O Amor Que (Não) Ousa Dizer seu Nome: O Homoerotismo no Curso da História

AutorRodrigo Leonardo de Melo Santos
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas19-47

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From all I did and all I said let no one try to ind out who I was. An obstacle was there that changed the pattern of my actions and the manner of my life.

An obstacle was oten there to stop me when I’d begin to speak.

From my most unnoticed actions, my most veiled writing –

from these alone will I be understood. But maybe it isn’t worth so much concern, so much efort to discover who I really am.

Later, in a more perfect society, someone else made just like me is certain to appear and act freely.

Constantine Cavafy15

1.1. Notas introdutórias sobre o(s) preconceito(s)

A palavra preconceito denota “ideia, opinião ou sentimento desfavorável formado a priori, sem maior conhecimento, ponderação ou razão”16. Em inglês, prejudice, que remonta ao latino praejudicium, também designa um juízo concebido previamente e desprovido de um exame crítico apurado a respeito de seu objeto.

Sem se distanciar da própria etimologia do termo, a grande maioria dos estudos sobre o preconceito parte da premissa de que se tem em vista um fenômeno uno, que pode se manifestar sob diferentes formas17. Em geral, o preconceito é deinido como uma atitude

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negativa dirigida a um grupo social deinido e a qualquer pessoa que se acredite pertença a esse grupo. Compõe-se por ideias rígidas, geralmente traduzidas por meio de adjetivos convencionados (com frequência, na forma de estereótipos), que se mostram impermeáveis a experiências concretas que poderiam contrariá-las18.

Seguindo nessa linha, Rios consigna que:

Preconceito é o termo utilizado, de modo geral, para indicar a existência de percepções negativas por parte de indivíduos e grupos, onde estes expressam, de diferentes maneiras e intensidades, juízos desfavoráveis em face de outros indivíduos e grupos, dado o pertencimento ou a identiicação destes a uma categoria tida como inferior19.

Segundo Rios, fala-se em discriminação quando há materialização, “no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos”20.

A despeito da evidente utilidade das correntes teóricas tradicionais para a compreensão do preconceito, entende-se que abordar o termo no singular para daí explorar seus diferentes alvos pode limitar sobremaneira o exame do pesquisador, ao simpliicar fenômenos complexos, por vezes permeados de especiicidades, e que, talvez, não possam ser adequadamente reunidos sob um denominador comum.

A partir da revisitação de mais de cinquenta anos de pesquisas das Ciências Sociais em torno dessa temática e da elaboração de uma tipologia própria, Young-Bruehl cinde a noção de preconceito como unidade, traçando distinções fundamentais entre o que denomina etnocentrismos e as chamadas ideologias do desejo, ou orexismos21.

O preconceito etnocêntrico, segundo Young-Bruehl, consiste em situar o próprio grupo ou etnia como centro da existência e do pensamento, dispensando juízos negativos a um, alguns ou todos os grupos a ele externos. Cuida-se de uma forma de preconceito voltada à preservação grupal daqueles que o manifestam, tendo por referência uma identidade já existente no mundo, com uma história própria, e se articulando em torno de um complexo centrípeto de valores e comportamentos, a im de promover o valor dessa identidade em comparação com outras identidades22.

Os orexismos, por sua vez, são visões de mundo moldadas pelo desejo, que produz ou se articula em ideologias. São mecanismos de defesa, que, mediante a construção de bodes expiatórios, projetam em outras pessoas e grupos os desejos proibidos ou reprimidos do orexista. Preconceituosos desse tipo fantasiam o pertencimento a um grupo superior

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imaginário, que supostamente existiu desde sempre ou desde um passado imemorial. Seu enfoque é, portanto, centrífugo e supremacista, acentuando diferenças e ensejando a exclusão dos que supostamente o ameaçam — indivíduos considerados membros de um grupo também imaginário no qual se projeta a aversão orexista. Se o etnocentrismo se pauta em comparações (cultos vs. bárbaros) e comporta gradações, as diferenças demarcadas pelo orexismo, todavia, são dualistas e inconciliáveis (humanos vs. não humanos, por exemplo). Ademais, não raro, os orexistas inscrevem essas diferenças intransponíveis na própria legislação, a im de reforçá-las23.

Para Young-Bruehl, preconceitos como o sexismo, o racismo, o antissemitismo e a homofobia, em suas versões modernas, se articulam, quase sempre, na forma de ideologias do desejo. Além de se entrecruzarem, com diferentes motivações, inalidades e consequências, esses preconceitos, sob uma perspectiva que remonta à psicanálise, podem assumir formas obsessivas, histéricas ou narcísicas24.

Os preconceituosos obsessivos formam uma imagem de suas vítimas como inimigos onipresentes, dados a conspirações; seres perversos, infecciosos e que, em último grau, precisam ser eliminados. São típicos de pessoas tendentes a ideias ixas e comportamentos rituais, por meio dos quais extravasam seu sadismo, sem estabelecer conexões sentimentais com os alvos de suas ações25. A cristalização desse tipo de preconceito em certos grupamentos, com picos de intensidade, tende a encontrar condições propícias nos períodos de depressão e desilusão — como se deu com o antissemitismo, por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Esse, aliás, costuma ser o modus operandi da promoção oicial de preconceitos em Estados autoritários ou tirânicos26.

Os preconceitos histéricos, por outro lado, são aqueles por meio dos quais o agente inconscientemente aponta, em determinado grupo considerado inferior, práticas e desejos agressivos e/ou sexuais que ele reprime em si mesmo. A hipocrisia é um traço característico de seus expoentes, bem como a pretensão de marginalização das vítimas — que, para o histérico, deveriam reconhecer o seu devido lugar (físico e simbólico) subalterno e com ele se conformar. A eliminação do objeto do desprezo não é o im efetivamente visado, mas a possibilidade de airmação da hierarquia entre os grupos, de uma marginalização contínua27.

O tipo narcisista, inalmente, tem diiculdades para processar a ideia de que existam diferenças e se manifesta, em alguma medida, nos dois tipos anteriores. Do ponto de vista da psicanálise, toda pessoa, no começo de sua vida, experimenta uma condição de narcisismo primário, caracterizada pela autossuiciência provida pela indiferenciação para com o corpo materno, no atendimento de suas necessidades. Essa condição eventualmente se rompe, exigindo do indivíduo a construção da capacidade de considerar os outros como seres separados, diferentes, com necessidades próprias. O desenvolvimento do indivíduo, a partir dessa experiência, pode levar à formação da personalidade narcisista, fortemente centrada no eu, na autopreservação, e com diiculdades ou medo de lidar com a diferença. Os preconceitos

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narcisistas são, portanto, erguidos em torno da diferença e usam seus alvos na manutenção da autoestima e do sentimento de superioridade do indivíduo. No caso dos homens, ele se processa notadamente em torno da diferença sexual, experimentada pela primeira vez quando do rompimento com a simbiose materna. A ausência física (feminino) ou simbólica do falo (afeminado), nesse rumo, passa a representar a frustração, a incompletude, o negativo. Daí a tendência do narcisista a se agrupar com aqueles que lhe são semelhantes, em busca do sentimento de fusão, reagindo com veemência e agressividade a tudo que incorpore ou simbolize o diferente. Na forma grupal, cuida-se de um preconceito de negação: “não há outros, apenas o nós”28.

Ao aprofundar a tipologia, Young-Bruehl destaca que, entre os preconceitos mais disseminados, a homofobia demonstra historicamente uma especial aptidão para se manifestar em todos os tipos anteriormente descritos29. De fato, tendo em vista o espectro amplo de transformações sociopolíticas que ocorreram ao longo de mais de um milênio, a história ocidental evidencia uma larga pluralidade de formas pelas quais se estruturaram dinamicamente tanto o homoerotismo quanto o preconceito contra ele direcionado.

A despeito dessa variabilidade de motivações, modos de expressão e objetivos, a homo-fobia, enquanto conceito recentemente forjado, é também geralmente invocada no singular. Essa condensação de manifestações complexas em uma imaginária unidade decorre, em parte, da proeminência histórica de algumas expressões do preconceito homofóbico, notadamente daquele direcionado à imagem do homem afeminado.

Mas, como será adiante explorado, a partir do momento em que se compreende que a própria homossexualidade é um conceito socialmente estruturado, uma construção com contornos e simbologia característicos do contexto recente em que fora cunhado; e que o homoerotismo se compõe, na verdade, de uma multiplicidade de expressões possíveis da sexualidade humana30; também assim devem ser vislumbrados os preconceitos que os têm em mira.

No decurso do tempo, produziram-se e reproduziram-se diferentes homofobias, por vezes articuladas concomitantemente. Com características as mais variadas, o homoerotismo já ensejou reações de intensidades díspares, sendo os homossexuais ora compreendidos como seres moralmente degenerados e inferiores, ora como pecadores, ora como ameaças à estabilidade social e aos costumes, ora como doentes mentais – por vezes, um misto dessas abordagens. De outro lado, o emprego do plural para fazer referência à homofobia implica reconhecer que o preconceito antilésbico é fundamentalmente distinto do de matiz antigay...

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