Análise Crítica da Presunção de Inocência na Esfera do STF

AutorIverson Kech Ferreira
CargoAdvogado Criminalista (PR). Mestrando em Direito (Uninter)
Páginas15-28

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Introdução

Desde os primórdios da civilização, o homem passou a construir no interior de seus difusos relacionamentos com o outro ditames e normas que asseverassem o melhor caminho para uma sociedade em formação, a priori, em todos os aspectos intuitivos e cognitivos da essencial e fundamental coexistência. Para que houvesse, então, uma socialização entre os indivíduos que compunham o grupo, certas regras deveriam ser seguidas com o epíteto de moralidade, tradicionalidade e cultura de um povo.

Ao conviver no interior de um agrupamento, como sociedade, o homem interpreta o outro como o próximo, dotado de qualidades inerentes a uma riqueza dividida em conjunto: a liberdade. Destar-te, concentrando num universo que demonstra o trato social, nota-se que a fatia da liberdade que cabe a cada um é exatamente proporcional à do outro.

Numa concepção freudiana, li-berdade significa maior responsa-bilidade e isso pode vir a ser negado pela maioria das pessoas, que temem a responsabilidade advinda da liberdade. Todavia, a vida em sociedade traz em si o cerne da empatia e de uma argamassa so-cial (solidariedade) que deve ser trabalhada cada vez mais, a ponto de atingirmos um apregoado estado de promoção humana e crescimento tanto mútuo quanto individual. Mas esse contrato social que se perfaz molda as liberdades e um quinhão da autonomia dos outros deve valer até o momento em que não ultrapasse o bem-estar da convivência.

Destarte, imaginar um bem tão complexo para ser dogmatizado e, depois disso, positivado em cartas e códex de leis, é aceitar que se pode refutar a liberdade em prol de uma sociedade que se condicionou como conjunto e se engendrou como mecanismo de interpretação das liberdades individuais. Ao legislador cabe, então, atentar para qual emancipação e soberania individual pode ser comtemplada como legal, desde que civilmente dentro dos ditames culturais e de sociabilidade aceitos na cultura de um povo (Elias). Normas legais patrocinam, dessa forma, como a liberdade deve ser usufruída, dentro de um contrato social, que é assinado tacitamente quando se convive numa societas.

Ao atingir essa maturação, o corpo social passa a desenvolver, como fonte de seu interacionismo, normas de conduta estipuladas por lei, aceitas por seus viventes e determinadas pela força do Estado1.

Tal força tem a disposição de fazer valer as regras e estipular o tamanho de nossas liberdades. Assim, inúmeros indivíduos que reagem contrários a essas normas convencionadas, principalmente no domínio do direito das penas, passam a integrar um processo penal que se utiliza de procedimentos de veri?-cação da conduta, desde sua exata tipificação, investigação e provas,

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até o veredito final dado a essa pes-soa que não seguiu o contrato social2 em respeito ao outro, como se é esperado.

Essa sociedade engendrou, então, o direito penal para que este possa ser o pêndulo que corrige certas liberdades/atitudes tidas como antissociais e, ao mesmo tempo, ilegais de um indivíduo que, por inúmeros motivos, desde sua situação financeira, estigmati-zação, falta de oportunidades, entre outros, não conseguiu cumprir sua parte do acordo inicial, ou do contrato estipulado preliminarmente.

Assim, ao situar esse outsider (Becker) ou criminoso em nosso tempo, existe um processo penal que delimita, uma vez convivendo em estado democrático de direito, qualquer tipo de excesso que possa vir a ocorrer por parte do detentor do poder contra esse indivíduo. Sobremaneira, emblematicamente, princípios humanitários de convivência e respeito à dignidade da pessoa são trazidos para o processo penal que se convalida pela obser-vância destes rudimentos elemen-tares que norteiam e dão base para todo o caminhar do regime penal.

A liberdade figura-se aqui como ponto essencial e fundamental, uma vez que será reprimida por um fato desabonador da conduta humana, típica penalmente na sociedade e no código de leis penais. Para isso, restrições são retiradas da mesma elucubração da garantia das liberdades individuais, só que desta vez, em prol do indivíduo condenado. Para que abusos não existam, princípios como a presunção da inocência são elementares.

O indivíduo dotado de dignida-de não deve ficar excluído de di-reitos que se referem à sua defesa própria, numa inicial paridade de armas para com o sistema que o acusa. O princípio da presunção de inocência, então, é essencial deveras para que o indivíduo prestes a ser inserido na malha penal possa legitimar sua ampla defesa, iniciando-a com a possibilidade de ser reconhecido inocente até que prova cabal seja feita ao contrário, reconhecendo o dolo em seu crime. Para Sarlet: a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz mere-cedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável (bem estar físico, mental e social), além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.3

Todavia, após toda a luta por dignidades, liberdades e essencialidades do ser humano necessárias para a convivência em sociedade, como a possiblidade de defesa ampla e plena, surge a interpretação longitudinal dos ministros do Supremo Tribunal Federal acerca da presunção da inocência, princípio esse norteador e básico aos direitos da pessoa, quando formaram uma exegese diferenciada ao negar tal preceito, aceitando trancafiar o indivíduo antes da sua condenação transitada em julgado, ou seja, até mesmo antes de sua ampla defesa ser definhada à sua última conse-quência.

Destarte, estudar as mudanças e quais seus motivos são objetivo da presente tratativa, que visa entender as causas de uma dúbia inter-pretação daquilo que jaz em nossa Constituição como cláusula pétrea. Entender seus motivos ou razões, mesmo que não os aceitando, é principio básico para qualquer crítica que venha em seguida; toda- via, ainda se perfaz fundamental caracterizar as exegeses diferentes de uma norma constitucional que passou a alterar todo um princípio dotado historicamente e assevera-do como dignificante da condição humana.

Destarte, é ambição do breve estudo presente tentar responder a dois questionamentos. O primeiro é interpretativo do próprio texto constitucional, e o segundo parte do principio lógico: como, afinal, harmonizar uma prisão anterior ao trânsito em julgado em relação ao princípio de inocência, uma cláusula pétrea em nossa legislação suprema?

1. Presunção de inocência na história: evolução

É do direito romano clássico que se tira a lição da simplicidade e, ao mesmo tempo, de grandeza. Seus jargões jurídicos partem da cultura daqueles dias e conseguem transferir autoridade às normas destinadas à regulamentação do povo de Roma e seus negócios. É basilar a manifestação clara e precisa, ao mesmo tempo concisa, harmoniosa, porém legalizadora, tornando a regra acessível a todos4. Não há dualidades nem aspectos híbridos que venham a suscitar dúvidas no entender do jargão romano, numa tendência em auto-rizar a interpretação livre das leis, uma vez delineada com toda maes-tria que desafie exegese diferencia-da daquilo que a norma realmente quis dizer. Vale dizer que o povo do direito não era, de fato, o povo das leis.

Nesse ponto os preceitos traziam a segurança jurídica ao atentar para a clareza, entendível a todos, que, consuetudinariamente, conheciam as cotidianidades de seu tempo, suas práticas e normas. Para Lopes Júnior, o princípio da presunção de inocência originou-

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-se num dispositivo romano que levava em consideração a dúvida razoável e que em sua existência o réu seria beneficiado. Assim, não comprovando de fato a veracidade das acusações, não poderiam ser utilizados argumentos que tentassem reavaliar assunto já posto, uma vez que a dúvida favorecia o acusado5. O in dubio pro reo foi o primeiro passo, de fato, para o surgimento de que ninguém pode ser considerado culpado até que sejam exauridas todas as possibilidades para a defesa, tendo sua sentença firmada por juiz capaz transitada em julgado.

Historicamente, a partir da Idade Média, a presunção de inocência passou a ser atacada pela inquisição da Igreja Católica, quando Ferrajoli admite ter ocorrido uma involução, que considerou a nova denominação de tal postulado como presunção de culpabilidade. Segundo o jurista italiano:

apesar de remontar ao direito romano, o princípio da presunção de inocência até prova em contrário foi ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas inquisitoriais desenvolvidas na Baixa Idade Média. Basta recordar que no processo pe-nal medieval a insuficiência da prova, conquanto deixasse de subsistir uma suspeita ou uma dúvida de culpabili-dade, equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e uma semicondenação a uma pena mais leve. Só no início da idade moderna aquele princípio é reafirmado com firmeza: "eu não entendo", escre-veu Hobbes, "como se pode falar de delito sem que tenha sido pronunciada uma sentença, nem como seja possí-vel infiigir uma pena sempre sem uma sentença prévia."6

Ao atentar para as palavras de Thomas Hobbes, Ferrajoli parte da premissa de que o homem convive, de fato, num Estado que considera suas interações e que possui o poder, oriundo da força, de deter-minar o quanto de liberdade cada indivíduo pode exercer em sociedade. Nesse ínterim, ao repensar os fatos na Idade...

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