Alteridade e diferença na “Conquista da América”: Alguns pressupostos para uma compreensão inicial dos direitos constitucionais indígenas

AutorMoacir Camargo Baggio
Páginas27-53

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1 Introdução

A Constituição Federal de 19881 pretendeu dar expresso fundamento constitucional aos direitos indígenas2. Nesse sentido, o constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao afirmar que aquela Carta Magna “...revela um grande esforço do Constituinte no sentido de preordenar um sistema de normas que pudesse efetivamente proteger os direitos e interesses dos índios”3. E, de fato, tanto assim foi que o mesmo jurista destaca que, apesar de ser possível identificar a existência de algumas limitações no sistema então concebido, avançou-se largamente no trato dispositivo dessa relevante temática:

É inegável, contudo, que ela deu um largo passo à frente na questão indígena, com vários dispositivos referentes aos índios4, nos quais dispõe sobre a propriedade das terras ocupadas pelos índios, a competência da União para legislar sobre ‘populações indígenas’, autorização congressual para a mineração de terras indígenas, relações das comunidades indígenas com suas terras, preservação de suas línguas, usos costumes e tradições. (DA SILVA, p.723).

Não importa aqui examinar sobre a suficiência ou adequação de tais disposições constitucionais, ou mesmo sobre o conteúdo das considerações doutrinárias precedentes5. Nem mesmo a propriedade de se conceber um sistema tal, como sendo meramente “protetivo”6, está em causa nesse momento inicial. OPage 29 que releva anotar e evidenciar é tão somente a importante constatação, feita (propositalmente) desde a mais básica doutrina constitucional, de que os fundamentos constitucionais dos direitos dos indígenas foram devidamente explicitados como jamais havia ocorrido antes7.

Contudo, apesar do trato de institutos específicos e reconhecimento de direitos especiais para as assim denominadas “populações indígenas”8, a problemática de uma adequada leitura, interpretação e aplicação (isto é, de uma adequada compreensão9, em sentido mais amplo e conectado com a hermenêutica filosófica10) de tais direitos transcende em muito a questão de sua mera positivação (ainda que elevada) no ordenamento jurídico nacional. Ademais, tal discussão parece permanecer a descoberto de um melhor exame de suas bases primeiras e, quiçá, anteriores ao próprio estudo do Direito, ao menos pela comunidade jurídica em geral, malgrado os já não poucos anos de vigência da Constituição de 1988.

De resto, não bastasse a diferenciada complexidade inerente ao assunto, o trato de tal tema espinhoso vem se impondo, mais recentemente, com uma urgência e uma frequência cada vez maiores, mercê de uma progressiva intensificação doPage 30 processo de globalização11, de uma certa exacerbação dos valores de um invidualismo “libertário”12 e das consequentes disputas políticas mundiais crescentes por posições de vantagem nos campos da economia e das políticas relativas ao meio-ambiente. Recrudesce, assim, a busca (e disputa) competitiva entre as nações por níveis de crescimento econômico cada vez mais elevados13, precisamente num momento em que se constata a insustentabilidade da generalização de tais níveis de crescimento14, já do ponto de vista da deterioração das condições ambientais planetárias e da própria escassez progressiva de recursos naturais que esse modelo parece causar15. Nesse contexto, é compreensível que passem a aflorar, em maior quantidade e intensidade, conflitos por demarcações e posse de terras indígenas ou utilização de seus recursos naturais16, só para se dar um exemplo da potencialização do antigo problema da viabilização da convivência com esses povos na América, ocorrente na “sociedade contemporânea em transição”17.

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Há a clara (e premente) necessidade, pois, de exame aberto dos pressupostos de natureza multidisciplinar que animam e que dão substância (contornos mais precisos) a tal problemática do trato dos direitos indígenas. E mais: que, ao fim e ao cabo, sirvam para oferecer um norte minimamente seguro à discussão, inclusive do próprio ponto de vista jurídico. Isso tudo, é claro, se houver mesmo a pretensão de realmente enfrentar com seriedade as agruras da concretização adequada de tais previsões constitucionais e suas possíveis e desejáveis derivações normativas de suporte.

Daí a opção, nesse breve ensaio, pelo exame preliminar de alguns quadros históricos, representativos de certos momentos aparentemente significativos na “conquista da América18”, para a compreensão das questões da alteridade, da igualdade, da diferença e da identidade, que subjazem necessariamente ao trato de tais pressupostos19. Daí a necessidade de que o exame de tais elementos históricos20 seja temperado por algumas considerações de cunho filosófico, político e sociológico, para que se construa uma base concreta inicial com que se trabalhar a discussão sobre alguns desses possíveis pressupostos. Com isso, ainda que esse início de investigação, de limitado fôlego, não possa passar de algumas considerações perfunctórias e, por isso mesmo, muito deficitárias quanto a seu desejável conteúdo21, se terá ao menos tido a oportunidade de instigar uma certaPage 32 espécie de discussão que parece, via de regra, passar ao largo da consideração dos lidadores do direito em geral (ou ao menos ser enfrentada de forma algo confusa e assistemática), quando de um primeiro vislumbre do tema.

Como decorrência dessas considerações iniciais de natureza multidisciplinar, será então sugerida, em seguida, como hipótese inicial de trabalho a ser mais bem desenvolvida em futuras investigações, a ideia de que tais pressupostos poderiam se constituir, fundamentalmente, (a) no preliminar reconhecimento da condição básica de “iguais-diferentes” aos indígenas; (b) na respeitosa aceitação e reconhecimento, no entanto, de um peculiar elemento de “diferença” a marcar a(s) “identidade”(s) desse(s) grupo(s) social(is) (noção de diferença relevante); (c) na compreensão de que o reconhecimento ou, quiçá, reconstrução dessa(s) identidade (s) deve atentar a um certo “dinamismo” das diferenças; (d) na verificação da impositividade da antecedente criação e garantia estatal de espaço público para a construção de uma sociedade fraterna e orientada pelo artigo 3º da Constituição Federal, apta a abarcar adequadamente também o trato dessa intrincada problemática e a viabilizar uma concreta “política de reconhecimento da diferença” no Brasil.

Por fim, serão tecidas breves considerações acerca de um início de ordenação ou sistematização lógico-jurídica de tais pressupostos, para o fim de que possam ser utilizados como ferramental hermenêutico de efetiva utilidade no trato dos institutos jurídicos que resguardam os direitos indígenas constitucionalmente.

2 Quadros do “descobrimento” perpetuado: terra ignota, seres ignorados Estranhamentos máximos: a descoberta do “não semelhante” na mezo-américa. Igualdade e assimilação: o fim da ideia das utopias “ingênuas” nas missões guaraníticas. Diferença e destruição: os estertores de uma civilização – a “solução final” nas planícies norte-americanas

Embora atualmente não mais se possa negar com seriedade a ocorrência de um processo de extraordinária destruição dos povos autóctones das Américas pela ação do conquistador europeu, quer seja representado pela aniquilação direta dos próprios indivíduos, quer pela subjugação implacável de sua cultura, ainda é corrente a ignorância sobre as dimensões da hecatombe. Por isso, e porque justamente a partir da materialização mais objetiva do genocídio ocorrido nas Américas a partir do século XVI é que se deve necessariamente iniciar o tratamento de questões como alteridade, igualdade e diferença, para os fins propostos nesse escrito, é que se recorre aos impressionantes números apresentados por TZVETAN TODOROV, quanto ao que chama de destruição “quantitativa” (haveria também a “qualitativa”22) dos indígenas:

Sin entrar em detalles, y para dar solo uma idea general (aun si uno no se siente con pleno derecho a redeondear las cifras), diremos que en el año de 1500 la población global debia ser de unos 400 millones, de los cuales 80 estaban en las Américas. A mediados del siglo XVI, de esos 80 milionesPage 33 quedan 10. O si nos limitamos a México: en vísperas de la conquista, su poblacion es de unos 25 millones; en el año de 1600, es de un millón.

Si alguna vez se ha aplicado con precisión a un caso la palabra genocidio, es a este. Me parece que es un récord, no sólo en términos relativos (una destrucción del orden de 90% y más), sinó también absolutos, puesto que hablamos de una disminución de la población estimada en 70 millones de seres humanos. Ninguna de las grandes matanzas del siglo XX puede compararse con esta hecatombe. (TODOROV, 2003, p.144).

Vale dizer, não só espanhóis e portugueses, mas ingleses, franceses e demais europeus que procederam à conquista das Américas23, subjugando e dominando os povos locais, utilizaram-se em geral, embora em escala variável, de uma força brutal e de um grau de crueldade e violência impar na história para a consecução de seus desideratos marcados pelo mercantilismo24 e pelo fundamentalismo cultural e religioso25.

E isso com uma tal ferocidade26, não importando se as causas da mortandade derivaram da ação direta de extermínio dos indígenas (nas guerras ouPage 34 fora delas), dos maus tratos...

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