Análise econômica da situação

AutorFernando Schwarz Gaggini
Ocupação do AutorAdvogado e professor universitário. Pós-graduado/especialista em Direito Mobiliário (Mercado de Capitais) e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas168-179

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Como visto ao longo do trabalho, a criação da personalidade jurídica, bem como a criação da limitação de responsabilidade dos sócios, são aspectos que envolvem evidente impacto na ordem econômica. A limitação da responsabilidade, aliás, é fenômeno decorrente da constatação dos impactos positivos de tal medida para o desenvolvimento econômico.

A desconsideração da personalidade jurídica, nessa conjuntura, foi mecanismo desenvolvido visando garantir que o uso da pessoa jurídica, bem como da limitação da responsabilidade, não fujam aos propósitos para os quais foram concebidos. Respeitando-se a regra maior, da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, aceita-se a desconsideração, como instrumento de coibição de abusos.

Todos esses elementos, portanto, devem ser enxergados em um mesmo contexto econômico, cada qual ocupando espaço e função determinados. De fato, a plena compreensão da relevância social de tais institutos demanda a análise dos efeitos econômicos decorrentes da elaboração e aplicação das leis. Ao se tratar de normas como estas, não se pode perder de prisma que o direito é um sistema que, ao mesmo tempo, influencia e é influenciado pela economia, com consequentes efeitos práticos na sociedade. Logo, a análise de tal tema deve levar em conta os impactos que daí decorrerão, bem como os efeitos sobre o comportamento dos agentes econômicos e sua disposição de alocação de recursos.

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No contexto de uma política indutora de condutas socialmente desejáveis, a atribuição de personalidade jurídica às sociedades e da respectiva limitação de responsabilidade dos sócios é fator de estimulo ao empreendedorismo, oferecendo, em contrapartida, proteção patrimonial. Para evitar, contudo, que desse quadro o empreendedor busque tirar proveito indevido, criou-se a figura da desconsideração, verdadeira punição prevista no ordenamento, destinada a coibir o uso indevido, socialmente indesejável, da estrutura pessoa jurídica/limitação da responsabilidade subsidiária. Mas não se pode perder de vista tratar-se a desconsideração de medida de exceção (regra repressiva, destinada a coibir comportamento indesejável), sendo a regra geral a autonomia patrimonial e respectiva limitação nos tipos societários que a concebem (regra de incentivo de comportamento). Tais elementos, portanto, devem funcionar de forma integrada, de modo a permitir maior eficiência na busca do bem estar social.

Logo, como bem salientado por J. Lamartine Corrêa de Oliveira, a desconsideração, medida de exceção que é, deve ser negada quando se demonstra:

"respeito às formalidades societárias, mantidos os ritos de administração separada, contabilidade separada, reuniões e atas devidamente formalizadas em separado, pois tais cuidados contribuirão para que a limitação de responsabilidade seja judicialmente respeitada."45Assim, respeitadas as regras e formalidades, é um direito dos sócios a manutenção da autonomia patrimonial e da limitação da responsabilidade, visto tratarem-se de medidas de realocação de riscos forçada, feita conscientemente pelo legislador, com a função final de gerar externalidades socialmente positivas. Embora os credores diretos de uma determinada sociedade sofram uma limitação na sua pretensão executiva ao lidar com sociedades de responsabilidade subsidiária limitada, entende-se que esse ônus submete-se a

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um interesse social maior, que reside na política indutora ao exercício da atividade econômica. Essa a lógica que justifica o sistema de benefícios concedidos aos sócios.

Nesse prisma, portanto, a desconsideração não pode servir como elemento anulador do benefício, pois se assim o fosse, seria uma ferramenta contrária ao propósito final buscado. Ela tem que ser vista sempre sob a perspectiva de instrumento repressivo destinado a assegurar o uso correto da personalidade jurídica, medida que pune o sócio que utiliza da personalidade jurídica de forma contrária daquela esperada. Como observa Calixto Salomão Filho:

"a desconsideração enquadra-se em uma regra geral de repressão ao comportamento do free-rider. Como free-rider define-se o agente que quer gozar das vantagens, mas não do custo da responsabilidade limitada, ou seja, aquele agente que usa a responsabilidade limitada não passivamente, como um meio de salvação no caso extremo de falência, mas ativamente, como elemento estratégico para a externalização de riscos em maneira di-versa daquela prevista no ordenamento."46Nesse contexto, assevera o autor ainda que:

"um sócio que queira assegurar-se de não ver seu patrimônio pessoal envolvido no insucesso do seu negócio deve dotar a sociedade do mínimo de capital necessário ao exercício de sua atividade, assegurar rigorosa separação de sua esfera patrimonial pessoal da esfera social, bem como não usar da forma societária para benefício próprio. Deve, portanto, assegurar que a organização societária constitua realmente um centro autônomo de decisões, como presumido pelo ordenamento."47A desconsideração é, portanto, uma norma repressiva destinada a inviabilizar o uso da sociedade como um escudo para ocultação dos sócios em casos de uso irregular da sociedade. Somente nessa concepção é que a desconsideração é coerente dentro do sistema e integra o conjunto de regras destinadas a induzir a um

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comportamento dos agentes econômicos socialmente desejado visando, com o maior estímulo à criação de empresas, a geração de externalidades positivas.

Contudo, observa-se que, na atualidade, não raras vezes o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem sido analisado de forma superficial, por vezes se ignorando as consequências macroeconômicas de sua aplicação desvirtuada. Sob justificativa de pretensa "justiça social"48, ignoram-se os efeitos econômicos decorrentes de sua aplicação em inobservância com o sistema indutor de condutas acima mencionado, gerando verdadeira redistribuição de riscos, em desacordo com o previsto em lei, acarretando em cenário de imprevisibilidade e consequente insegurança jurídica. Nessa ótica, alguns julgadores agem como se as regras de limitação de responsabilidade fossem socialmente indesejáveis ou reprováveis, o que na sua concepção os legitimaria a distorcer o uso de instru-

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mentos como o instituto da desconsideração para atingir o suposto fim pretendido. Nessa pretensa lógica (quase sempre caracterizada na mencionada "teoria menor" da desconsideração), o risco da atividade não poderia ser suportado pelos credores, o que acarretaria numa situação injusta em uma visão imediatista, razão pela qual se utilizaria da desconsideração, mesmo que de forma distorcida e sem a presença de seus fundamentos, para compensar essa suposta injustiça e reparar o credor. Mas esse raciocínio ignora por completo toda a lógica macroeconômica do sistema. Restringe-se e simplifica-se a...

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