An alchemical effect: on the use of rights discourse by black people/ Um efeito alquimico: sobre o uso do discurso dos direitos pelas/os negras/os.

AutorNeris, Natalia

Introducao (1)

Quando nossa experiencia vivida da teorizacao esta fundamentalmente ligada a processos de autorrecuperacao, de libertacao coletiva, nao existe brecha entre a teoria e a pratica. Com efeito, o que essa experiencia mais evidencia e o elo entre as duas um processo que, em ultima analise e reciproco, onde uma capacita a outra. bell hooks (2) (2013, p. 85)

Patricia J. Williams, advogada, doutora pela Harvard Law School e atualmente professora de direito comercial na Columbia University, tem produzido trabalhos interdisciplinares em que analisa genero, raca e classe no pensamento juridico a partir de uma perspectiva pessoal. bell hooks descreve sua teoria como aquela que ousa partir da dor, ou seja, que oferece sua experiencia como mestra, como meio de mapear novas jornadas teoricas.

Autora de diversos trabalhos sobre tais tematicas desde meados da decada de 1980, Williams e reconhecida como uma das principais representantes da corrente teorica denominada Critical Race Theory (CRT). O Critical Race Theory, assim como o Feminism Legal Theory, Queer Theory e o Posmordenism Theory, sao expressoes criticas a corrente dominante do Critical Legal Studies (3) (CLS), movimento de intervencao politica e intelectual de esquerda no campo academico das faculdades de direito norteamericanas em meados dos anos 1970 (Kennedy, 1992).

Dentre os varios aspectos da obra de Williams, abordarei especificamente a concepcao da autora acerca do uso da linguagem ou do discurso dos direitos. Tal enfoque, alem de permitir a reflexao sobre o tema no ambito da producao juridica brasileira, contribuira para que o presente trabalho cumpra dois objetivos: apresentar as principais caracteristicas do processo de teorizacao da autora e permitir que conhecamos um dos pontos fundamentais da controversia entre o CRT e o CLS.

Este texto contara com tres secoes, alem desta apresentacao e da conclusao. Na primeira secao farei consideracoes sobre o CLS, apresentando o contexto de surgimento e suas principais teses/temas; na segunda secao tratarei do CRT, privilegiando a exposicao de teses que opoem este coletivo academico a corrente dominante do CLS. Por meio de breves consideracoes sobre as duas correntes teoricas, pretendo tao somente localizar o debate em que se insere o trabalho "Alchemical Notes: reconstructing ideals from desconstructed rights" (4), de Patricia J. Williams (1987), cuja exposicao farei na terceira secao.

  1. Critical Legal Studies: desestabilizando meta-discursos

    De acordo com Kennedy (2004), o Critical Legal Studies (5) pode ser definido de tres modos distintos: i) um movimento de professores e estudantes de direito existente entre o periodo de 1970 e 1990 cujos principais objetivos foram a critica de esquerda ao sistema juridico norte-americano e a reforma do ensino juridico, uma vez que identificavam que este era marcado por um carater reacionario; ii) uma escola de pensamento que, apesar de contar com poucos intelectuais atualmente, continua a influenciar a producao teorica em diferentes campos, tais como o Direito Internacional, Direito do Trabalho e Direito Comparado; e, por fim, iii) uma tentativa de combinacao de teorias, entre as quais o Realismo Juridico Norte-Americano, o Marxismo Frankfurtiano, o Pos-Marxismo, o Estruturalismo Frances e o Pos-Estruturalismo.

    A consideracao do contexto de surgimento do CLS e fundamental para que se possa compreender seus temas ou teses fundamentais. O direito fora a principal ferramenta nao so de grupos progressistas entre os anos 1950 e 1960, na "Era dos Direitos Civis", mas tambem fora utilizado para frear importantes conquistas desse periodo nas decadas subsequentes--1970 e 1980--por parte dos conservadores, de maneira semelhante ao que os progressistas haviam feito 40 anos antes (Miljiker, 2006).

    Os crits (assim denominados os autores vinculados ao CLS) (6) testemunharam tais episodios da historia americana e o interpretaram de um modo controvertido para o contexto (7): a retorica dos direitos ganhou centralidade na segunda metade do seculo XX; no entanto, ela garantiu conquistas tanto de setores progressistas quanto de setores conservadores. Se o discurso dos direitos pode ser mobilizado por diferentes grupos e pode garantir conquistas para ambos, a retorica ou linguagem dos direitos e, portanto, manipulavel, negociavel.

    Tais teoricos dirigem, entao, uma critica a razao juridica norte-americana e suas metodologias legitimadoras, tais como o positivismo liberal, o funcionalismo sociologico e a doutrina da interpretacao constitucional (Kennedy, 1992). Embora nao reduzam o "direito" a "politica", tais autores apontam que a pratica juridica cotidiana possui um sentido politico, pois interpretacoes juridicas possuem consequencias distributivas relevantes e, em geral, o discurso ou linguagem dos direitos tende a reforcar estruturas de dominacao, legitimando o status quo. Nesse sentido, algumas caracteristicas do ordenamento juridico concorrem para tais situacoes, dentre elas, a existencia de lacunas, conflitos e ambiguidades. Um dos principais atributos do ordenamento juridico seria, portanto, sua indeterminacao.

    Os crits se opoem tambem a pretensao liberal de neutralidade, que tende a se basear em principios gerais tidos como incontrovertidos, principalmente no ambito do Direito Privado. Alem de tais temas, em meados dos anos 1980, diferentes autores principalmente Kennedy e Gabel (1984), Tushnet (1984) e Olsen (1984)--sustentaram que o discurso dos direitos nas teorias liberais e progressistas seria alienante (8). Um dos trabalhos recentes de Peter Gabel evidencia tal argumento (9):

    (...) the problem with law was not that it was indeterminate and therefore a mask for political choices made by free individuals, but that it was serving as a legitimating vehicle for our alienation from one another, making our alienation appear to be the embodiment of justice and obscuring our true spiritual and moral destiny as communal beings (...). (Gabel, 2009, p.525 , grifo meu)

    Peter Gabel (1984 APUD Sierra, 2003), especificamente, chama atencao tambem para as consequencias do uso da linguagem dos direitos para a mobilizacao social, afirmando que, ao entrar nesse campo discursivo, os movimentos sociais perderiam sua energia vital, correndo o risco de serem cooptados e de contribuir para que posicoes contrarias aos seus interesses sejam legitimadas.

    Embora nao postulem o total abandono da linguagem dos direitos, a problematizacao oriunda das ideias como indeterminacao, manipulacao, reforco de hierarquias, legitimacao do status quo e efeito alienante e desmobilizante dessa linguagem, principalmente, fez a corrente dominante dos crits adotar uma postura cetica em relacao ao potencial emancipatorio do uso do discurso dos direitos.

    As teses ou temas dominantes no CLS, entretanto, passam a ser questionadas, ainda na decada de 1980, por minorias raciais e feministas integrantes deste coletivo academico. De acordo com Kennedy (1992), alem da contestacao da validade de algumas das principais formulacoes teoricas do coletivo, tais grupos denunciavam a tendencia do CLS em ignorar as questoes que os afetavam.

    O apogeu do debate teorico no interior do CLS em relacao as minorias raciais, especificamente (10), se da em 1987, quando da realizacao da decima conferencia do coletivo, cujo tema fora "Racismo e Direito". Nesta oportunidade, intelectuais como Jose Bracamonte, Richard Delgado, Mari Matsuda, Harlon Dalton e Patricia J. Williams apresentaram os trabalhos reconhecidos ate a atualidade como importantes contribuicoes do CRT ao debate critico norte-americano. (11)

    Segundo Crenshaw (2002), embora esta conferencia tenha representado um momento importante para exposicao das reflexoes das minorias raciais, as tentativas anteriores de pautar um debate sobre raca no ambito do CLS (12) evidenciavam a resistencia deste coletivo em relacao ao tema. Este diagnostico enseja a institucionalizacao do CRT, cujos objetivos e principais intervencoes criticas apresento a seguir. (13)

  2. Critical Race Theory: a critica da critica

    De acordo Harris (2012, p.5) o Critical RaceTheory pode ser definido como uma corrente teorica que investiga um paradoxo:

    How does racism persist despite its nearly universal condemnation by state policy and by the norms of polite society? (...) Critical Race Theory can thus be understood as a study of 'hegemony': how domination can persist without coercion. Os intelectuais vinculados ao CRT (14) se ocupam, portanto, da analise da dinamica funcional da "raca" na sociedade pos-direitos civis nos Estados Unidos. A partir da analise dos avancos e retrocessos caracteristicos desse momento historico, o CRT (15) visa, segundo Crenshaw (2002), realizar uma intervencao critica no discurso liberal sobre raca e uma intervencao racial no discurso critico do direito.

    No que se refere ao discurso liberal, o CRT partira das mesmas concepcoes teoricas elaboradas no ambito do CLS--Mari Matsuda (1987) afirma que a ideia de que o direito e manipulavel e que legitima interesses das classes dominantes soa verdadeiro para qualquer nao-branco nos Estados Unidos. No entanto, o CRT ira alem ao demonstrar como outras concepcoes liberais, tais como o colorblindness constitucionalism (constitucionalismo cego a cor) (16), a neutralidade, a objetividade e a retorica do merito tem contribuido para a perpetuacao, preservacao e legitimacao do regime de supremacia branca e subordinacao das comunidades afro-americanas (Villegas et. al, 2005).

    Para o CRT, as conquistas da "Era dos Direitos Civis" nao tiveram o condao de eliminar o fenomeno do racismo que, longe de ser excepcional, aberrante ou ate mesmo um legado do passado escravista, e de fato ordinario, comum, sistemico (Freeman, 1978; Harris, 2012). Essa concepcao do racismo enquanto um fenomeno sistemico e, portanto, presente nos discursos, praticas e instituicoes fora util tanto para intervencao critica no discurso liberal quanto no discurso critico do...

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