Direito à Alimenta ção e Segurança Alimentar /nutricional: Interfaces Sociopolíticas

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas147-159

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Introdução

Alimentar-se é um ato que projeta mais que sobrevivência, é uma permissão a uma vida saudável e ativa, dentro dos padrões culturais de cada país, com qualidade que propicie nutrição e prazer.

(MANIGLIA, 2009, p. 123)

O pensamento econômico neoliberal, no âmbito da configuração de Estados na contemporanei-dade, tem inspirado políticas públicas pautadas nos direitos sociais. Tal movimento recebe influência de uma complexa rede de elementos, objetivos e subjetivos, dentre eles, o sentimento de solidariedade nacional para com demandas de sobrevivência das pessoas e comunidades que, de tão empobrecidas, são reduzidas à condição de famintos e miseráveis.

Revisitando a história brasileira, evidencia-se que os direitos sociais emergem em períodos de hipertrofia do executivo em relação aos demais poderes da República, com a centralidade da (toda poderosa) administração governamental aos olhos da grande

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massa da população. Nessa perspectiva, a mobilização política dirige-se, principalmente, para a ação direta com o governo, desconsiderando a mediação da representação em favor da leitura messiânica do Estado, posto seu reconhecimento como agente capaz de solver as necessidades e interesses de todos, particularmente os mínimos sociais (CHAUI, 1995; CARVALHO, 2011; YAZBEK, 2012).

A contar da década de 1990, o núcleo central das políticas sociais brasileiras tem sido os programas de caráter compensatório e seletivo, focalizados nos pobres entre os mais pobres (no sentido econômico do termo) e, por isso, excluídos no mercado, vivendo em situações-limite em matéria de sobrevivência física. Tem-se no país, portanto, o legado da subordinação da questão social à lógica econômica, favorecendo uma preocupante despolitização da discussão sobre a produção da pobreza. Nesses termos, esvazia-se o debate social, haja vista a circunscrição do sistema de proteção social à letra da lei (YAZBEK, 2012).

Contudo, como alerta Burlandy (2004), os menos pobres dentre os pobres constituem os segmentos sociais que, em termos relativos, historicamente mais se apropriam dos serviços e benefícios prestados no bojo de programas sociais, favorecendo assim a reprodução ao invés da compensação das desigualdades sociais.

Por sua vez, o direito (e a garantia) fundamental à alimentação, em sentido substancial, como demanda de proteção social, está relacionado à relevância do bem jurídico tutelado: a vida. Pretensão assumida nessa área sensível da existência do homem em coletividade, notadamente em matéria de segurança no âmbito da nutrição, se justifica, se não enquanto questão social, como dever político baseado na "dignidade da pessoa humana"; vale dizer, um princípio fundamental da República Federativa do Brasil na condição de Estado Democrático de Direito, consoante a Constituição Federal (art 1º, inc. III).

Na Carta Magna, os direitos sociais situam-se na esfera dos direito fundamentais que, uma vez investidos de uma lógica da justiça distributiva, ganham efetiva força jurídica, e não somente moral, simbólica ou política (RODRIGUEZ, 2007). Adicionalmente, o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inc. II) confere ainda mais força à exigibilidade jurídica dessa categoria específica de direitos.

É notável a evolução legislativa no Brasil no trato do direito à alimentação com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Contudo, foi inicialmente na forma da Lei n. 11.346/2006, de caráter nacional, que a alimentação adequada foi positivada como direito fundamental no país, inerente à aludida dignidade sendo, ao mesmo tempo, indispensável à realização dos direitos constitucionais. Nesse espaço se afirma que o poder público tem o dever de adotar políticas e ações de promoção e garantia da segurança alimentar/nutricional.

A edição da Emenda Constitucional n. 64/2010 consignou o termo alimentação na lista dos direitos sociais, conforme propósito perseguido por movimentos sociais em parceria com agentes situados em diferentes esferas de poder. Tal reconhecimento do constituinte derivado remete de pronto a uma reflexão sobre os limites e possibilidades do Estado para com a obrigação de fazer acontecer políticas sociais consentâneas com a almejada condição de segurança alimentar/nutricional, tendo em vista a concretude do direito fundamental à alimentação.

Percorrendo o texto da Constituição de 1988, sem muito esforço hermenêutico, resta inequívoca a evidência de que o direito fundamental social à alimentação decorre do direito à vida e vincula-se fortemente ao direito à saúde (art. 196) e ao direito à sadia qualidade de vida (art. 225), que, por sua vez, circunscrevem fatores relacionados à condição de segurança alimentar/nutricional (NUNES, 2008).

Na fronteira que justapõe a natureza social comum ao direito fundamental à alimentação e à condição humana de segurança alimentar/nutricional, esse capítulo se investe no objetivo de discutir interfaces sociopolíticas da alimentação no âmbito de sua configuração no universo jurídico. Para tanto, os autores assumem a hermenêutica como atitude crítica e interpretativa.

Uma atitude hermenêutica impõe à reflexividade do próprio ato de interpretar, obrigando à consideração do quanto e como o sentido no qual se investe a crítica é devedor e credor daquilo que se pretende ver criticado. Para esse movimento do pensamento faz-se necessário assumir, no plano da reflexão (em sua contextualização histórica), de onde se origina e para onde se destina o pensar/agir humano (AYRES, 1994).

1. Configuração do estado democrático para como imperativo dos direitos humanos sociais

Os direitos humanos são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais acionáveis, exigíveis e

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demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão.

(PIOVESAN, 2007, p. 26)

O constitucionalismo, fenômeno histórico multidimensional (social, político, jurídico, ideológico etc.) voltado a estabelecer uma nova ordem jurídica constitucional, originou-se por contraposição ao absolutismo, pretendendo a jurisdicização do liberalismo, de modo a garantir liberdades civis e políticas da pessoa em face do Estado. Por outro lado, no afã de assegurar uma economia de livre mercado, sem limites de expansão, os constitucionalistas de então, membros da burguesia emergente, reivindicavam a segurança jurídica negada pelo regime absolutista (KELSEN, 2000).

Não por acaso, portanto, no século XVIII, a garantia do direito de propriedade servia de parâ-metro e de limite para a identificação dos direitos fundamentais. Na época, havia pouca tolerância às pretensões conflitantes com tal direito, daí porque se argumentava que a exclusão dos não proprietários de terra do processo eleitoral (voto censitário) era uma forma de legitimar a democracia, haja vista a concepção de que aqueles com menor renda tenderiam a se corromper em busca de propriedade e outros bens materiais, viciando desse modo as eleições livres (BRANCO, 2002).

No segmento de um gradativo processo de evolução do constitucionalismo, os princípios e regras constitucionais, com raízes na Declaração dos Direitos Humanos de 1948, passaram a ser conclamados como obrigação ética superior. Para tanto, ao longo da história, há inúmeros registros de gradual adequação e coerência do conteúdo das constituições com as carências e necessidades de cada povo.

Dessa forma e conteúdo, o que antes era uma mera carta política escrita em linguagem jurídica, artificialmente construída, com fraca eficácia jurídica e social, passou a ser reconhecida e afirmada como um autêntico dever jurídico na direção de ordens sociais democráticas e justas, valorando o indivíduo como sujeito de direitos: um cidadão (DALLARI, 2010).

Nessa acepção de Estado hodierno, a administração pública traz para si a responsabilidade de realizar o bem comum e de satisfazer as necessidades materiais de sua população, valorando a dignidade da pessoa humana (sustentáculo da tese de limitação do arbítrio e do poder do Estado). Constrói-se então um ordenamento jurídico constitucional em harmonia com propósitos democráticos e sociais, pactuados em tratados e acordos internacionais de direitos humanos. Tudo isso em um ambiente econômico no qual grandes corporações transnacionais criam impasses e, não raro, impedem a realização do bem comum ao determinar funções do Estado a reboque do modelo econômico neoliberal (MANIGLIA, 2009; PENTEADO FILHO, 2006).

Àquela altura, verifica-se ainda que, no Estado Liberal, a solidariedade social deixa o campo da moral para ocupar a ordem jurídica, agora como uma espécie de dever para com o próximo. Todavia, tornar esse dever uma obrigação jurídica elimina a moral que deve existir como essência da coesão social (SOUTO MAIOR, 2007).

Todavia, a aludida proteção do Estado a certas pessoas, no sentido da assistência aos mais necessitados em suas carências e necessidades, parecia, na perspectiva dos então (1948 e anos seguintes) detentores do poder econômico, romper com a igualdade dos próprios cidadãos perante a lei, interferindo, inclusive, na livre competição. Além disso, a ajuda do Estado também foi apontada, pelos mesmos agentes hegemônicos, como uma forma de restringir a liberdade individual do beneficiado, comprometendo assim sua condição de eleitor independente (CARVALHO, 2011).

Na verdade, foi, sobretudo, a partir da Primeira Guerra Mundial que se fortaleceu a cidadania enquanto discurso social, de modo que, daí em diante, todas as constituições contêm dispositivos...

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