Constituição e ambiente: Errância e simbolismo

AutorCarla Amado Gomes
CargoMestre em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, em Ciências Jurídico-Políticas.
Páginas27-46

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0. Introdução

O acolhimento* do valor Ambiente pela ordem jurídica constitucional debuta em Portugal pela mão da Constituição de 1976. Com efeito, se é verdade que na Constituição de 1822 o artigo 223º/V apontava para a necessidade de as Câmaras Municipais procederem ao plantio de árvores nos terrenos sob sua jurisdição, dificilmente se pode entrever em tal dispositivo mais do que um incentivo ao desenvolvimento rural >1 . Do mesmo modo se deve descartar qualquer intenção ecológica no artigo 52º da Constituição de 1933, no qual se apelava à protecção dos “monumentos naturais”: a disposição visava a preservação do património cultural >2 e quando muito, tinha subjacente uma perspectiva estética da natureza. O artigo 66º da Constituição de 1976 foi, com efeito, o primeiro artigo ambiental no panorama constitucional português.

Aproveite-se, no entanto, para sublinhar a tendencial irrelevância constitucional da consagração da tarefa de conservação e promoção ambiental, de duas perspectivas.

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Por um lado, há importantes exemplos de Estados que prosseguiram e prosseguem políticas de protecção do ambiente sem terem alçado tal objectivo ao nível constitucional: desde logo, os Estados-Unidos da América, com a aprovação do National Environmental Policy Act, em 1969 (mais conhecido por NEPA), suporte da primeira actuação dos poderes públicos concertada em sede ambiental — Estado que não aproveitou nenhum dos vinte e seis aditamentos para incorporar a protecção do ambiente na idosa Constituição de 1787 >3 . Mas também a Alemanha, que desde o início da década de 1970 vem desenvolvendo uma consistente política ambiental, só “formalmente” acolhida na lei Fundamental de Bona na revisão constitucional de 1994, da qual nasceu o artigo 20A >4 . Ou ainda, embora menos representativo, o caso do Brasil, que aprovou em 1981 a Lei 6.938, de 31 de Agosto, pioneira na abordagem transversal e integrada das questões ambientais, tendo vindo a reconhecer formalmente a importância da protecção do ambiente no artigo 225 da Constituição de 1988. Estes são exemplos de Estados que prosseguem (ou prosseguiram) políticas de protecção ambiental apesar da indiferença dos textos constitucionais.

Por outro lado, o facto de integrar o elenco de objectivos constitucionais, quer a título de valor a proteger comunitariamente, quer no plano das tarefas do Estado, não é determinante da adopção de políticas públicas de conservação e promoção ambientais. Esta situação, tributária não só da natureza de “direito social” que anda associada à temática ambiental — e que o condena a uma existência refém da criação de condições de realização mercê da sua consagração em “normas programáticas”, sobretudo ao nível financeiro —, mas também do défice de sensibilização dos poderes públicos e da população para o imperativo de gestão racional dos recursos naturais, reduz o papel da Constituição a uma simpática declaração de intenções. Portugal é um bom mau exemplo desta asserção: gerado em 1976, o artigo 66º revela a sua faceta objectiva, de forma inequívoca, com a revisão de 1982, que considera a protecção ambiental uma tarefa fundamental do

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Estado [artigo 9º/d)], mas só em 1987 (mais de dez anos passados sobre a entrada em vigor da Constituição) surge a Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril = LBA), cujo desenvolvimento sistemático só com o virar de década se efectua. A adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1987, não lhe é, certamente, alheia, antes pelo contrário.

A “novidade” das preocupações ecológicas em muito contribuiu, decerto, para a “ultrapassagem” do legislador constitucional, apanhado de surpresa por uma causa mobilizadora que só no início da década de 1970 despontou >5 . Por coincidência, a revolução dos cravos associou-se formalmente à revolução de mentalidades que suporta a consagração do objectivo de protecção do ambiente, embalada pela recente tomada de posição da comunidade internacional traduzida na Declaração de Estocolmo (1972). Descontada uma certa ingenuidade, importada do Direito Internacional, pode dizer-se que o legislador constituinte até começou bem no traçado do conteúdo do artigo 66º. Porém, foi traído pela “novidade” da matéria e caiu numa tentação revisionista do preceito que o erodiu até ao limite. É esta primeira nota, de errância, que pretendemos desenvolver em 1..

Uma segunda nota, o simbolismo, resulta formalmente da contaminação da Constituição por pleasant sounding formulae oriundas de textos de Direito Internacional — maxime da Declaração de Estocolmo —, mas sobretudo e numa dimensão de concretização material, da estreita conformação do Direito do Ambiente nacional pelas soluções provenientes do Direito Comunitário — 2.. Por outras palavras, a integração do Estado português na Comunidade Europeia arreda para segundo plano o quadro constitucional, pelo menos do ponto de vista da efectividade do complexo normativo ambiental.

Finalizaremos este texto com um conjunto de sugestões, traduzindo retoques mais ou menos cirúrgicos, com vista à melhoria da inteligibilidade e coerência das normas da Constituição ambiental (3.).

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1. A errância detectada na evolução do quadro constitucional ambiental, de 1976 a 1997

O artigo 66º, na sua versão original, tinha quatro números: o nº 1, consagrando o direito de todos os cidadãos a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, acompanhado do dever de o defender; o nº 2, no qual se estabeleciam as quatro prioridades de acção do Estado e demais poderes, públicos e privados, no âmbito da protecção do ambiente, que incluíam a prevenção da poluição, o ordenamento do território em atenção à harmónica distribuição dos recursos biológicos, a conservação da natureza através da criação e manutenção de parques e reservas naturais, e a gestão racional dos recursos naturais, com respeito pela sua capacidade regenerativa; o nº 3, sede de pedidos indemnizatórios por violação do direito ao ambiente previsto no nº 1; e finalmente, no nº 4, a Constituição enquadrava a protecção ambiental no objectivo mais abrangente da promoção da qualidade de vida >6 . Na altura, esta última referência constituía a única ligação entre o artigo 66º e a alínea c) do artigo 9º (sob a epígrafe, que se mantém, “Tarefas fundamentais do Estado”) >7 .

Como se sabe, as revisões constitucionais (sete, até hoje), alteraram, por vezes profundamente, o texto da Lei Fundamental. O artigo 66º escapou praticamente incólume à revisão constitucional de 1982, ressalvada a renovação da redacção do nº 3, que passou a distinguir a lesão de bens naturais e a “lesão directa” na esfera pessoal (na lógica da assimilação entre direito ao ambiente e direitos de personalidade), para efeitos de indemnização >8 . Já ao nível do artigo 9º, a alteração foi significativa, na medida em que lhe foi aditada uma nova alínea [e)], a qualPage 31incumbe o Estado de “proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente e preservar os recursos naturais”.

Foi em 1989 que o “artigo ambiental” português sofreu a sua primeira reforma significativa: a alínea b) do nº 2 do artigo 66º foi complementada com uma referência ao “equilibrado desenvolvimento sócio-económico” essencial ao correcto ordenamento do território >9 — o que acentua a transversalidade da temática ambiental e a consequente necessidade de integração com, nomeadamente, as opções em sede de ordenamento do território; e os números 3 e 4 desapareceram — este último, em nossa opinião, por inutilidade e redundância; aqueloutro, por rearrumação no artigo 52º/3 da Constituição >10 (anterior artigo 49º/2 >11 ).

Esta inovação — que se reflecte não apenas ao nível do ambiente, mas relativamente a todo um conjunto de bens colectivos — assume um relevo fundamental na compreensão do modo de tutela, procedimental e jurisdicional, do ambiente, mas denota alguma infelicidade formal da parte do legislador constitucional. Isto porque se, por um lado, o legislador da revisão deu sede constitucional ao direito de intervir em processos nos quais está em causa um interesse colectivo e não um típico direito individual — através de um mecanismo de extensão da legitimidade processual como a “acção” popular –, por outro lado, o nº 3 do artigo 52º confunde lesão de interesses colectivos com lesão de interesses individuais, ao aludir à “correspondente indemnização” para os lesados. Tal expressão constitui um retrocesso (no que aqui releva, em sede especificamente ambiental, mas não só) relativamente à fórmula de 1982, que claramentePage 32destrinçava entre lesão individual (“lesão directa”, individualmente ressarcível) e lesão de bens naturais (dano ecológico, não individualmente ressarcível) >12 .

A quarta revisão constitucional voltou a mexer nos artigos 9º e 66º. Na disposição dedicada às tarefas fundamentais do Estado, o legislador decidiu incluir, na alínea d), a par dos direitos económicos, sociais e culturais, uma nova categoria, de direitos ambientais [esquecendo-se (?) de alterar a epígrafe do Título III em conformidade] >13 .

Entre as modificações mais relevantes, o artigo 66º passou a incluir uma referência à ambígua fórmula do “desenvolvimento sustentável”, no nº 2 >14 ; estabeleceu a relação entre aproveitamento racional dos recursos naturais e solidariedade intergeracional [alínea d), in fine]; reforçou a ideia de horizontalidade da política ambiental [nas alíneas e), f) e h)]; e alertou para a necessidade de “promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente” [alínea g)] >15 .

Enfim, pode dizer-se, em jeito de balanço das revisões do artigo 66º da CRP, que o legislador tem uma visão pouco nítida do bem jurídico ambiente — revelada,Page 33sobretudo, no nº 2, que inc...

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