Direito à Alimenta ção: Conceito, Nature za Jurídica, Positiva ção, Políticas Públicas e Abordagem Internacional

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas105-113

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1. dignidade da pessoa humana: valor--fonte dos ordenamentos jurídicos modernos

O fim da Segunda Guerra Mundial, inegavelmente, representou um marco no Direito1, porque, a partir do resgate dos valores para os textos jurídicos, o reconhecimento da força normativa da Constituição, da normatividade dos princípios, da expansão da jurisdição constitucional e do desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional, foi possível, paulatinamente, a consagração ampla e irrestrita da dignidade da pessoa humana nos ordenamentos ocidentais.

Dessa forma, conforme Jorge Miranda2, o surgimento do Estado Social, já que, no período liberal, era apregoada a abstenção completa da atuação estatal na esfera das relações humanas3, e das constituições e dos textos internacionais que emergiram no pós-guerra, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, diante das barbáries ocorridas, demons-traram a necessidade de preocupação com a promoção da dignidade humana, a qual se consolidou como a fonte ética de onde brotam todos os direitos fundamentais e o valor-fonte das mais variadas ordens.

Nesse contexto, afirmamos, desde já, que o referido postulado se encontra primeiramente men-

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cionado em textos constitucionais pátrios em 1934, pois, sob a influência fortemente da Constituição de Weimar de 1919, estabelece um título referente à ordem econômica e social, que tem por fim assegurar a existência digna do homem4.

Entretanto, foi somente, no cenário constitucional hodierno, que a dignidade humana foi elevada à categoria de fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF)5. Há, ainda, menção, no art. 170, caput, CF, que o objetivo da ordem econômica é, justamente, a garantia de uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, muito semelhante ao previsto no discurso de 1934 e o art. 226, § 7º, ao tratar do planejamento familiar, informa que este é fundado na dignidade6.

A partir desses breves comentários, devemos, antes de adentrarmos ao cerne do presente trabalho, procurarmos delimitar o conteúdo desse conceito que, embora seja dotado de certa abstração, permite que, pelo estudo de suas dimensões7, possa haver uma maior compreensão de seu significado na ordem constitucional vigente. Trata-se, inegavelmente, de um conceito aberto, o qual se encontra permanentemente em construção8.

Segundo já adiantado acima, a dignidade humana constitui o núcleo vetor por onde irradiam todos os direitos fundamentais; sendo, portanto, "valor absoluto da sociedade, seu elemento axiológico essencial sem o qual o Estado perde sua própria razão de existir9". Não há um direito fundamental ou um direito humano à dignidade, porquanto essa é a fonte e o fundamento onde se assentam todos os direitos10.

Nessa esteia de pensamento, somos ontologicamente dignos; sendo, portanto, qualidade inerente a todo e qualquer ser humano, por isso irrenunciável e inalienável11. Já apregoava a Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art. 1º, que, por sermos dotados de razão e consciência, todos são igualmente livres, dignos e detentores dos mesmos direitos. Reforça, ainda, a solidariedade, característica também nata dos seres humanos, pois é imprescindível a convivência em sociedade, onde o indivíduo se realiza12, e será de extrema importância para o estudo do direito à alimentação.

A dignidade demanda, ainda, o reconhecimento do outro como ser ontologicamente digno, capaz de participar, em igualdade de condições como todos os demais membros de determinada sociedade, do projeto social vigente. Contempla-se, então, a dimensão comunitária ou social. A igualdade, por conseguinte, importa, segundo Edílson Pereira Nobre Júnior13, em a) em igualdade perante os poderes públicos, seja em decorrência da elaboração da lei, seja em sua aplicação e b) emerge a consideração da pessoa humana como conceito dotado de universalidade; sendo, portanto, inviável qualquer discriminação entre brasileiros natos e estrangeiros,

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salvo aquelas relacionadas ao exercício dos direitos políticos.

Como já adiantado, a dignidade está em permanente construção, por isso o seu significado deve ser compreendido de acordo com o momento histórico em que está inserido. Trata-se da dimensão histórico-cultural.

Finalmente, em relação à dimensão autonô-mica e prestacional, precisamos, desde já, reforçar que tanto é necessário que o Estado e a comunidade política garantam a autodeterminação de seus indivíduos quanto ocorra a efetiva proteção dessa digni-dade, principalmente, para aqueles que tenham essa capacidade diminuída, como nos casos de demência.

Assim, na lição de Luísa Cristina Pinto e Netto14: a dignidade da pessoa humana exige atuações estatais positivas, prestacionais, além das clássicas abstenções impostas pelos direitos de liberdade; em outras palavras, a dignidade humana não se satisfaz com os direitos de liberdade, exige a previsão e efetivação de direitos sociais que garantam as condições materiais de vida digna e de desenvolvimento da personalidade.

Nessa seara de pensamento, o estudo dessa dimensão está extremamente relacionado com a consagração do direito à alimentação, uma vez que, como uma decorrência direta do direito à vida15, quando o indivíduo não possui condições fáticas, como, por exemplo, financeiras, para arcar com uma alimentação adequada, compete ao Estado, sobretudo, a garantia desse direito.

Entretanto, não podemos nos esquecer, segundo ressalta Wambert Di Lorenzo16, de que a questão social tem a sua base em uma antropologia individualista, a qual culminou na crise do Estado Social, porquanto a "solidariedade tem dois aspectos, sendo virtude moral e princípio social. Quer dizer, é tarefa exclusiva da sociedade da qual o Estado é mero instrumento e, não, protagonista".

Dessa forma, os direitos sociais, em sua grande maioria, compreendidos como "obrigações de prestações positivas cuja satisfação não consiste numa ‘omissão’, um non facere, mas numa ‘acção’, um face-re17", não está adstrita a sua concretização a cargo somente dos poderes públicas, mas toda a sociedade possui o dever de concorrer para essa efetivação18.

A título de corroboração, o art. 194, CF afirma que a seguridade social, a qual compreende os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social, compreende um conjunto de ações integrada tanto dos poderes públicos quanto da comunidade política pátria.

Com essas considerações a respeito da digni-dade humana, seguiremos, então, para o escopo primordial de nosso trabalho.

2. Conceito e natureza jurídica do direito à alimentação

O discurso constitucional de 1988 adota, essencialmente, um constitucionalismo social19, em que há uma verdadeira preocupação constante com a promoção da justiça social e as questões atinentes à concretização dos direitos sociais a todos os membros da comunidade política. Evidencia-se esse modelo logo com a consagração como fundamento da nossa República a livre iniciativa, atrelada aos valores sociais do trabalho (art. 1º, IV, da CF).

Então, o Estado Social emerge, justamente, no contexto de fracasso do liberalismo, em que é imprescindível a atuação estatal para regulamentar, notadamente, o mercado, uma vez que os pressupostos do laissez-faire não mais poderiam subsistir, diante da premente necessidade de garantia da justiça social, "o que pode ser identificado com o princípio da socialidade, destinado a reger a atividade estatal, aí incluída a intervenção econômica dirigista e planejadora20".

Nesse contexto, a pobreza, que tem como uma de suas causas a fome, um problema de mag

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nitude mundial, causa a morte, todos os anos, de aproximadamente dezoito milhões de seres humanos, sendo que esse índice engloba dez milhões de crianças21.

Quanto à fome, expressão biológica de males sociológicos e que se encontra extremamente ligada às distorções econômicas - subdesenvolvimento22 - é responsável, no Brasil pela existência de 11,7 milhões de pessoas subnutridas, entre os anos de 2003 e 200523, data mais recente pesquisada.

Dessa forma, antes de adentrarmos propriamente nas legislações pertinentes ao assunto, a fim de perquirirmos o conceito e a natureza do direito à alimentação, precisamos destacar que já no Código Civil de 1916, como uma decorrência do próprio direito à existência, consoante antecipado mais acima, era previsto um capítulo referente aos alimentos.

Hodiernamente, subtítulo III, do título II, concernente ao direito patrimonial, do direito de família, trata desse assunto. Conforme Carlos Roberto Gonçalves24: o vocábulo "alimentos" tem, todavia, conotação muito mais ampla do que na linguagem comum, não se limitando ao necessário para o sustento de uma pessoa. Nele se compreende não só a obrigação de prestá-los, como também o conteúdo da obrigação a ser prestada. A aludida expressão tem, no campo do direito, uma acepção técnica de larga abrangência, compreendendo não só o indispensável ao sustento, como também o necessário à manutenção da condição social e moral do alimentando.

Nesse diapasão, alimento, segundo Fernando Netto25, possui tanto um significado vulgar, já que se relaciona com tudo aquilo que determinada pessoa ingere tendo em vista o seu sustento, quanto uma acepção científica que deve abranger, ainda, os nutrientes capazes de preencher papéis biológicos específicos, como por exemplo, fornecer energia, material plástico para os tecidos, bem como o direito à nutrição líquida e à água potável.

Com essa definição apresentada, já é possível destacar que, como corolário imediato do direito à vida, a alimentação saudável não pode ser dissociada do contexto dos direitos sociais, porque se relaciona, igualmente, com a necessidade de...

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