Algumas razões doutrinárias para se discordar da recente (e da também da antiga) jurisprudência do supremo tribunal federal desfavorável à competência da justiça do trabalho em matéria de trabalho prestado a ente de direito público

AutorAna Cláudia Nascimento Gomes
CargoProcuradora do Trabalho aprovada em 1º Lugar Geral (em Provas e em Provas e Títulos) no XI Concurso para o MPT
Páginas13-46

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Introdução

O presente artigo visa apresentar algumas razões doutrinárias para se discordar, com a devida venia, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) desfavorável à competência material da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar ações em que comparece como parte entidade de direito público, quando em causa matéria atinente ao trabalho humano prestado em seu benefício (art. 114, inciso I, da Constituição da República — CR/1988 c/c Emenda Constitucional — EC n. 45/2004).

Com efeito, existem argumentos de ordem processual e de ordem material que, s. m.j., apontam para solução diversa daquela adotada pelo Excelso Pretório na matéria em debate; aliás, o que é bastante comum na Ciência Jurídica, diante de seu inegável caráter dialético.

Assim, se na esfera do Poder Judiciário, o STF é efetivamente o órgão detentor da "última palavra" em matéria de interpretação da CR/1988 (autoridade esta que é refletida em suas decisões, designadamente naquelas

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proferidas em casos concretos1) e, constitucionalmente, o guardião dessa Lex Fundamentalis; no âmbito do exercício pleno e responsável da liberdade de expressão intelectual e científica, esperamos que o presente texto possa ter o efeito benéfico de ser uma "primeira palavra", a qual se sujeitará ao frutífero contraditório jurídico e acadêmico (e é o que exatamente almejamos movimentar).

1. Um breve histórico da jurisprudência do STF decorrente de sua antiga e recente interpretação do art 114 Da CR/1988

Segundo a redação dada pela EC n. 45/2004 ao art. 114, inciso I, da CR/1988, "Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".

Ao interpretar esse novo art. 114, inciso I, da CR/1988, o STF afastou (novamente) da competência da Justiça do Trabalho os servidores públicos, com regime estatutário e publicístico de trabalho. Trata-se da decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3.395-MC, cuja liminar deferida pelo então Ministro Nelson Jobim, em 27.1.2005, fora referendada pelo Plenário do STF, em 5.4.2006.

A ementa do acórdão da ADI n. 3.395-MC registra, verbis:

"EMENTA. Inconstitucionalidade. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o poder público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC n. 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114, I, da Constituição da República não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico--estatutária." — grifos nossos2.

Nos seus fundamentos, o Excelso Pretório recordara (e também reavivara) expressamente o seu anterior entendimento, assentado na ADI n. 492-1 (1992), o qual declarou a inconstitucionalidade material das alíenas de e do art. 240 da Lei n. 8.112/1990 (na redação originária da lei). De

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acordo com essas alíneas, seria assegurado ao servidor público (federal) o direito de "negociação coletiva" e o direito de "ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho, nos termos da Constituição Federal".

Todavia, a decisão da ADI n. 492-1 firmou entendimento pela impossibilidade de negociação coletiva no âmbito do regime jurídico do servidor público, "por ser estatutário e não contratual"3, bem como de não competir à Justiça do Trabalho o julgamento das lides que envolvessem os servidores estatutários. Segundo o Relator Ministro Carlos Velloso: "trabalhador e servidor público, pois, têm conceitos próprios, conceitos diferentes: trabalhador é, de regra, quem trabalha para empregador privado, inclusive os que prestam serviço a empresas públicas, sociedades mistas e entidades estatais que explorem atividade econômica (CF, art. 173, § 1e). Trabalhador é, de regra, o que mantém relação de emprego, é o empregado, o que tem empregador, e empregadoré, em princípio, o ente privado. (...) Sob o ponto de vista legal, portanto, trabalhador é o 'prestador de serviços tutelado', de cujo conceito excluem-se os servidores públicos civis e militares sujeitos a regime jurídico próprio."4

Entretanto, nesse julgado paradigmático, não se fez uma análise ex professo do que seja "relação de trabalho", até porque a disposição anterior do art. 114 da CR/1988 apenas recorria a essa figura de forma subsidiária5.

De todo modo, a liminar deferida na ADI n. 3.395-MC suspendeu "toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CF, na redação da EC n. 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a "apreciação... de causas que... sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de carácter jurídico-administrativo". A decisão proferida na referida ADI, naturalmente, vincula todos os órgãos dos Poderes Executivo e Judiciário.

Dessa forma, registre-se, o STF utilizara, na interpretação do novo art. 114, inciso I, da CR/1988, a sua jurisprudência que se formara sob a égide da antiga redação desse dispositivo, o que certamente reduz a intenção ampliativa manifesta do Poder Constituinte Derivado. Data venia, não nos parece a melhor técnica de hermenêutica constitucional; em especial, de forma a respeitar a legitimidade democrática direta desse poder.

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Posteriormente, em Reclamações Constitucionais nas quais a autoridade e eficácia geral da liminar da ADI n. 3.395-MC restou questionada, o STF acabou por ampliar o âmbito da exceção dessa decisão (frise-se: "causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária”), abarcando outros casos para além daqueles que envolvessem os servidores públicos stricto sensu (v. g. n. 5.381 -4-AM e n. 4.762-8-PR6). Relembre-se que as Reclamações Constitucionais têm como causa a existência de casos concretos nos quais a aplicação de uma decisão vinculatória do STF tenha relevo para o deslinde do feito7.

Assim, para além dos "servidores públicos formalizados" (servidores públicos cujo vínculo jurídico é regido basicamente pelo Direito Administrativo, normalmente no exercício de cargo de provimento efetivo e após aprovação em concurso público8), o STF também decidiu que as demandas que envolvessem as contratações temporárias de "pessoas"9 pelo Poder Público (art. 37, inciso IX, da CR/1988) não estariam albergadas pela competência da Justiça do Trabalho do art. 114, inciso I. E, dessa forma, mesmo quando fora alegado incidenter tantum nessas ações, o desvirtuamento do denominado "contrato por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público", em decorrência da frustração da regra democrática de aprovação prévia em concurso público. Isso porque, de acordo com a Ministra Cármen Lúcia, "apenas a Justiça Comum é dado se manifestar sobre as consequências da nulidade de um ato administrativo, não a Justiça do Trabalho" e ainda "é da competência exclusiva desta o exame de questões relativas a vínculo jurídico--administrativo"10.

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A consequência da jurisprudência em comento do STF foi, no âmbito da Justiça do Trabalho, o recente cancelamento pelo Tribunal Superior do Trabalho de sua Orientação Jurisprudencial n. 205 da Seção de Dissídios Individuais 1, em 23.4.200911. Os Tribunais Trabalhistas ordinários também já manifestam estar agora alinhados à nova linha jurisprudencial12.

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Por derradeiro, não podemos deixar de mencionar a decisão liminar do STF nos autos da ADI n. 2.135-413, com efeitos ex nunc, a qual suspendeu a eficácia do art. 39, caput, na redação dada pela EC n. 19/1998 em razão de vício de forma no processo legislativo. Afinal, apesar dessa decisão não ter relação imediata com o dispositivo constitucional que fixa a competência da Justiça do Trabalho, tem, como veremos, interesse no assunto em pauta neste texto.

Com efeito, em decorrência do julgamento da ADI n. 492-1, após 1992, o art. 39, caput, da CR/1988 passou a ser lido somente num único sentido: de que o "regime jurídico único" da Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional era de natureza unilateral, legal e estatutário, regulado exclusivamente pelo Direito Administrativo, "afastando a...

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