Amor e casamento.

AutorArendt, Hannah
CargoTexto en portugues

Dezembro 1950

"O amor e um evento"

Consideracoes sobre amor e politica no pensamento de Hannah Arendt

Comentario de:

Kristina Hinz

Instituto de Relacoes Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. E-mail: hinzkristina@gmail.com.

Amor e casamento

Hannah Arendt

O amor e um evento que pode se tornar uma historia ou um destino.

O casamento, na sua qualidade de instituicao social, tritura esse evento, como todas as instituicoes esgotam os eventos sobre os quais foram fundadas. Instituicoes fundadas sobre eventos resistem ao tempo enquanto os eventos nao forem esgotados por completo. Apenas as instituicoes baseadas em leis sao salvas de tal esgotamento. Enquanto o casamento, sempre ambiguo nesse sentido, vigorava como interminavel, ele se fundava essencialmente sobre a lei, e nao sobre o evento do amor, representando, portanto, uma instituicao genuina.

Entretanto, o casamento se transformou na instituicao do amor, tornando-se assim ainda mais obsoleto do que a maioria das instituicoes do nosso tempo. Ja o amor, por sua vez, ficou completamente sem lar (2) e sem protecao desde sua institucionalizacao.

Homens e as mulheres, cada um a sua maneira, protestam contra isso. Ambos tentam evitar a crescente futilidade do amor, sua crescente falta de substancia. As mulheres converteram o amor, que e um evento, num sentimento, o que nao apenas degrada o amor, convertendo algo divino num mero produto humano, mas tambem todos os sentimentos, evidentemente nao podendo fazer jus ao fogo do amor, com o qual sao comparados. O engano se deve ao fato que o amor se instala no coracao da pessoa; mas o coracao humano e o apartamento e nao o "lar (!) (3)" do amor; o equivoco esta em acreditar que o amor surgiria do coracao e que seria, portanto, errando novamente, produzido pelo coracao como um sentimento. (Contra isso o: [phrase omitted]. (4)) E a esse sentimento que as mulheres se entregam--e principalmente as melhores, aquelas que temem a institucionalizacao do amor atraves do casamento, com toda razao--com o resultado que o amor e consumado no sentimento e pelo sentimento, de modo que o homem respectivo tem que se salvar o mais rapido possivel, pois e realmente sua vida (!) (5) que esta em jogo, e que as mulheres, geralmente apenas ligeiramente decepcionadas com a fuga do proprio homem, que na verdade mais atrapalhava do que era util para o sentimento, fazem do "amor" a subsistencia da sua vida. O amor, no entanto, apenas pode se tornar o conteudo de uma vida quando produz pelo menos meia duzia de filhos, com o proposito de ter uma ocupacao diaria. Assim, o ardil trabalho que resulta de toda essa fraude torna-se rapidamente o inferno. As mulheres, cujo conteudo de vida e o amor por si so, perecem por seus devaneios, ou, nos casos mais raros, pelo tedio. O protesto dos homens leva a repensar o amor em amizade. Parte essencial dessa nova interpretacao e a definicao kantiana do casamento, cuja reciprocidade e garantida atraves de um contrato de amizade (6); so que infelizmente esse contrato tem por conteudo aquilo que nenhuma amizade poderia dar conta, nem fisicamente. Tambem a observacao de Nietzsche, de que a maior parte do casamento serve ao proposito de entreter aponta nessa direcao (7): sugere tornar os criterios da amizade em criterios do casamento. Mas nenhuma amizade pode suportar tudo aquilo que um casamento exige. O amor pode suportar a destruicao do casamento atraves da livre decisao de duas pessoas; mas isso significa que a convivencia das duas pessoas se desenvolve na historia e no destino delas, sem nenhuma garantia, e fiel apenas ao nao-esquecimento do acontecido e do que fora a elas destinado. E significa ainda que justamente a amizade nao seria reconhecida, pois e nela que a fidelidade ao amigo tem o valor mais alto, ou seja, ela e exatamente oposta a liberdade do amor. Quando se exige da amizade a convivencia diaria do casamento ou do amor, ela perece.--O casamento, enquanto instituicao pura e legalmente consolidada, e capaz de suportar a convivencia sem dificuldade, nao apenas pelo bem dos filhos, mas justamente porque o portar ou suportar diario sequer se torna num problema. Ele mantem sempre a distancia absoluta entre os conjuges, que e queimada no amor e continuamente transposta na amizade.

Uma tentativa parecida de transformar o amor em amizade, tornandoo, por meio dessa transformacao, no fundamento duradouro do casamento, e empreendida finalmente por Jaspers em sua teoria da comunicacao.

Para delimitar: eu tenho sentimentos; o amor tem a mim. A amizade depende per se da sua duracao--nao existe uma amizade de duas semanas; ja o amor e sempre um coup defoudre (8).

DOI: 10.12957/dep.2017.28772

Obras referenciadas

ARENDT, Hannah; LUDZ, Ursula; NORDMANN, Ingeborg. Denktagebuch: 1950 bis 1973. Munique, Zurique: Piper, 2002.

KANT, Immanuel. Werke in sechs Banden. Editado por Wilhelm Weischedel. Terceira reimpressao reprografica da edicao Darmstadt 1960, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1968.

VIERA, Trajano. Antigone de Sofocles. Traducao e introducao de Trajano Viera. Sao Paulo: Perspectiva, 2009.

YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt. Leben, Werk und Zeit. Traduzido por Hans Gunter Holl. Frankfurt am Main: Fischer. Titulo da edicao estadunidense: Hannah Arendt: For the Love of the World. New Haven: Yale University Press, 1982.

Correspondencia Arendt--Blucher:

ARENDT, Hannah & BLUCHER, Heinrich. Briefe 1936--1939. Editado e com uma introducao de Lotte Kohler. Munique, Zurique: Piper, 1996.

Correspondencia Arendt--Heidegger:

ARENDT, Hannah & HEIDEGGER, Martin. Briefe 1925 bis 1975 und andere Zeugnisse. Da sucessao de e organizado por Ursula Ludz. Frankfurt am Main: Klostermann, 1998, 1999.

Titulo da edicao brasileira: Hannah Arendt/ Martin Heidegger--Correspondencia 1925--1975. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2000.

"O amor e um evento": Consideracoes sobre amor e politica no pensamento de Hannah Arendt (9)

Comentario de: Kristina Hinz

"O amor e um evento que pode se tornar um destino ou uma historia", assim comeca o ensaio Amor e casamento da ilustre teorica politica Hannah Arendt, aqui traduzido pela primeira vez para a lingua portuguesa. Integrando a coletanea Denktagebuch, do "diario de pensar" que a autora manteve de 1950 ate 1973, tratando-se, na verdade, de uma juncao de 28 cadernos onde ela anotaria manualmente pensamentos de naturezas diversas. Neste diario, nos deparamos em grande parte com definicoes e caracterizacoes que refletem as preocupacoes teoricas mais centrais e conhecidas da autora, como a anotacao 21 "Was ist Politik?" ("O que e politica?", t.m.) (10) de agosto 1950, comecando com a afirmacao--tipicamente arendtiana, como diriamos hoje--que "Politik beruht auf der Pluralitat der Menschen" (11) ("A politica tem sua base na pluralidade das pessoas", t.m.) ou a anotacao seguinte, igualmente datada de agosto 1950 "Das radikale Bose" (12) "O mal radical", t.m.).

Outras entradas sao anotacoes sobre autores que ela aparenta ter reconsiderado em determinado momento--Platao, Hegel, Marx e em grande numero, Heidegger--, citacoes e pensamentos e consideracoes fragmentados sobre as mais diversas tematicas, incluindo, muitas vezes "licoes aprendidas" da vida, como "Besser als Rache und Verzeihen ist reiner Zorn oder das, worin er abklingt: reine Trauer" (13) ("Melhor do que vinganca e perdao e a ira pura ou aquilo no que ela dissipa: tristeza pura"). E, entre as anotacoes sobre Metapher und Wahrheit ("metafora e verdade") e Altern ("envelhecer"), encontramos tambem uma entrada consideravelmente grande, titulada "Liebe und Ehe", "Amor e casamento", que e o ensaio pela...

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