Entre americanos e ibéricos: teoria social na primeira república brasileira

AutorMaro Lara Martins
CargoMestre e Doutorando em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), bolsista Capes
Páginas231-257

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Introdução

Um dos temas clássicos das ciências sociais referese a uma articulação entre intelectuais, sociedade e política no andamento moderno brasileiro. Nesse cenário, polarizaramse os estudos sobre os intelectuais em torno de duas perspectivas: uma que se atém a dimensão de uma história das ideias; outra que insiste na reconstrução estritamente sociológica do intelectual, visando à composição de uma sociologia dos intelectuais. Guardada as opções metodológicas, a primeira orientação tem como preocupação principal a análise de textos, contextualizados em função das interpretações implicadas sobre os processos sociais estudados e das configurações históricas abrangentes a partir das quais se constituiriam. Enfatizase, na segunda, a reconstrução sociológica dos meios específicos nos quais a atividade intelectual se realizaria em meio às disputas

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motivadas pelas possibilidades de acesso e controle das posições dominantes do campo de atividades estudado1.

De um lado, os que buscam decifrar a lógica interna dos textos e seus significados inscritos na própria tessitura da escrita como instância decisiva para a compreensão de ideias e sentidos. De outro lado, os que se propõem analisar as condições sociais de produção dos textos e a rede de vinculações que envolveriam autores, instituições e obras, decifrados em função das experiências concretas dos seus produtores.

Neste texto, optamos por uma análise a partir de uma concepção da linguagem e do texto produzido como tentativa de ordenação do mundo. Assim, os intelectuais são entendidos como um grupo social cuja ação se centra para a organização da cultura2. Esse sentido da ação social dos intelectuais está voltada para uma racionalização do mundo, a partir de um encadeamento teórico produtor de conceitos. Ideias que servem como uma espécie de norte orientador de indivíduos e de grupos sociais. Na modernidade brasileira, adquirem papéis fundamentais no artifício do mundo público, na composição dos interesses, na motivação às ações sociais, nas alterações institucionais, na organização da cultura.

Em suma, os intelectuais são os empreendedores de uma cultura política através dessa racionalização efetuada pela linguagem e por sua ação enquanto grupo social. Nesses termos, é válido dizer que os homens produzem conhecimento sobre o seu presente, interpretam o passado da sociedade em que vivem e são capazes de iluminar o futuro, e isso não de forma teleológica, mas sim de um ponto de vista político prático, mobilizador de ações sociais e estimulador de interações entre indivíduos, gerador de solidariedades tanto verticais quanto horizontais, inseridos em uma rede de interdependência. Não se trata mais de percebê-los como produtores de conceitos que somente classificam experiências, mas sim de conceitos que criam e recriam experiências e expectativas.

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Experiências individuais e experiências coletivas. Expectativas individuais e expectativas coletivas3.

Em primeiro lugar, nos propomos a discutir as ideias pelas quais Alberto Sales, Sílvio Romero e Oliveira Vianna, norteavam sua posição dentro da sociedade, no sentido de definir seu papel e suas incumbências no mundo em que viviam. O que está em jogo, é a criação de uma autoimagem pela qual sua sociabilidade era estabelecida. Isto incluía os pressupostos de uma ação interventora dentro da sociedade, seja pelos referenciais cientificistas, seja pela idealização de uma civilização europeia em relação ao atraso brasileiro, seja pela experiência vivida e a recusa pela organização sóciopolítica instituída, seja pelos resultados obtidos por suas reflexões.

Por outro lado desta ponderação, cabe a avaliação das idealizações efetuadas por estes autores sobre o mundo em que viviam. Tratase também da constituição de uma teoria do conhecimento. Desta forma, somos levados a cogitar o modo pelo qual o mundo em que viviam era caracterizado. Estes pontos nos levam a outro panorama reflexivo, que se refere a construção de uma tradição e de uma história que fossem genuinamente brasileiras, que incluía tanto uma concepção de tempo histórico peculiar, como a elucidação dos personagens característicos desta história. O aparecimento da história como fonte de conhecimento da política e da sociedade merece atenção, pois, a partir do momento em que se criou um conjunto de instrumentos intelectuais, capazes de fundamentar as opções tomadas pelos pensadores na construção de teoremas de organizações sóciopolíticas, houve um processo de depuramento das possibilidades práticas justificadas através da história. O ponto comum que se ressalta são as contradições e os percalços da modernidade à brasileira.

De certo, não é tarefa das mais fáceis a resposta imediata a esses questionamentos. A definição do “quem somos” e do nosso destino, estaria condicionada às idealizações sobre o passado, construindo as próprias idiossincrasias. Este processo construtivo, no Brasil, nunca se completou por inteiro. Não temos uma história

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linear ou definitiva. Qualquer que fosse o caminho a ser percorrido, o passado era o ponto central de onde qualquer solução precisaria ser encontrada. Esta carga atávica apareceu sempre como ponto de partida para se construir o futuro. As linhagens teóricas, americanista e iberista, em certo sentido, fornecem argumentos importantes nessa busca por uma interpretação do caso brasileiro (WERNECK VIANNA, 1997; BRANDÃO, 2005). Os que associavam a América como modelo para o mundo moderno e os que percebiam as dificuldades de um caminho fora do eixo norteamericano/europeuocidental, recorriam, igualmente, ao passado para justificar os obstáculos à modernidade brasileira.

Tornaramse clássicas as afirmações de Richard Morse (1987) sobre o espelho entre as duas Américas, as de matrizes ibéricas e americanas. O ponto central deste debate era a relação entre o privado e o público, entre o indivíduo e a comunidade, herdada pelas Américas em seu processo constitutivo colonial. No iberismo, haveria a identificação da ausência do individualismo anglosaxônico como fator explicativo da incapacidade brasileira para se organizar a sociedade política. Haveria uma análise entre os iberistas, sobre a ausência do espírito de iniciativa, a fragilidade da consciência coletiva e a excessiva dependência do Estado, portanto, não se teria a formação da cultura material e do civismo da América anglosaxônica. A tradição iberista salientaria os aspectos integrativos, participativos e afetivos, com ênfase na comunhão, na incorporação, na predominância do todo sobre o indivíduo. Em contraponto, a perspectiva americanista elaboraria o elogio ao individualismo, ao selfmade man, ao materialismo e à política como lugar do conflito.

No plano do processo histórico concreto, com o advento da República brasileira e a Constituição de 1891, organizase uma caminhada rumo a certo tipo de americanismo. Um americanismo reinventado, que reposicionou os agentes no interior de uma estrutura de poder e de um novo princípio de autoridade, consagrando uma nova ordem legal, que possuía como elemento central o reconhecimento da autonomia política dos Estados, e sua consequente incorporação ao sistema federativo. Entretanto, a partir da solução imposta por Campos Sales, se manifesta a ambiguidade das novas práticas e a sobrevivência de velhos hábitos, como a forma geral dos

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conflitos, expresso na luta entre facções, na investidura da autoridade nas práticas eleitorais, e na relação público/privado, geral/particular (ANDRADE, 1981). A política dos governadores bloqueava o sistema de diferenciação política, negando as situações conflituosas do mundo público. A República brasileira nascera sem um programa efetivamente democrático (CARVALHO,1987; LESSA, 1988).

Nesta República, encarnavase a simbiose entre a penetração dos interesses modernos, americanistas, com o patriarcalismo moral tradicional, iberista. Neste redemoinho, nesta espécie de revolução sem luta, a início estritamente política, contraditória na Carta de 1891 com sua efetividade prática, juntaramse elementos aparentemente irreconhecíveis entre si. Tanto a América quanto a Ibéria, carregavam em si, o peso do passado e reconfigurava aquele contexto (WERNECK VIANNA, 1997).

O empreendimento teórico de Alberto Sales centravase na tentativa de elucidação dos meandros evolucionários que permitiriam a evolução histórica e a formação das idiossincrasias das nacionalidades. Existiam duas proposições gerais em toda sua obra postas na ação do tempo: uma proposição teóricopolítica, de afirmação da teoria republicana e democrática de organização estatal associada ao liberalismo, e, uma proposição teóricasocial, de abordagem do mundo industrial e dos meandros sociais que permeiam a nacionalidade, como a solidariedade e a cooperação no mundo moderno.

Alberto Sales procurava o retorno às nossas raízes americanas. Em sua opinião, o desenrolar civilizatório nos trópicos, especialmente enquanto novo mundo, nova sociedade e novo homem genuinamente americanos, fora interrompido pela vinda da família real portuguesa em 1808. Fato este, que promoveu o desajuste entre o tempo social e o tempo político. A obra da monarquia sobre esse tempo social, produtor de ineditismos, arrefeceu as características americanistas, liberais e democráticas.

Segundo Sílvio Romero, teríamos elementos ibéricos e americanos de uma forma bastante peculiar, nunca se esquecendo que em nosso teatro histórico, estava montado o palco de uma civilização que se reinventava. A tônica de sua argumentação se baseava sobretudo na formação de um novo homem e uma nova

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cultura, possibilitados pela miscigenação. Em certo sentido, Romero representa a tensão entre a concepção de América, encarnada por Alberto Sales e a...

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