Algumas ideias para a reconstrução interpretativa do Direito do Trabalho contemporâneo

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas367-376

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1. Introdução

A postura do Estado capitalista – compelido a aceitar como legais e legítimas as organizações sindicais – sempre esteve vinculada à capacidade de mobilização dos trabalhadores. Por isso mesmo que a edificação de um Direito do Trabalho efetivo e eficaz permite a consolidação e a afirmação de uma sociedade verdadeiramente democrática.

No Brasil, a partir da promulgação da Constituição da República de 1988 foram estabelecidos paradigmas democráticos que, decerto, percebiam-se incompatíveis com os modelos liberais até então consolidados no país. Não obstante, grande parte da doutrina e jurisprudência verteram e vertem um discurso – de cunho neoliberal – desalinhado dos objetivos constitucionais-trabalhistas alI consagrados, desprezando o arcabouço teleológico da Constituição da República de 1988 e fomentando a manutenção de uma crise jurídico-institucional que, agora, transmuta-se em crise do próprio Direito do Trabalho.

Esse descaminho interpretativo, além de auxiliar na manutenção da crise, também dificulta a construção de uma solução jurídica em oposição às falácias propagandeadas pelo atual governo brasileiro que, a pretexto da crise político-econômica, conseguiu concluir, sem qualquer legitimidade popular, seu projeto neoliberal de reforma trabalhista – Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017 e Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017.

Esse contexto atual, em que os propósitos constitucionais e democráticos do Direto do Trabalho são desvirtuados, acaba possibilitando uma interpretação míope da Constituição à luz de uma legislação infraconstitucional distorcida. Exige-se, assim, que a ramo trabalhista seja repensado a partir das premissas consolidadas pelo Estado Democrático de Direito.

O objetivo aqui aventado é, portanto, o de iniciar o desenvolvimento de uma argumentação de remodelagem interpretativa pautada, essencialmente, na função central do Direito do Trabalho, que lhe entrega um potencial de flexibilidade – mutação constitucional – e possibilita, em última analise, readaptá-lo dentro da fundamentalidade que lhe foi constitucionalmente assegurada. Em suma, busca-se elaborar uma hermenêutica constitucional-trabalhista que permita uma readequação interpretativa do ramo trabalhista dentro dos objetivos traçados na Constituição de 1988.

2. O estado democrático de direito e as bases para uma remodelagem hermenêutica contemporânea

A hermenêutica3 jurídica pode ser assimilada como a sistematização de procedimentos direcionados a compreender o direito e a determinar seu alcance4. É a ciência que estabelece técnicas interpretativas para a apreensão da norma.

Os sentidos que a hermenêutica busca apreender são, em síntese, o dizer, o explicar e o traduzir5. A hermenêutica mostra-se como condição formadora da visão de mundo, visão que permite a compreensão e o estabelecimento de acordos ou consensos.

A hermenêutica jurídica e a hermenêutica constitucional complementam-se. A compreensão das transformações vistas por meio da filosofia implicou o reconhecimento da existência de um constitucionalismo segundo o qual toda norma deve ser aplicada à luz da Constituição.

Essa é a direção dada pela hermenêutica constitucional, que vincula não só o aplicador da norma, mas o seu intérprete e o próprio legislador. A noção da filtragem constitucional torna-se a referência basilar da interpretação do texto normativo. É por isso que “toda hermenêutica (jurídica) só pode ser por definição Hermenêutica Constitucional (ainda que haja algumas diferenças entre as normas infraconstitucionais e as normas constitucionais que não podem ser olvidadas)”.6

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A Constituição, apesar de possuir supremacia sobre as demais normas, não deixa de ser um ato jurídico – que traduz a vontade do Estado e da sociedade. Ela não se revela como um documento neutro, pois adquire significado não só por sua previsão normativa em si, mas em virtude do sentido do ato por ela incorporado.7

Deve-se perceber, portanto, não apenas o texto constitucional, mas seu contexto, considerando o modelo de Estado que se pretende construir e a lógica inerente ao sistema norma-tivo que se pretende interpretar. Essa abertura contextual faz com que a Constituição se manifeste precipuamente por meio de princípios.8

Na verdade, dadas as especificidades das normas constitucionais, quatro são as linhas gerais para a compreensão de sua hermenêutica própria: a Constituição encontra-se em posição hierarquicamente privilegiada; as normas constitucionais possuem uma construção sofisticada, pois envolvem regras jurídicas e princípios jurídicos; a estrutura constitucional é peculiar, pois engloba ordens, proibições, organização do Estado e normas programáticas que apontam a direção da vontade do legislador; a Constituição possui um caráter político, vez que os princípios nela contidos direcionam o exegeta para a realização da vontade política do legislador constituinte.9

Ainda é possível incluir nesse rol a presença da Constituição na dinâmica social, fazendo do cidadão comum um intérprete em condição de igualdade com os demais intérpretes, especialmente a partir da concepção de Estado Democrático de Direito. Para que a Constituição se efetive, é necessária a participação dos cidadãos, envolvidos no movimento de inter-pretação e aplicação das normas. A sociedade, que se apresenta como titular do poder constituinte10, deve se envolver no processo hermenêutico, a começar por questionar o monopólio estatal de criação normativa.11

Além da abertura contextual que marca a interpretação da Constituição, merece destaque o fato de a compreensão do texto constitucional ser influenciada por valores específicos, inerentes a uma realidade social específica. A Constituição é instrumento de integração jurídica, política e social que não pode ser analisado estaticamente. Daí a importância de uma adequada pré-compreensão do sujeito (horizonte do intérprete) para uma compreensão aprimorada da norma12 – e uma pré-compreensão equivocada pode distorcer a realidade e o sentido do texto.

Principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, o Direito sofreu mudanças significativas, e a cultura legicêntrica até então dominante perdeu espaço13. Fortaleceu-se a jurisdição constitucional, com a instituição de mecanismos de proteção aos direitos fundamentais, o que ensejou um processo de democratização e respeito aos direitos humanos.

O aparato estatal reformou-se com a incorporação das reivindicações operárias e a intervenção do Estado nas relações de trabalho (logicamente, isso também era uma fórmula para a contenção do avanço do proletariado). Essa fase de regulação e proteção das relações laborais permitiu a criação de padrões mínimos, e o trabalho tornou-se o principal instrumento de inserção e ascensão social.

As interpretações também tendiam à expansão dos direitos, com abrangências conceituais da hipossuficiência, do viés objetivo da subordinação, com ampliação de tutelados, e do valor interpretativo pelo in dubio pro operário14. As ideias positivistas começaram a ser abandonadas, iniciando-se o desenvolvimento da lógica do pós-positivismo na busca da igualdade material.

O Poder Judiciário foi redescoberto. Os juízes passaram a assumir o papel de protagonistas na efetivação dos direitos e na perseguição dos valores insculpidos na sociedade e no texto constitucional. A transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito, em linhas gerais, foi marcada pela priorização da efetividade e da discursividade na construção do direito.

O Estado Democrático de Direito encontra-se fundado num tripé conceitual inovador: “pessoa humana, com sua dignidade; sociedade política, concebida como democrática e includente; sociedade civil, também concebida como democrática e includente.”15

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Na verdade, o Estado Democrático de Direito pode ser percebido como uma fórmula aprofundada do Welfare State e do Estado de Direito16, ou seja, se de um lado manteve em voga a questão social, de outro inseriu na equação a questão da igualdade.

Diante da incapacidade do Estado Social de oferecer condições concretas para a efetivação dos direitos sociais, o Estado Democrático de Direito permitiu o desenvolvimento de um conceito que une, à lógica do Estado de Direito, a legitimação democrática do poder:

Estado de direito e democracia correspondem a dois modos de ver a liberdade. No Estado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma “liberdade de defesa” ou de “distanciação” perante o Estado. É uma liberdade liberal que “curva” o poder. Ao Estado democrático estaria inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima o poder.17

Assim, o princípio da soberania popular seria a única forma de assegurar o direito à participação igualitária na formação da democracia. Desse modo, José Joaquim Gomes Canotilho conclui que esse princípio, efetivamente concretizado por meio de procedimentos juridicamente regulados, “serve de ‘charneira’ entre o ‘Estado de direito’ e o ‘Estado democrático’ possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático.”18

A transformação da realidade passa a ser o conteúdo do Estado Democrático de Direito, que busca materializar (efetiva concretização da igualdade) a dignidade do homem, que, por sua vez, é o instigador da atuação pública (propagação dos valores democráticos sobre os fundamentos que compõem a ordem jurídica do Estado)19. O paradigma da democracia, incrustrado no Estado de Direito, pretende, assim, não apenas fomentar a igualdade, mas firmar a norma como um verdadeiro instrumento de transformação social.

De acordo com Mauricio Godinho Delgado e Gabriela...

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