'Alô, coto via!': Manuel Bandeira na Revista Anhembi

AutorGeorge Luiz França
CargoGeorge Luiz França é professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Páginas56-70
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ALÔ,&COTOVIA!”
manuel'bandeira'na'revista'anhembi
George&Luiz&França
CA&–&CED&–&UFSC
RESUMO:Anhembi<
Duarte, ao de 144 significativo que em série<
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autortextos especial,poema exemplarum
montagem não povoa<abandeiriana seus como o<
paradigmaAnhembi,<
traçandolinhasconstruçãoimagempoetamaduroapresentado,
intérprete
PALAVRAS-CHAVE:Anhembi;
ALÔ,&COTOVIA!”
manuel'bandeira'in'the'anhembi(magazine
ABSTRACT:high-modernismAnhembi<(1950-1962)magazine
Paulo(1899-1984),144number
toBrazilianavant-garde. “river”<Anhembi, the “bandeirantes”<
(colonialis-
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KEYWORDS:Anhembi;
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“ALÔ, COTOVIA! ”
manuel bandeira na revista anhembi
George Luiz França
Fina como a seta
que essa esfera dá
cuja luz se estreita
na alva clara já,
até mal vermos, só sabemos que ali está.1
A revista
À rua 7 de abril, próxima da Praça da República, em São Paulo, muito pró-
ximo do Edifício Guilherme Guinle, projeto do arquiteto modernista Jacques
Pilon onde nasceu o Museu de Arte de São Paulo, funcionou entre 1950 e
1962 a redação da revista Anhembi, dirigida por Paulo Duarte. Museu e revista
são faces de uma conjunção em que as forças de transformação modernista,
que no início do século XX bradavam por uma renovação das artes nacionais,
encontram seu lugar não mais de transgressão, mas de cânone: de um lado,
os Diários Associados de Assis Chateaubriand em conjunção com Pietro Maria
Bardi – que atua para que não se distinga a “arte antiga da moderna”, na fun-
dação do espaço; do outro, Anhembi, também não um periódico de vanguarda
ou de arte moderna, mas sim “uma revista de alta cultura”, projetos antolo-
gizadores em que a produção modernista vai se inscrevendo, através de suas
políticas, em espaços canônicos.
Anhembi publicou 144 números mensais de, em média, 200 páginas,
reunindo inéditos de colaboradores nacionais e estrangeiros sob a batuta de
Paulo Duarte, seu diretor e, construtor dessa espécie de Estado de papel que,
em suas pretensões enciclopédicas, para não dizer algo iluministas, divulga as
eleições de seu diretor. Duarte é uma figura de trânsito entre Brasil, Europa
e Estados Unidos na primeira metade do século XX: ao mesmo tempo gran-
de amigo de Mário de Andrade e um dos responsáveis por sua presença no
Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, Chefe de Gabinete do pre-
feito Fábio Prado, exilado político por sua rivalidade com Getúlio Vargas em
duas oportunidades, estudioso do Musée de l’Homme ao lado de Paul Rivet
1 SHELLEY, Percy Bysshe. A uma cotovia. [Trad. Fernando Pessoa]. In: SARAIVA, Arnaldo. Fer-
nando Pessoa, poeta-tradutor de poetas: os poemas traduzidos e o respectivo original. Porto:
Lello, 1996.
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“alô,
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e Marcel Mauss, um dos primeiros a trabalhar na novíssima seção de cinema
do MoMA ao lado de Luis Buñuel. O homem que foi editor de O Estado de S.
Paulo e deixa o jornal de ampla circulação para fundar sua revista nos anos
50 acumula um considerável conjunto de contatos intelectuais que permite
construir uma antologia modernista que, embora encarne sua vertente es-
tatal assombrada pela eterna figura de Mário de Andrade, rumoreja também
a possibilidade de internacionalizar o debate sobre a modernidade brasileira
para além do discurso do autonomismo nacionalista que hegemonizou a nar-
rativa do modernismo canônico – com a qual sua revista também contribuiu.
A revista Anhembi se porta como uma antologia e tem estrutura fixa:
todo número traz um editorial, um bloco de textos variados, em sua maioria
ensaios, de colaboradores brasileiros e estrangeiros, mas também contos, po-
emas, peças de teatro, depoimentos e textos de outros gêneros; e por fim, um
conjunto de seções “de 30 dias”, abarcando a revisão das notícias do mês, bem
como resenhas de livros, de montagens teatrais, de filmes, de concertos e de
exposições de arte, e depois de algum tempo, de atualidades científicas. Ao
longo de cada número, uma série de anunciantes que gozavam de prestígio
social em São Paulo desfilam pelas páginas, como as indústrias Matarazzo, a
Antarctica, o próprio Estadão, o Cotonifício Crespi, bancos, entre outros. Em
sua ambição enciclopédica, luminosa, a antologia tem como uma de suas me-
tas políticas a canonização de uma vertente “estatal” do Modernismo.
Uma visita ao nome da revista nos leva a identificar, nela, uma nítida in-
clinação pedagógica – haja vista que as antologias foram por longo tempo o
material escolar do professor de português, ou ainda, que até mesmo o livro
didático atual, mesmo com seus apêndices de exercícios e explicações, tam-
bém pode ser pensado como tal, na medida em que é também uma seleção
de textos. “Rio de unas aves añumas”2 (também conhecidas como emas-pre-
tas, unicórnios ou itaús), Anhembi é o nome ancestral do rio Tietê, roteiro de
penetração já utilizado pelos indígenas, primeiros habitantes da terra, e re-
missão clara à violência fundadora bandeirante – imagem, aliás, adotada pela
revista e pelo próprio editor, que publica poemas com pseudônimos inspira-
dos em figuras históricas desse momento, como Raposo Denis e Tietê Borba.3
Paulo Duarte dá conta dessas informações no editorial do primeiro número, e
2 DUARTE, Paulo. Anhembi. Anhembi. São Paulo, v. I, n. 1, p. 1, dezembro de 1950.
3 Longo texto sobre o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, também é publicado pela revis-
ta, bem como o discurso de Armando de Salles Oliveira em sua inauguração.
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as retoma quando do aniversário de um ano da revista, em tom alvissareiro.
Se outrora fora o rio um caminho de “penetração” física e cultural, na medida
em que foi um vetor de nosso violento processo de colonização e genocí-
dio indígena, a revista propunha-se, ao nascer no final do ano de 1950, a ser
um mecanismo de penetração cultural, de “elevação da cultura brasileira” –
diante da ascensão da sociedade de massas e da massificação cultural, à qual
Duarte e os seus eram amplamente reativos, e mantendo e reafirmando, pois,
a antinomia entre “alta” e “baixa” cultura, sendo a “alta” o gosto das elites
consumidoras do periódico, à qual iam se incorporando, aos poucos, certas
vertentes de nossa arte modernista. É digna de nota, ainda, a forte presença
do espectro de Mário de Andrade (até mesmo em um dos textos de autoria de
Bandeira presentes no periódico), morto em 1945, porém eternamente sau-
dado e revisitado pela revista; é uma das referências mais citadas ao longo dos
números do periódico, de acordo com a Base de Dados Periodismo Literário
e Cultural do NELIC, na qual os dois primeiros anos encontram-se indexados.
É preciso, portanto, pensar o edifício modernista a partir desse viés marioan-
dradino consolidando-se institucionalmente.
Bandeira em revista de bandeiras
Como chegamos a Manuel Bandeira na revista Anhembi, ironia nominal de
se ver Bandeira em meio às bandeiras de Duarte? Uma das portas de entrada
possíveis seria um poema que pode ser lido em correspondência com a própria
revista em sua remissão às emas-pretas do rio. Trata-se de um debruçar-se
sobre as aves, mais especificamente, sobre uma cotovia. Bandeira tem sua
primeira colaboração com Anhembi, no poema que viria a ser o segundo de
Opus 10 (lançado em 1952), sucedendo Boi morto, que traz o fluxo inexorável
do tempo e dos “destroços do presente”, e antecedendo os sonhos imbricados
e delusórios de Tema e variações. A este tempo, Bandeira já havia sido nome-
ado professor do Colégio Pedro II por Capanema e eleito para a Academia
Brasileira de Letras (onde foi saudado por Ribeiro Couto, outra figura que
comparece como poeta em Anhembi, e a quem Bandeira também dedica al-
guns de seus versos).
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COTOVIA
- Alô, cotovia!
Por onde andaste?
Aonde voaste,4
Que tantas saudades me deixaste?
- Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento.
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe...
Voltei, te trouxe a alegria.
- Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.
- Líbia ardente. Cítia fria,
Europa, França, Bahia...
- E esqueceste Pernambuco,
Distraída?
- Voei ao Recife no cais5
Pousei na Rua da Aurora.
- Aurora da minha vida,
Que os anos não trazem mais!
- Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é dêste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
- Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança
Trouxe a perdida alegria.6
4 Na edição da Nova Aguillar das poesias de Bandeira, bem como em Estrela da vida inteira, o
segundo e o terceiro verso deste poema aparecem invertidos.
5 “Voei ao Recife, no Cais”, nas edições mencionadas.
6 BANDEIRA, Manuel. Cotovia. Anhembi. São Paulo, v. IV, n. 10, p. 43-44, setembro de 1951.
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A evocação coloquial de uma conversa estrutura o poema de Bandeira,
em que o eu lírico se dirige à cotovia e pede notícia das paragens por onde an-
dou, ao que esta lhe responde falando de diferentes lugares, terminando por
evocar topos romântico do Recife da infância de “perdida alegria” bandeiriana.
Cabe citar um primeiro referencial, geográfico: a cotovia é uma ave europeia
e asiática, que também habita o norte da África. Se está no Brasil, certamente
é ou ave de importação, ou em movimento migratório. A primeira pergunta
feita a ela remete justamente aos paradeiros de seu voo, aos “cartões-postais”
que pode ela trazer ao eu lírico. E ela foi aos sítios não vistos, talvez àquela
Pasárgada, distante e desejada, percorreu o mundo, como também fez a revis-
ta que remete às emas-pretas, estas, aves ribeirinhas. Notadamente, a cotovia
é uma ave canora, conhecida pelo seu canto, e não migratória; geralmente
está associada ao raiar do dia, ao nascer do sol, diferentemente do rouxinol,
ave ligada ao cair da tarde. É clássica a menção a ela em Romeu e Julieta, de
Shakespeare, no Ato III, cena V,7 em que os apaixonados discutem se estaria
próxima a aurora em virtude do canto desses pássaros. Julieta afirma que o
canto ouvido por eles seria do rouxinol, o que não seria sinal do dia vindouro,
ao que Romeu reconhece ser a cotovia, “arauto do dia”, obrigando-o a partir
para viver, e não ficar para morrer:
Julieta
Mas já quer ir? Ainda não é dia.
Foi só o rouxinol, não cotovia
Que penetrou seu ouvido assustado.
Toda noite ele canta entre as romãs.
Verdade, amor; foi só o rouxinol.
Romeu
Foi o arauto do dia, a cotovia,
E não o rouxinol. Veja os clarões
Que já rendaram as nuvens no leste.
Cada vela do céu já se apagou,
E o dia, triunfante, se prepara
Para pisar nos cumes das montanhas.
Ou vou e vivo, ou fico aqui e morro8
7 O mapeamento das referências do poema Cotovia, bem como sua leitura como colagem e
montagem, foi desenvolvido por Valmiki Guimarães em artigo intitulado “Tradução, paráfrase,
paródia e colagem em Manuel Bandeira”, publicado nos Cadernos de Linguística e Teoria da
Literatura da UFMG em 1986.
8 SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Trad. Barbara Heliodora. São Paulo: Saraiva, 2011.
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São as notícias de fora, da ave, que podem trazer alegria ao triste eu líri-
co, que ficara em seu país, o Brasil, em especial pela remissão a Pernambuco,
à Rua da Aurora, ao cais, à terra de nascimento de Bandeira e tão recorren-
te tema de sua produção poética. Das terras visitadas pela ave, nenhuma
mais satisfaz o eu lírico do que aquela que traz em seu bojo a memória da
infância – ao ponto de este admoestar a ave pelo possível “esquecimento” de
Pernambuco. O tema da memória e da melancolia, a romântica nostalgia aca-
ba por se estabelecer, e surge através do deslizar do sentido do nome da rua,
que remete a outra aurora, já clássica, a do poema Meus oito anos, de Casimiro
de Abreu. Bandeira utiliza, pois, o procedimento de “desentranhar” ou de em-
prestar trechos de textos alheios, um tipo de gesto recorrente na poética de
Ana Cristina Cesar, que muito o admirava e que por várias vezes “vampiriza”
o poeta. A passagem da Aurora nome próprio, logradouro próximo aos canais
de Recife, por onde corre Bandeira menino, à livre associação com o verso ro-
mântico, tornado clichê de banco de escola, marca novamente a utilização do
procedimento da montagem, do empréstimo, da construção do discurso do
poeta e da cotovia a partir da incorporação anacrônica de textos da tradição.
Mas a aurora da vida está para sempre perdida, resta como rastro, lembrança,
evocação, fantasma. A ave pode torcer o destino, tema que agora retorna,
mas para torná-lo menos pesaroso do que o foi aos enamorados de Verona.
No entanto, a esperança que a cotovia traz ao poeta é, ela própria, “extinta”,
isto é, no fundo, mais do que simplesmente estar perdida, deixou de existir,
extinguiu-se, não há. A alegria, pois, pode apenas assomar da infância, tempo
de memória, tempo-imagem que não há, tempo da não-fala, tempo primeiro
das experiências. Tempo perdido?
É interessante que, na última estrofe, a voz não retorna ao poeta, e o novo
travessão marca a continuidade da fala da cotovia, de modo a ressaltar o que
ela traz – um tempo e um espaço utópicos, lembrados com nostalgia. Mas a
evocação evasiva, basicamente tardo-romântica, é significativa. Por que este
poema de Bandeira em Anhembi? Por que não outro, tomado do mesmo in-
tervalo de produção? Talvez uma resposta ou associação possível se dê pelas
vias da montagem. Com efeito, para além das associações entre as aves –
as anhumas do Tietê, a ave viajante de Bandeira –, a cotovia serve também
como alegoria da própria revista. Se as revistas encarnam a própria lógica da
modernidade pelas vias da montagem, da fragmentação da experiência, do
advento do informe e da justaposição de textos que são fragmentos por vezes
radicalmente distantes, unidos pelo acaso, pela exiguidade do tempo presente
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e pela mão do diretor, daquele que seleciona, isto é, do antologista, já vimos
também que este poema se constrói, também, pelo procedimento de “desen-
tranhar”, ou seja, pela incorporação ao discurso por Bandeira de menções a
outros textos, próprios ou alheios.
Ao falar de seus destinos, antes mesmo de evocar o Recife, a cotovia
diz ter passado por “Líbia ardente, Cítia fria”. Como também observado por
Valmiki Guimarães em seu já citado estudo, trata-se de uma parte do Canto
III d’Os Lusíadas. Sabidamente, nessa parte do poema camoniano, Vasco da
Gama é exortado a contar a “genealogia” de seu povo, e passa a fazê-lo recon-
tando como herói a história de um povo, ao gosto épico. Quando Gama relata
o episódio de Inês de Castro, põe em sua boca as seguintes palavras diante da
circunstância de sua morte, nas quais solicita ela o exílio como pena: “Põe-me
em perpétuo e mísero desterro, / Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente / Onde
em lágrima viva eternamente.9 Inês pede como lugares de desterro países
distantes de Portugal e de origem árabe, como a Cítia, cujo nome remete a ser
um povo arqueiro, ou, na verdade, um conjunto de povos de origem iraniana,
e a Líbia, território do norte da África também sob domínio árabe à época em
que Camões escreveu.
É possível afirmar, ainda, que todos os destinos da cotovia são marcados
por citações. Ao rimar “Cítia fria” com “Europa, França e Bahia”, Bandeira no-
vamente cita, mas desta vez um mote de Mário de Andrade que se repetiu em
outros dois poetas, Carlos Drummond de Andrade e Ascenso Ferreira. Com
efeito, Vei a Sol, ao pedir a Macunaíma que vire seu genro, assim se dirige ao
herói sem nenhum caráter: “— Meu genro: você carece de casar com uma
das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Baía. Mas porém
você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por
aí.”10 O dote que Macunaíma receberia é também o mote de um poema de
Drummond publicado em Alguma poesia, de 1930, que leva justamente como
título Europa, França e Bahia, no qual o eu lírico percorre as passagens eu-
ropeias com “olhos brasileiros” que “se enjoam da Europa e se fecham “sau-
dosos”, procurando a “Canção do exílio” – outro referencial romântico que
bem se coaduna com a menção bandeiriana a Casimiro de Abreu no poema da
Cotovia. Dos “olhos brasileiros sonhando exotismos”, na euforia vanguardista,
passamos ao pássaro que viaja pelos territórios e apenas pode trazer “extinta
esperança” e “perdida alegria”, melancolicamente, nos anos 50.
9 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / A Es-
cola do Futuro da Universidade de São Paulo, s/d. [Domínio público].
10 ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Est. texto de Telê Ancona
Lopez e Tatiana Longo Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 90.
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A matriz da citação, e mais ainda, da montagem, é, portanto, movimentada
por Manuel Bandeira como procedimento poético, e permite pensar o poema
Cotovia como co-irmão da própria ideia de um projeto de revista. Nesse senti-
do, chega a ser irônica a menção a uma passagem em que Inês de Castro peça
o desterro, contando com o fato de que o projeto que resulta em Anhembi tem
suas raízes justamente nos períodos de exílio de Duarte, nos quais conheceu
alguns colaboradores aos quais daria amplo espaço na publicação, como o fu-
turista Anton Giulio Bragaglia. É um projeto, pois, de cunho tardo-romântico,
e por que não dizer, algo iluminista, que apesar de uma “extinta esperança”
tenta revisitar uma perdida alegria. Não mais a euforia vanguardista da aurora
do Modernismo, mas a postura remissiva, canônica e canonizadora em que se
revestem os senhores que um dia deflagraram o movimento de 22.
Histórias do modernismo
É digno de nota, ainda, que vários foram os interlocutores que Duarte trou-
xe a Anhembi para historiar o movimento modernista brasileiro. Sérgio Milliet
foi o primeiro deles. Cunhado de Paulo Duarte e também poeta, Milliet publica,
nos cinco primeiros números da revista, seus “Dados para uma história da po-
esia moderna/modernista” (o título oscila), que viria a se tornar o “Panorama
da moderna poesia brasileira”, publicado em 1952. O texto parte da premissa
de que a história das artes se faz da alternância entre períodos “clássicos” e “ro-
mânticos”, entendendo o modernismo justamente nesse segundo polo. Milliet
vai revisitando, a partir de Mário e Oswald de Andrade, com clara predileção
pelo primeiro – assim como toda a construção do modernismo institucional
– uma série de poetas, fazendo uma espécie de antologia destes, num texto
fortemente marcado pelo impressionismo e, claro, pela ligação pessoal e parti-
cipante que tem ele com o movimento. Entre os vários poetas que visita está,
logicamente, Bandeira.
Voltemo-nos, por um momento, ao que diz Milliet sobre a poética de
Bandeira. É com este poeta que o crítico abre a segunda parte de sua análise
da poesia modernista, não sem antes uma nota breve sobre Luís Aranha, de
que destaca a importância histórica de ter sido o primeiro a usar, na poesia
brasileira, a “técnica da associação de idéias” em seu “Poema giratório”. É dig-
no de nota que Aranha não tenha participado da Semana de Arte Moderna,
mas tenha publicado em Klaxon, e que Bandeira, ao coligir versos dele em sua
Antologia dos poetas bissextos contemporâneos, diz que “emudeceu como
um novo Rimbaud”.11
11 Observação feita por José Lino Grünewald em texto publicado na seção de Literatura do Cor-
reio da manhã de 27 e 28 de fevereiro de 1972, em texto intitulado Um marco esquecido: Luís
Aranha, disponibilizado pela Hemeroteca Digital Brasileira.
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Milliet destaca em Bandeira uma “serenidade e plenitude de composição”
alcançada na idade madura, especialmente a partir da Lira dos Cinquent’Anos.
E com isso, dá preferência à segunda versão da “Canção do beco” em relação
à primeira; esta, com o tom transgressor e sem saída; aquela, que volta a me-
mória àquele beco e àquele cantar, para terminar por dizer que dele nunca
teve vergonha. Está pois, assinalada, de partida, uma preferência memoria-
lista, e sempre retesada em direção a uma poesia “madura”, livre da “brinca-
deira” e do “humor” por ele condenados em Oswald e em Drummond – o que
tranquilamente se coaduna com ser “Cotovia” o primeiro poema de Bandeira
publicado em Anhembi. A poética bandeiriana, que para Milliet teria começa-
do embebida de simbolismo e de ataques aos parnasianos, também teria ca-
minhado no rumo de uma “descoberta de personalidade”, o que parece crucial
em todas as análises de Milliet – e que talvez não se perceba justamente como
“persona”. Essa reivindicação de “maturidade” é também uma reivindicação
de inserção numa nova forma de cânone, uma refutação de certo “intelectua-
lismo” que poderia ser transgressor ou elitista a outra maneira. Seria o “lirismo
libertador” reivindicado na Poética, como quer Milliet, uma fuga, a busca da
Pasárgada ou da infância como lugar outro, longe dos contratempos do con-
temporâneo?
Outra conquista, para Milliet, teria sido mérito de Bandeira conseguir dei-
xar de fazer versos “como quem morre”, como dizia em inícios de sua produ-
ção poética, para, ainda mais do que fazê-los como quem “canta”, encontrar
o tom de quem “fala”. E se o ritmo foi constante em sua pesquisa poética, não
há negar que esse discurso sobre o poema como fala nos remete de novo a
uma matriz comunicativa atuante na dialogação da Cotovia. E eis, no ensaio
do crítico um excerto que parece bem adequado para justificar a presença
dessa antologizada dicção bandeiriana em Anhembi: “essa aspiração à pureza,
à inocência, à humildade, que, assim como levam ao céu, conduzem à verda-
deira poesia, a qual não é habilidade nem pelotica, nem brilho raro de retórica,
porém expressão e comunicação através da sensibilidade mais que da inteli-
gência.”12 Para Milliet, também poeta, a poesia tem que comunicar, sendo a
razão um agente construtivo que deve atuar apenas como filtro mediador do
intercâmbio “entre almas”. O jargão, todavia, é sintomaticamente impressio-
nista, e nas próprias páginas de Anhembi as mudanças no discurso crítico não
deixarão de se perceber quando, por exemplo, José Castello resenhar o ensaio
de Milliet lançado em livro, em 1952.
12 MILLIET, Sérgio. Dados para uma história da poesia modernista. II. Anhembi, São Paulo, v. I, n.
2, p. 268, janeiro de 1951.
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Milliet deixa, assim, transparecer que Bandeira alcançara, talvez após ou
mais do que Mário, uma dicção que lhe seria cara. Mas há poesia pura? Ou
inocência para além da leitura, que precisa procurar dela fugir nos meandros
da linguagem? Ou humildade que não seja construída, em se tratando de um
âmbito radicalmente ficcional como o da Literatura?
De Bandeira a Mário
Como já afirmei, justamente porque surge primeiro e já no primeiro núme-
ro, na construção canonizadora de Milliet e Paulo Duarte, Mário de Andrade
é, para Anhembi, a figura de um pai morto: fantasma sempre presente, autor
amplamente citado, mas, justamente porque morto em 1945, nunca colabora.
Talvez, além do fato de que Duarte afirme constantemente, mesmo nas pági-
nas da revista, que o Departamento Municipal de Cultura era a “casa de Mário
de Andrade”, seja importante ver a máscara mortuária construída por Manuel
Bandeira no número 23 de Anhembi com base justamente na grande máscara
em que se constroem as identidades e alteridades humanas: a linguagem. E eis
o ensaio Mário de Andrade e a questão da língua,13 colega, talvez, de poemas
como A Mário de Andrade ausente, publicado por Bandeira em Belo belo, em
que o eu lírico afirma que Mário “não morreu, ausentou-se; “Para outra vida? /
A vida é uma só. A sua continua / Na vida que você viveu. / Por isso não sinto
agora a sua falta”14 ou nas Variações sobre o nome de Mário de Andrade, em que
passeia com o fantasma pela cidade de São Paulo pedindo-lhe cigarros.
Para entender a língua em (ou de) Mário, diz Bandeira, é necessário pen-
sar suas outras personas: o homem, o brasileiro e o artista; efetivamente, todas
construções de linguagem, em imaginários do próprio falecido, em imaginá-
rios do colega modernista a respeito dele. Mário é descrito por Bandeira como
alguém que apenas volta à poesia, depois do muxoxo paterno aos primeiros
versos, com os poemas de Há uma gota de sangue em cada poema e a comoção
com o cenário da guerra. Diferentemente, na recensio bandeiriana, a Pauliceia
surge como livro sobre o qual há titubeio quanto à impressão por se tratar
de uma “bomba”, na visão do autor. Em carta a respeito do livro a Bandeira,
Mário conta de sua visão pendulante entre o particular e universal: “Só
sendo brasileiro [...] é que nos universalizaremos, pois assim concorreremos
com um contingente novo, novo assemblage de caracteres psíquicos pro en-
13 Na edição da Poesia completa e prosa de Bandeira pela Nova Aguillar, não há menção ao fato
de que este texto foi publicado originalmente em Anhembi em seu número 108.
14 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.
198.
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riquecimento do universal humano.”15 Bandeira destaca de Mário, portanto,
justamente a conformação de uma nação imaginada que, com cara definida,
possa se afrontar com a tradição europeia, do centro, e nela se inscrever, ou
ainda, a ela “acrescentar” algo, donde se depreende um entendimento da cul-
tura como algo acumulativo e evolutivo, ou ainda, de um centro ao qual à
periferia tenha que se tensionar para poder inscrever suas singularidades. É
nesse sentido (e não no linguístico, destaca Bandeira) que Rui Barbosa (que
desfrutava também da admiração de Paulo Duarte, perdendo em sua estima,
como político, apenas para Armando de Sales Oliveira e Fábio Prado, com os
quais Duarte trabalhou) tinha para Mário “mais valor para o Brasil do que cem
anos de vida independente e unida, porque foi um ideal humano brasileiro e
concorreu para a nossa solidarização psicológica muito mais do que tôdas as
nossas necessidades comuns; porque foi um ídolo, não mais baiano, mas bra-
sileiro.” A tensão particular/universal reveste-se, aqui, de regional/nacional.
Juntamente com o valor da nação, em seu processo de formação e dife-
renciação inclusiva no concerto mundial, surge o ídolo, essa imagem, indiví-
duo depositário da liderança e, além disso, “pequeno simulacro”, como o defi-
niria Roland Barthes em A câmara clara. Aqui, novamente, não estamos muito
distantes de Getúlio Vargas e dos processos de massificação e liderança caris-
mática, e se tocam, novamente, os dois lados da moeda em torno do pomo de
ouro do Estado. Ressalte-se, ainda, que essa ideia procura suplantar o regiona-
lismo, negando uma “baianidade” (ainda que, como vimos, a afirmação paulis-
ta sempre tenha sido tônica forte) e reivindicando uma figura de fora de São
Paulo para a formação, a partir daquele centro ascendente, de uma ideia de
Brasil. A língua, no âmbito desse ideário de Bandeira a respeito de Mário, teria
sido o plano dos “sacrifícios à verdade e à beleza” no problema “mais vasto e
mais complexo de aprofundar harmonicamente o tipo brasileiro.”
É bom lembrar que o problema do “escrever brasileiro” foi parte das pre-
ocupações não só de Mário e de outros modernistas, em suas diferentes inter-
pretações, mas também de Paulo Duarte, que em 1944, estando em Lisboa,
publica Língua brasileira, e o remete a Mário de Andrade dizendo que “foi
interditado pela censura portuguesa.” Duarte faz a defesa política da separa-
ção da nomenclatura das línguas, afirmação da diferença e da autonomia da
ex-colônia, endossando Mário de Andrade:
15 ANDRADE, Mário de. apud BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade e a questão da língua.
Anhembi. v. 108. Vale lembrar que a citação da carta pessoal de Mário feita por Bandeira é
bastante anterior à publicação de suas cartas, as quais foram por longo tempo desconhecidas
do grande público por desejo do próprio escritor.
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“alô,
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E’ do gênio da língua, diz Carlos Pereira, diversificar-se constantemente. ‘A acção
conservadora da literatura torna mais lenta, porém não anula essa impulsão ge-
nial, essa dialectação constante.’ Isso quando se trata de uma literatura só, mas,
no nosso caso, são, na realidade, duas literaturas, e com freqüência afastando-se
tanto, que Agostinho de Campos, certa vez, criticando o livro de um escritor bra-
sileiro, disse que não conseguira lê-lo porque estava escrito em português só de
vez em quando... [...] a linguagem escrita, a expressão da língua comum, difere
da linguagem literária. E’ o que acontece com a linguagem escrita do Brasil e a
de Portugal. E, no Brasil, desde a acção rejuvenescedora da literatura moderna, a
linguagem escrita usada pela maioria dos escritores passou a confundir-se com a
linguagem literária, daí a diferença acentuada com a de Portugal.16
Ainda que Bandeira note que as invenções vocabulares e os neologismos
praticados por Mário na Pauliceia não teriam um propósito de “diferenciação
brasileira”, chama a atenção para o fato de que ali, no Prefácio interessantís-
simo, Mário fale de “escrever brasileiro”. Teria o paulista lapidado a ideia de
sistematizar o que fazia a partir da provocação da leitura das Memórias senti-
mentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e, a respeito da questão por-
tuguesa que Duarte ainda rebateria em 1944, escrevera ao Diário de notícias,
em 1927, afirma que
Nenhum de nós não tem a pretensão de criar uma língua que um português não
possa entender. Não se trata de inventar uma fala de origem brasílica e incon-
fundivelmente original, não. Se trata apenas duma libertação das leis portugas,
as quais, sendo leis legítimas em Portugal, se tornaram preconceitos eruditos no
Brasil por não corresponderem a nenhuma realidade e a nenhuma constância da
entidade brasileira.17
Ao reproche de Bandeira pelo excesso de paulistismo da escrita marioan-
dradina inaugurada em artigos de 1924, na Revista do Brasil, Mário teria res-
pondido com o pedido de espera por um livro: A escrava que não é Isaura, em
1925, e com o anúncio da Gramatiquinha da fala brasileira, que, segundo o per-
nambucano, alicerçado em carta de Mário a Sousa da Silveira, nunca teria sido
escrita porque era simplesmente anúncio feito por Mário para que entendes-
sem que havia um projeto por trás da maneira como escrevia. Reconhecendo,
todavia, que a linguagem de Mário acaba por operar uma grande mistura da
“rosa-dos-ventos” linguística brasileira, Manuel Bandeira considera que teria
16 DUARTE, Paulo. Língua brasileira. Lisboa: s/ed., 1944, p. 13.
17 ANDRADE, Mário de, apud BANDEIRA, Manuel, Mário de Andrade e a questão da língua, op.
cit., p. 294.
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poesia,69
sido isso o que mais concorreu para “artificializar” a linguagem do autor de
Macunaíma. E qual seria, ou haveria, pois, uma “língua natural”?
É digno de nota, ainda, que além da Cotovia, Bandeira tem outro de seus
poemas publicados nas páginas de Anhembi, no número 80, de setembro de
1957: Craveiro, dá-me uma rosa, incorporado posteriormente ao conjunto de
versos de circunstância do Mafuá do malungo (que teve uma primeira pe-
quena edição feita por João Cabral de Melo Neto em 1948, e uma segunda,
ampliada, de 1954; o poema teria entrado, pois, na terceira, já que saiu iné-
dito em Anhembi). Trata-se de um poema a respeito da situação política de
Portugal, na qual fora eleito o general Craveiro Lopes, em 1951 – fato noticia-
do e comentado em Anhembi no seu n. 10, de setembro daquele ano. Craveiro
ficaria no poder até 1958, e em 1957 realiza uma visita oficial ao Brasil como
presidente. A visita, aliás, é marcada por uma passagem por Salvador plena de
celebração colonial, em que a própria cobertura jornalística enfatiza o discur-
so do progresso, justapondo a chegada de Cabral em 1500 à vinda do general
457 anos depois.18 Ao poema, tal como o conhecemos e que não apresenta
diferenças entre a versão da revista e a publicada em Estrela da vida inteira,
junta-se uma quadra suplementar. Na página seguinte a ele, “Tietê Borba”
(que é ninguém menos do que o próprio Paulo Duarte em um de seus pseudô-
nimos bandeirantes) publica uma Adenda a Manuel Bandeira, com a nota de
rodapé de que teria lido o original de Bandeira na redação e feito uma “quadra
final” para “fêcho do poema”:
É cravo bem brasileiro,
Craveiro de Portugal,
Só cravos de bom craveiro,
Escravos, não, general.
18 Veja-se, por exemplo, a matéria feita por José Maria Neves, com fotos de Newton Viana, para
a Revista da Semana, com farta iconografia, intitulada Craveiro em Salvador revive episódios
da descoberta do Brasil: “QUATROCENTOS e cinqüenta e sete anos depois do cidadão por-
tuguês Pedro Álvares Cabral descobrir o Brasil, aportando em uma caravela rústica o lugar
denominado por êle próprio de “Porto Seguro”, na Bahia de Todos os Santos, um seu patrício,
envergando vistoso fardamento de gala e acompanhado de luzidia comitiva, desembarcou
nas mesmas terras de um pos- sante avião quadrimotor, do tipo mais moderno, e que fêz um
itinerário bem diferente. Só depois de receber as homenagens do estilo, que são devidas aos
Chefes de Estado, é que o General Higino Craveiro Lopes pôde trilhar os caminhos percorri-
dos pelos seus antepassados e contemplar, emocionado, as belas praias de Amaralina, Itapo-
an, Chega Nego, Barra e outros locais que deixaram deslumbrados os intrépidos marujos das
naus portuguêsas e que foram testemunhas dos grandes feitos lusos.
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“alô,
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Ao lado de um dos nomes já consagrados e icônicos da poesia modernis-
ta brasileira, mesmo que escrevendo sobre a “circunstância” da política (da
ditadura salazarista em Portugal, da visita do general), Duarte acredita po-
der aumentar, ampliar, inscrever algo mais no poema. Bandeira fala de man-
dar cravos a Portugal, mas cravos brancos, não os vermelhos, que viriam a
se tornar símbolo da Revolução que ele não estaria vivo para ver. Da mesma
maneira, Duarte chama o cravo branco e “puro” que o eu lírico pretende man-
dar de “cravo de bom craveiro”, terminando por negar a condição (nossa) de
escravos ao general. A circunstância do verso de Bandeira publicado deflagra,
aqui, a possibilidade do discurso de Duarte. Ele se coaduna, por um lado, a sua
oposição às ditaduras, mas, para além, liga-se à afirmação que já em sua abor-
dagem da questão linguística entre Portugal e Brasil fizera, em 1944. Além
disso, já assomara no texto de Bandeira sobre Mário, qual seja, a de condição
de artifício da linguagem e também de campo de projeto, de estratégia, que
serve para a invenção de uma máscara mortuária, de uma imagem, de um ros-
to que não é senão tentativa de deter o que está para sempre perdido.
A afirmação da condição de artifício abre a via justamente para pensar
o teatro da linguagem como o do grande mascaramento em que se cons-
trói não só Mário, ou o Mário de Bandeira, mas também as das duas faces do
Modernismo, quase como as máscaras da tragédia e da comédia justapostas.
Por um lado, a transgressora, a que implodiu a lógica anterior da linguagem a
partir de dentro dela própria; por outro, a que usou do mesmo artifício para
construir a máscara mortuária desse mesmo esforço que poderia ter esboroa-
do e sido esquecida, em nome de outra narrativa da história, em torno da qual
há sempre tensão. Em uma margem, adormecida nas ruínas, a força; em outra,
o próprio artifício usado em nome do apaziguamento das forças em formas,
em nome do féretro da vanguarda, em nome de sua historiação. Na terceira
margem, sob o canto das cotovias e na aurora de uma infância querida que os
anos não trazem mais, Anhembi.
Recebido em 18 de dezembro de 2018
Aceito em 12 de fevereiro de 2019

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