Análise Multifocal dos Argumentos do STF no HC 126.292/SP

AutorPaulo Roberto Incott Junior - Paulo Silas Taporosky Filho
CargoMestrando em Direito (UNINTER). Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst - Advogado. Mestrando em Direito (UNINTER). Especialista em Ciências Penais, em Direito Processual Penal e em Filosofi a
Páginas44-54

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Introdução

No ano 2016, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu novo paradigma decisório que abriu instigante polêmica na comunidade jurídica. A problemática se deu diante do fato de que o novo entendimento adotado pelo STF, acabou por relativizar a presunção de inocência - um dos previstos basilares do estado democrático de direito.

Este novo viés paradigmático surgiu a partir do julgamento do HC 126.292 (posteriormente ratificados pelo julgamento das ADCs 43 e 44), onde se decidiu pela possibilidade de antecipar a execução da pena nos casos em que houvesse confirmação de sen-tenças penais condenatórias pelos tribunais dos estados.

Os efeitos de tal decisório imediatamente passaram a ter

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consequências de ordem prática, ou seja, os tribunais dos estados passaram a adotar o entendimento estabelecido pelo STF, por mais que não tenha tido efeito erga omnes o julgamento paradigmático. Desde então, em que pese a polê-mica continue em voga, tal entendimento é aquele que vem sendo aplicado pelos tribunais de todo o país.

Dada a discussão no âmbito acadêmico em cima da questão, bem como aquela que ocorreu no próprio julgamento, vez que houve votos em sentidos contrário, pode-se apontar a presente situação como um hard case, já que a polêmica sobre o assunto se deu acerca de preceitos normativos constitucionais, limites dos fundamentos jurisdicionais, anseios da população e pelo rompimento daquilo que se entende costumeiramente como estabelecido num Estado, a saber, a função ou o papel que é desempenhando por cada poder e os limites que as normas de direito impõe a cada um dos poderes.

Diante disso, faz-se possível realizar uma análise do julgamento em comento através da teoria da argumentação jurídica, cujo nível argumentativo "compreende as regras do discurso jurídico, tendentes a fundamentar racionalmente os juízos de valores implícitos ou explícitos na tarefa concreta de argumentar para decidir"1, objetivando assim levantar uma crítica fundamentada aos principais argumentos elencados pelos ministros nos votos confii-tantes do HC 126.292, levando-se em conta a responsabilidade que deve estar presente na ordem do discurso, já que a "a argumentação jurídica é, pois, discurso responsável que avalia e avaliza responsabilidades tantos pessoais como sociais"2.

1. A construção dogmática acerca dos conceitos de presunção de inocência e trânsito em julgado
  1. Breve histórico recente da presunção de inocência pela jurisprudência nacional

    A fim de que se possa adentrar com mais afinco na temática em de-bate, é necessário esboçar o apanhado de um breve histórico de como até então a presunção de inocência vinha sendo interpretada no ordenamento jurídico e na sua práxis.

    Lenio Streck e Rafael Tomaz de Oliveira, em texto produzido num momento anterior à mudança da perspectiva adota pelo Supremo Tribunal Federal (ou seja, pré HC 126.292), demonstraram como se dava o entendimento pela corte superior acerca da temática da presunção de inocência, tendo pontuando que "no Plenário, firmou-se o posi-cionamento de que é inconstitucional a chamada execução antecipada da pena"3. Era tal a expectativa existente até quando do julgamento do HC 126.292.

    O paradigma reinante anterior era "sustentado" pela decisão dada no HC 84.078-7, o qual contou como relator o ministro, à época, Eros Grau, o qual ponderou que "afastado o fundamento da prisão preventiva, o encarceramento do paciente após o julgamento do recurso de apelação ganha contornos de execução antecipada de pena", o que seria vedado pelo ordenamento jurídico pátrio. Ainda segundo Eros Grau, "entendimento diverso importaria franca afronta ao disposto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal", de modo que "a nada se prestaria a Constituição se esta Corte admitisse que alguém viesse a ser considerado culpado ? e ser culpado equivale a suportar execução imediata da pena fiante-riormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

    Assim, a decisão se deu pela concessão da ordem, determinando que o paciente aguardasse em liberdade pelo menos até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

    A ruptura de um pressuposto basilar que amparava a aplicação escorreita da lei em sintonia com a Constituição Federal, deu-se de maneira gritante com o HC 126.292. O resultado foi aquele que se expõe no presente texto: o Supremo Tribunal Federal deixou de entender que a antecipação da execução da pena violaria o princípio da presunção de inocência; o entendimento anterior àquele adotado no HC 84.078-7 voltou a reinar, porém, sob outra(s) justificativa(s)4; a leitura do texto normativo encampado na Constituição Federal o (artigo 5º, inciso LVII) passou a receber uma interpretação um tanto quanto peculiar, pela qual os recursos feitos aos tribunais superiores não mais impossibilitam a expedição de mandado de prisão para aquele que teve condenação criminal confir-mada em segunda instância.

    Tal é o atual entendimento dominante no cenário jurídico brasileiro, o qual em que pesem as críticas, encontra-se em vigor e sendo "aplicado" pelos tribunais dos estados de todo o país.

  2. A presunção de inocência como direito humano irredutível: a vedação ao retrocesso

    Qualquer diferenciação entre direitos e garantias fundamentais funciona meramente como apoio didático. Conforme já lecionava Rui Barbosa, a diferença se encerra simplesmente na forma de utilização de cada uma destas categorias frente ao Estado. Significa dizer que os direitos fundamentais são em geral declarados, ou seja, descrevem a existência legal de algo que poderá ser pleiteado pelo cidadão face ao Estado, enquanto as garantias pos-

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    suem caráter assecuratório, funcionando com meios de defesa daqueles direitos5. De toda forma, para o que interessa neste momento, pode-se concluir que direitos e garantias fundamentais são conceitos que encerram em si a noção de limites ao poder estatal e o dever deste de se abster ou agir para efetivá-los.

    A EC 45/2004 trouxe um avanço relevante no tocante à concreti-zação de uma categoria específica destes direitos e garantias. Trata-se dos direitos humanos elencados em tratados e convenções internacio-nais ratificados pelo Brasil, segun-do as normas hoje estabelecidas no art. 5º, § 3º, da Constituição da República.

    Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

    (...)

    § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

    Não restam dúvidas de que esta medida se inseriu em nosso arca-bouço jurídico com o fim de per-mitir que a matéria sensível, produzida pelo progresso internacional do projeto de uma sociedade unida em torno de um conjunto básico de normas representantes de novos estágios de patamar civilizatório da humanidade, não seja restringido pelo poder soberano dos Estados. Os tratados e convenções internacionais que versem sobre direitos e garantias fundamentais, especifica-mente naquilo que se convencionou chamar de "direitos humanos", adquirem assim status constitucional, desde que observadas as regras para sua aprovação.

    Questão importante que ocupou lugar de destaque na pauta do Supremo Tribunal Federal, desde o ano de 2004, deu-se sobre o status que deveriam ostentar os tratados de direi-tos humanos ratificados pelo Brasil antes da EC 45/2004. Permitir que figurassem como mera lei ordinária (em obediência estrita ao que versa o art. 5º, § 2º, da CF/88) significaria esvaziar seu poder estruturante de um sistema normativo em consonância com o progresso contínuo da matéria de direitos humanos e seus marcos já traçados. Ao mesmo tem-po, significaria ir na contramão do que se preconizava a partir da própria EC. Em contrapartida, o fato de não terem sido aprovados de acordo com a regra estabelecida no art. 5º,

    § 3º, da CF/88 impedia tecnicamente que fossem alçados ao status de norma constitucional.

    A solução salomônica do STF veio à luz no julgamento do RE 466.343, onde ficou definido que o pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), ratificado pelo Brasil em setembro de 1992, possui status supralegal, inferior apenas às normas constitucionais.

    Em virtude do teor de direitos e garantais elencados nesta convenção, que guardam relação com o tópico em comento, interessa-nos analisar seu conteúdo. Ora, em seu art. 8º, n. 2, a Convenção estabelece que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se com-prove legalmente a sua culpa".

    Com esta declaração direta e clara, o Pacto de San José da Costa Rica consubstancia um direito (ou garantia) já preconizados em outros importantes tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos6.

    Interessante notar que nossa Constituição da República, quando delineada pelo poder constituinte, foi além do que ditava a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não se limitando a estabelecer que a culpa deveria ser provada na forma da lei, mas especificando que isto só aconteceria quando houvesse o "trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (CF/88, art. 5º, LVII).

    Não se pode olvidar que a Constituição não possui palavras sem relevância. A opção pela delimitação clara da aferição legal de culpa estabelece um limite ainda mais preciso do que praticado pelos tratados e convenções internacionais, evitando assim as manobras discursivas que...

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