Análise da Lei n. 13.467/2017: a 'Reforma' Trabalhista

AutorValdete Souto Severo
Páginas53-86

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No dia 12 de abril, a Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei n. 6.787, de 2016, do Poder Executivo, que tem como presidente o Deputado Daniel Vilela, e como relator o Deputado Rogério Marinho, apresentou um substitutivo ao referido projeto de lei. Um escárnio. Não há outro modo de definir o substitutivo. Um deboche. O projeto tramitou de modo veloz, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, já sob o nome de PLC 38.

Embora o Senador Ricardo Ferraço tenha apresentado parecer em que admite a incompatibilidade de várias regras ali previstas com a ordem constitucional vigente, não acatou nenhuma emenda, e recomendou sua aprovação integral, contando com a promessa feita por Temer, de que vetaria depois alguns dispositivos.

A “reforma” trabalhista, aprovada dia 11, pelo Senado Federal, foi sancionada no dia 13 de julho, por Michel Temer, que não cumpriu sua promessa. Não promoveu os vetos que constaram, inclusive, no relatório apresentado pelo Senador Ricardo Ferraço, nem produziu até hoje a medida provisória, cujo texto já circulava no parlamento, antes mesmo da votação definitiva. Boa parte do texto da chamada “reforma” não é senão a cópia do que há de pior em súmulas do TST ou em entendimentos minoritários já professados no âmbito das relações de trabalho judicializadas.

Em alguns pontos, a Lei n. 13.467 vai além, disciplinando maldades que não seriam compreendidas, senão no contexto da ânsia devoradora do capital sobre o trabalho. Tudo isso faz perceber que o problema dessa lei não é pontual, é visceral, e sobretudo simbólico. Trata-se de uma deliberada vontade de promover a maior destruição de direitos sociais trabalhistas que já experimentamos por aqui. Essa vontade, entretanto, se concretizará apenas e na medida em que o permitirem aqueles que lidam diariamente com as questões trabalhistas.

Em razão da velocidade com que tramitou o PLC 38, é apenas agora, infelizmente, que a maioria das pessoas terá efetivo contato com a integralidade do texto proposto. De posse das alterações promovidas na CLT, dificilmente estarão imunes à sensação de revolta, tamanha a intensidade do desmanche que ali se pretende promover. Terão, então, a oportunidade histórica de assumir posição diante dessa tentativa do capital, de solapar e tornar inócuo o Direito do Trabalho.

Não há dúvida de que a luta, a partir de agora, deverá ser no sentido de que essa legislação seja revogada, exatamente porque nega, de modo efetivo ou simbólico, toda a proteção que representa a inserção dos direitos trabalhistas no Título dos Direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988.

Ainda assim, é necessária uma perspectiva jurídica de enfrentamento. Caso não consigamos revogar a tempo essa lei perversa, precisamos combatê-la, a partir de um filtro constitucional, legal e convencional. Fazendo-o, não anularemos o grave potencial lesivo que ela contém, mas teremos a possibilidade de reforçar a base constitucional do discurso trabalhista que, é preciso admitir, já vem sofrendo erosão em razão de uma lógica flexibilizadora que está entranhada na Justiça do Trabalho já há algum tempo.

Por isso, para além da necessária atividade doutrinária de demonstração da completa impossibilidade de harmonizar esse código empresarial com os termos da Constituição de 1988, precisamos reproduzir e fundamentar uma racionalidade que implique a interpretação dessas regras a partir de um filtro constitucional e convencional. Para isso, temos os pactos internacionais, as Convenções da OIT, os termos da Constituição e um arcabouço de normas internas, inclusive dentro da CLT, que permitem assumir compromisso com a razão de existência do Direito do Trabalho: a proteção a quem trabalha. Normas como a do art. , , , 10º e 468 da CLT serão fundamentais nesse trabalho de resgate da verdadeira razão pela qual existe o Direito do Trabalho. Em âmbito processual, as normas dos art. 765, 794 e 795 também terão papel de destaque.

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Esse trabalho artesanal de reconstrução da proteção no âmbito das relações de trabalho será árduo, porque, como não temos o direito de ser ingênuos em um momento de exceção como o que estamos vivendo, sabemos bem qual é o escopo dessa lei. Haverá, por isso mesmo, muita resistência por parte daqueles que comemoram o desmanche. Essa é, porém, uma tarefa necessária. E, o que é alentador, pode ser feita a partir do confronto do texto da Lei n. 13.467, com o ordenamento jurídico já vigente, desvelando, finalmente, o compromisso de cada intérprete aplicador do Direito do Trabalho, com a consolidação da ordem constitucional.

1. A tentativa de desconfiguração dos elementos da relação de trabalho

Já de início, a lei altera o art. 2º, que define a figura do empregador. Altera os requisitos para a configuração de grupo econômico, exigindo “efetivo controle” de uma das empresas sobre as demais, e acrescentando um § 3º para dizer que “não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, ainda que administradores ou detentores da maioria do capital social, se não comprovado o efetivo controle de uma empresa sobre as demais”. Ora, não é a CLT a responsável pela definição de empresa como capital. Esse é o fato social que a legislação trabalhista tenta assimilar. A relação de exploração do trabalho humano em um contexto capitalista de produção se dá entre o ser humano que trabalha e o capital que o explora. Esse capital, mesmo pulverizado (entre sócios, ainda que ocultos, ou sociedades, sejam elas prestadoras, tomadoras ou qualquer outra expressão que queiramos utilizar) é o empregador/utilizador/ tomador da força de trabalho. A tentativa de esconder a realidade em um texto de lei proposto com o claro intuito de liberar a fraude afronta a inteligência de quem lida com as relações jurídicas de trabalho.

Uma das justificativas para isso, segundo o relator, é o fato de que “novas profissões surgiram e outras desapareceram, e as leis trabalhistas permanecem as mesmas. Inspiradas no fascismo de Mussolini, as regras da CLT foram pensadas para um Estado hipertrofiado, intromissivo, que tinha como diretriz a tutela exacerbada das pessoas e a invasão dos seus íntimos”. Parece até que a legislação trabalhista foi editada por benesse do Estado, em contrariedade aos anseios dos trabalhadores. O relator desconhece, ou finge desconhecer, o fato de que nossa legislação, ampla e radicalmente modificada desde 1943, data – em relação a maioria absoluta dos artigos insertos na CLT – das primeiras décadas do século XX; é fruto de reivindicação de classes já organizadas de trabalhadores e da necessidade de desenvolvimento do sistema do capital em nosso país. A afirmação de que “inspiradas no fascismo de Mussolini” é menti-rosa, nega a realidade de maneira espantosa.

O Direito do Trabalho é revolucionário e conservador ao mesmo tempo. Rompe com a lógica individualista, mas só faz sentido na sociedade do capital, e nesse aspecto estabelece a exploração aceitável. Está, portanto, inserido no mesmo contexto histórico que legitimou a chamada era das codificações e tentou (sem êxito) reduzir o Direito ao texto de lei, como forma de legitimar a sociedade de trocas. Basta examinar os fundamentos jurídicos, mas também filosóficos – notadamente em Hegel, para a definição de categorias fundamentais ao direito moderno, como contrato, sujeito de direitos e propriedade privada. Ainda assim, surgiu para promover uma alteração fundamental na racionalidade desse Direito, admitindo a necessidade de intervenção na vontade individual, inclusive para proteger o trabalhador dele mesmo. Não foi diferente no Brasil; e tentar reduzir a história das relações de trabalho em nosso país a uma outorga de um governo fascista é atentar contra a inteligência dos leitoras.

O compromisso visceral, o que está no princípio do Direito do Trabalho, é a proteção a quem trabalha, para o efeito de estabelecer a exploração possível, ou seja, um conjunto mínimo de normas que permitam que o trabalho continue sendo explorado pelo capital, mas dentro de certos parâmetros considerados aceitáveis. Daí porque na origem das normas tipicamente trabalhistas encontramos a força organizada dos trabalhadores, que pressionaram e arrancaram conquistas sociais, contra a vontade do capital, mas também encontramos a necessidade da sociedade (de dar conta do número expressivo de trabalhadores mutilados ou doentes) e a necessidade do próprio capital (de ter consumidores).

O relator afirma que “não podemos mais negar liberdade às pessoas, não podemos mais insistir nas teses de que o Estado deve dizer o que é melhor para os brasileiros negando-os o seu direito de escolher. Precisamos de um Brasil com mais liberdade”. De que liberdade nos fala Rogério Marinho, daquela exercida pelo terceirizado que aceita trabalhar 12h por dia para receber pouco mais de mil reais por mês e com isso pagar moradia, alimentação, vestimenta, transporte etc? A liberdade que se propõe, chancelando a possibilidade de que os sócios criem diversas sociedades e, com isso, transfiram patrimônio, eximindo-se de pagar os débitos trabalhistas, é a liberdade de não receber salários? Ou talvez se a liberdade de trabalhar em um contrato precário, como temporário, terceirizado, intermitente, tendo de conseguir dois ou três vínculos de emprego para que a contribuição previdenciária...

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