Comercialização de alimentos no circuito inferior da economia urbana: a venda na rua

AutorAlexandra Pava Cárdenas - Danton Leonel de Camargo Bini - Jhon Jairo Bejarano
CargoMestre, Nutricionista Dietista, bolsista CNPq - Mestre, aluno do curso de doutorado em Geografi a Humana pela Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) - Mestre, aluno do curso de doutorado em nutrição pela Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA)
Páginas78-91

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Introdução

A teoria dos circuitos da economia urbana afirma que existem nos países pobres e "em desenvolvimento" dois circuitos responsáveis não só pelo processo econômico, mas também pelo processo de organização do espaço. Cada circuito é definido por um conjunto de atividades e pelo setor da população que está associado a esse, seja para os negócios ou para o consumo. De tal modo, o circuito superior refere-se aos setores bancário, comercial e industrial modernos, enquanto o circuito inferior consiste em atividades intensivas em mão de obra (não em capital) e por serviços e comércios não modernos (em pequenas dimensões) (SANTOS, 2002). Neste sentido, os circuitos da economia urbana são subsistemas que possuem relações de hierarquia e complementaridade, pois nas cidades não só existem mercados modernos (DI NUCCI, 2011)1.

O processo de formação socioespacial nos países em desenvolvimento manifestou-se no último século pela acelerada urbanização acontecida majoritariamente em aglomerações metropolitanas. De forma desordenada, este processo aconteceu com disparidades na divisão do trabalho que consequentemente contribui para a constituição dos diferentes circuitos espaciais de produção, distribuição e consumo das atividades econômicas. Em paralelo aos vetores mais modernos expandidos com o alargamento da globalização nas duas últimas décadas, as cidades milionárias e metrópoles do mundo mantêm em alta densidade a oferta de atividades produtivas, comerciais e de serviços, em geral de baixa capitalização, intensivas em mão de obra e com quase nenhuma organização sistemática (SANTOS, 2002).

Essa rápida urbanização levou ao desencadeamento de crescentes problemas também na mobilidade viária. Numa realidade em que as pessoas percorrem largas distâncias cotidianamente entre o lugar de trabalho e o domicílio, o surgimento e a manutenção dos comércios de alimentos baratos (às vezes, pouco nutritivos e de baixa higiene), nas ruas das grandes cidades manifestam situações características de um planejamento socioespacial direcionado predominantemente à reprodução do capital e não à reprodução saudável da vida em sociedade (CARDOSO, SANTOS & SILVA 2009; ARAMBULO et al., 1995).

Os avanços tecnológicos e a globalização da economia impactaram na indústria de alimentos, na agricultura e no padrão de comensalidade contemporânea urbana: tudo isso se evidencia no que predominantemente é vendido na rua (GARCIA, 2003). Assim, essas transformações trazem como consequências alterações no perfil de morbimortalidade, o qual é objeto de preocupação, por um lado, das ciências da saúde com a questão de alimentos cada vez mais processados, com alta densidade energética e baixa qualidade nutricional (ENSIN, 2010; IBGE, 2010b) e, por outro da ciência econômica, no que se refere aos custos da saúde, os preços dos alimentos, as oportunidades laborais e a sustentabilidade populacional (FAO, 2010).

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Dentro das tendências de modificação nos padrões de consumo alimentar, subsistem os setores da economia urbana que oferecem serviços na rua correspondentes ao circuito inferior. Estes atendem grande parte da população, prioritariamente a quem recebe baixos salários e tem acesso restringido na compra de alimentos em lugares formais (SANTOS, 2002). Estima-se que a venda de alimentos na via pública na América Latina e no Caribe constituirá um elemento importante a ser considerado na Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) para as camadas populares partindo das estimativas de aumento progressivo do êxodo rural nas próximas décadas (OPS, 2005).

A discussão sobre o tema de venda de alimentos na rua traz consigo uma série de situações que envolvem diferentes temáticas. Além do debate sobre as Doenças Transmissíveis por Água e Alimentos (DTA), também aparecem assuntos relacionados com o subemprego, a ocupação do espaço público e a geração de resíduos sólidos e orgânicos (FAO/OPS, 1994). Daí o propósito deste artigo refietir sobre a venda de alimentos na rua no circuito inferior da economia urbana em Bogotá D. C. (Colômbia) e São Paulo (Brasil) e sua interação com os aspectos sociais e políticos.

A venda informal de alimentos nas vias públicas: os casos de Bogotá e de São Paulo

Bogotá e São Paulo são os centros econômicos da Colômbia e do Brasil, respectivamente, caracterizados por serem cidades de grande magnitude, longos deslocamentos e concentração de capital. Trazem consigo a questão do vendedor ambulante sob o viés de sua legalidade e do direito ao trabalho e ao uso do espaço público. Enquanto aspectos discutidos recorrentemente em cada nova administração municipal, os interesses sociais (tanto ao trabalho quanto à alimentação saudável) são negligenciados, refietindo a crise social e econômica do modelo de sociedade vigente.

Uma das sustentações da existência da venda nas ruas é a representação social do problema do desemprego e do subemprego experimentado pelos países da América Latina, especialmente nas suas maiores cidades (FAO/OPS, 1994). Daí que o comércio de rua no meio urbano é exercido principalmente por migrantes rurais de pequenas e médias cidades com baixa escolaridade que buscam nas grandes cidades mais oportunidades de emprego e melhoras nas suas qualidades de vida. No entanto, eles encontram poucas oportunidades porque precisam de qualificação e experiência, e, além disso, são mal pagos (BORJA, 2008). Desse modo, a maioria dos ambulantes não tem nenhuma ou pouquíssima instrução, constituindo-se em grande parte de analfabetos2.

Ao atuarem em sua maior parte na clandestinidade, a quantificação dos trabalhadores do circuito inferior da economia se apresenta como uma incógnita. Essa clandestinidade leva ao mesmo tempo à cumplicidade de alguns e à parceria com outros: o vendedor

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muitas vezes depende de fornecedores também clandestinos e de fiscais públicos tolerantes e/ou corruptos. Assim, as mercadorias são fornecidas e comercializadas sem notas fiscais e garantias3 sob o olhar complacente de alguns fiscais municipais e policiais encarregados de reprimir o contrabando (Viva o centro São Paulo, 1994; MENESES, et al., 2010; GARCÍA-UBAQUE, RIAÑO-CASALLAS & BENAVIDES-PIRACÓN, 2012).

Quadro 1 - Indicadores socioeconômicos das cidades de Bogotá e São Paulo (2010)

[VER PDF ADJUNTO]

Fonte: (a)DANE, 2009; (b)IBGE, 2010a; (c)DANE, 2011; (d)PED:2010.

Para entender melhor a situação da realidade deste estudo de caso, é preciso descrever o panorama geral das cidades objetos desta refiexão (Quadro 1). Daí, ao se fazer um paralelo vê-se que Bogotá e São Paulo são cidades metropolitanas que apresentam dados percentuais bem parecidos no que se refere ao número de crianças, adolescentes, idosos e pessoas desempregadas. Diferenciam-se demograficamente no fato de São Paulo ter uma maior densidade populacional, ao ser uma cidade mais verticalizada.

Na constituição dos espaços de venda de alimentos nas ruas, em Bogotá, a absorção do fiuxo de desabrigados4 gerado pela violência em outras regiões do país contabiliza 200 mil pessoas por ano - numa media diária de 50 novos desabrigados na capital colombiana5 (CODHES, 2012) -, conformando um contingente populacional que sem segurança permanente da sua renda encontra no circuito inferior da economia as únicas oportunidades tanto de emprego quanto de acesso à alimentação. Historicamente, o mesmo aconteceu em São Paulo, dando-se maior ênfase aos migrantes nordestinos das classes populares, que sem instrução encontraram no comércio ambulante uma das poucas opções de geração de renda para a subsistência6.

Em Bogotá, tem-se trabalhado muito para a realocação e legalização dos espaços públicos de atuação do comércio de rua. A partir de um cadastro na prefeitura, busca-se

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designar os espaços aptos para este tipo de atividade: daí a escolha de pontos perto das estações de transporte e em regiões de recuperação urbana (IPE, 2012).

No que corresponde a São Paulo, a permanência de comerciantes de rua (os chamados camelôs7) é regularizada por meio de um cadastro chamado TPUs (Termos de Permissão de Uso) em lugares específicos da cidade. Pagam-se taxas em razão das permissões, de forma que seus endereços residencial e comercial são conhecidos pela administração. Contudo, muitos sem permissão atuam na clandestinidade em ambas as metrópoles.

Assim, o que se vê em ambas as cidades é a manifestação de uma problemática que não pode ser abordada sob uma estreita visão individualista, pelos efeitos não só da ocupação do solo enquanto mercadoria, senão também pela visualização de sua função social ao gerar emprego e renda. Seguindo esta abordagem, conclui-se que a extinção de ambulantes significaria aumentar as cifras de desemprego (TRIBUNAL DE JUSTICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012) e de insegurança alimentar.

Daí que, ao se discutir a permissão do comércio nas ruas, a venda de alimentos se apresenta como um capítulo em separado. Diferentes dos bens duráveis (não perecíveis), os alimentos são veículos de nutrientes e também de microrganismos patógenos, ou seja, não só é o intercâmbio de produtos por dinheiro.

Entendendo que o comércio de alimento na rua implica desde a preparação das refeições no local da venda até a comercialização e o consumo propriamente dito, precisam-se reforçar nos regulamentos públicos de permissão destas atividades quais as infraestruturas básicas que garantam condições higiênico-sanitárias que protejam tanto comerciantes quanto consumidores da contaminação causada pelo mau manuseio dos alimentos.

Calculou-se que para o ano de 1995 aproximadamente entre 25 a 30% do gasto em alimentos na América Latina e no Caribe eram destinados a produtos comercializados de forma ambulante (COSTARICA & MORON, 1996) nas ruas do circuito inferior...

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