretação jurídica por excelência, ou seja, de uma interpretação total e totali-zante.

É fácil perceber que a interpretação sistemática pressupõe, em todos os processos hermenêuticos, a intervenção ativa e primordial do texto constitucional.

Com efeito, e segundo dá conta a observação de Juarez Freitas, "sendo sistemática, toda exegese há de ser, também, interpretação constitucional, uma vez que a carta não integra apenas o sistema, mas serve de estatuto integrativo da ordem jurídica".5

Na hermenêutica constitucional - assim mostra a experiência - o intérprete depara-se com uma pluralidade de contraditórios valores positivados no texto fundamental, cuja harmonização se oferece como um permanente desafio exegético.

Isso se deve ao fato de que as Constituições democráticas são entidades essencialmente plurais,6 abrigando no seu interior uma "congênita tensão interna". Esse tensionamento, porém, ao contrário do que por vezes se afirma, não é um defeito: trata-se de notável sintoma da vitalidade do texto constitucional. A Constituição que não experimente essa tensão dialética carece de substância e de legitimidade, pois seguramente se mostra incapaz de encarnar os variados anseios da sociedade.7

Todo interpretação da Constituição, ou interpretação realizada em face da Constituição - na realidade, trata-se do mesmo fenômeno - envolve colocá-la "plasticamente em conexão com a totalidade axiológica do sistema, renunciando ao que não for uma prudente hierarquização, de sorte a obter a máxima justiça possível"8.

A interpretação da Constituição importa, pois, segundo a concepção de Juarez Freitas, em hierarquizar princípios, regras e valores constitucionais, sem permitir, contudo, no curso desse processo, a quebra de qualquer princípio constitucional.9 Interpretar a Constituição implica, sinteticamente, em exercer um controle de aderência e de compatibilidade do objeto da interpretação com o sistema constitucional.

3. Questões em foco: a Lei n 11.101/2005, a responsabilidade do adquirente de ativos e o privilégio do crédito trabalhista

A Lei n. 11.101/2005 propôs-se a dar inteira nova regulação ao instituto da falência, substituindo, de outra parte, a antiga concordata pela figura da recuperação judicial. Convém, por ora, traçar um breve

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panorama das inovações da Lei que foram submetidas a exame pelo STF, sob o ângulo constitucional, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.934-DF - decisão que será oportunamente explicitada.

A novel legislação das falências e recuperações teve por declarado propósito dar conta da crescente complexidade do fenômeno da empresa, "cadinho onde efer-vescem múltiplos interesses: o pagamento de salários para a classe obreira, dos tributos para a manutenção do Estado, e dos lucros para os investidores".10

Fala a doutrina numa ética da solidariedade em alusão à proposta de repartição dos ônus da crise da empresa entre a devedora e seus credores - programa este que se constitui, verdadeiramente, no leitmotiv da Lei n. 11.101.11

A Lei de Falências demarca caminhos específicos às sociedades em dificuldades econômicas. Relativamente às empresas que apresentam condições de soerguer-se, prevê o instituto da recuperação (judicial ou extrajudicial). Para as empresas cuja continuidade é economicamente inviável, ou não recomendável, a Lei, como assinala José da Silva Pacheco, aponta a falência e projeta a rápida alienação dos ativos, buscando assim evitar a destruição improdutiva da unidade econômica.12

Nesse contexto, a Lei estipula, no seu art. 60, que a recuperação judicial poderá envolver, como parte do plano de reerguimento da empresa, a "alienação judicial de filiais ou unidades produtivas isoladas",13 acrescentando, no parágrafo único, que a transferência de tais unidades se dará com a liberação de todo e qualquer ônus, não importando em sucessão do arrematante nas obrigações do devedor.14

No art. 141, de forma similar, só que em relação ao instituto da falência, a Lei prevê que a alienação dos ativos da falida, promovida de forma conjunta ao separada, far-se-á com exclusão de qualquer ônus, isentando o arrematante das obrigações do devedor. O § 1° do artigo - igualmente aplicável, por disposição expressa, à...

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