Algumas considerações sobre o trust e as perspectivas de sua assimilação no direito brasileiro

AutorNicole Mattar Haddad Terpins
Páginas165-198

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1. Introdução

Talvez o mais flexível mecanismo para planejamento sucessório e gestão profissional de recursos de terceiros de todos os tempos seja o trust. De acordo com Austin W. Scott, "os propósitos para os quais os trusts podem ser criados são tão ilimitados quanto à imaginação dos advogados" (tradução nossa).1

Embora a versatilidade e inegável utilidade dos trusts sejam características reconhecidas mundialmente, tanto por países de tradição romano-germânica como anglo-saxã, por ser instituto criado e desenvolvido sob os conceitos de common law, mais precisamente de uma de suas jurisdições originárias, a equity, somente recentemente esse vem sendo admitido e delineado nos sistemas de civil law, sendo, entretanto, ainda controversas as questões relativas à natureza e aplicação do instituto e suas variações em tais jurisdições.

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No Brasil, a prática tem conduzido à adoção de trusts constituídos em outras jurisdições, tendo em vista a inexistência, no direito posto, de quaisquer figuras passíveis de alcançar os mesmos resultados do instituto anglo-saxão. Tal prática ainda tem preferido à realização de negócios fiduciários inominados com propósitos similares, pois a estes a lei não confere força impo-sitiva.

Entretanto, a adoção de estruturas externas gera insegurança sob a luz do Direito pátrio, em especial diante as disposições constantes da Lei de Introdução ao Código Civil. Embora a Lei remeta o Judiciário à aplicação das regras do país onde as obrigações foram constituídas (art. 9o da LICC), não há dúvidas quanto à dificuldade de compreensão das normas externas, notadamente aquelas oriundas de common law, incerteza que se agrava na medida em que o objeto de discussão envolve bens situados no Brasil ou obrigações que aqui devam ser cumpridas, sujeitando os litigantes às normas (art. 8o da LICC) e aos tribunais locais (art. 12o da LICC), respectivamente.

Nestes termos, e em vista ao acelerado crescimento do mercado de capitais e à necessidade de profissionalização e perpetuação de grandes empresas familiares,2 te-mos por urgente a necessidade de introdução do trust, ou figuras similares, em nosso ordenamento jurídico, motivo pela qual dedicamos o presente trabalho à análise do instituto e perspectiva de sua assimilação no direito pátrio.

2. Aspectos históricos

Como bem acentuado por René Da-vid, o trust "explica-se unicamente pela história".3

De fato, a compreensão do trust depende da recuperação de eventos históricos, dos quais extraímos o processo de formação e evolução do instituto, bem como o porquê de a Inglaterra ser o seu berço de origem. Como veremos, o trust se legitima na dinâmica peculiar do Direito anglo-saxão, marcado pela dualidade de um sistema estruturado sobre duas diferentes jurisdições: a common law e a equity.

2. 1 A dualidade do sistema anglo-saxão: "common law " vs "equity"

É comum dizer-se que a grande diferença entre o sistema de civil law - adotado pelos países de origem romano-germânica - e o de common law, é o da prevalência, no primeiro, do Direito escrito, codificado, enquanto que o segundo seria baseado no precedente jurisprudencial.

Não há dúvidas de que a vinculação ao precedente jurisprudencial é um dos traços mais marcantes da common law. Todavia, sua atual configuração é resultado da unificação, em um só sistema, das Cortes de common law e de equity, que no passa-

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do atuaram como diferentes jurisdições no sistema anglo-saxão.4

No século XII o Rei Henrique I introduziu a ideia de que os delitos não eram um problema familiar ou regional, mas sim um problema de governo, uma violação da "paz do Rei".5 Movido por este ideal, e buscando, sobretudo, estabelecer o seu poder soberano sobre a Justiça, o Rei reuniu e enviou um número determinado de juízes para que viajassem pelo país, com o objetivo de julgar as questões do povo. A partir de então, se formaram as Cortes de common law, os tribunais que julgavam os conflitos e administravam a Justiça.

Tais tribunais passaram a desenvolver regras próprias, tanto de direito material, como de direito processual, criando normas procedimentais para apresentação das causas e seus julgamentos, atribuindo ao precedente efeito vinculante e de observância obrigatória no exercício da atividade jurisdicional. Não obstante os benefícios decorrentes da organização do sistema, sua rigidez passou a gerar problemas, visto à adoção de condutas padronizadas para ca-sos nem sempre idênticos, por vezes prejudicando a correta aplicação da justiça.

Por conseguinte, aqueles que se sentiam injustiçados pelos julgamentos dos tribunais de common law passaram a recorrer diretamente ao Rei, peticionando no sentido de obter uma nova decisão, baseada nos princípios de equidade (equity). Tais petições eram entregues, a mando do Rei, ao Chanceler (Chancellor), o Secretário--Chefe do Rei, a quem cabia julgá-las. A princípio, as decisões do Chanceler tinham apenas a forma de recomendação às partes envolvidas, para que respeitassem a decisão do tribunal ou deixassem de executá-las.

Com o tempo, e o número crescente de petições (que passaram a ser dirigidas diretamente ao Chanceler), instalou-se uma nova Corte, separada dos tribunais de common law, a Corte da Chancelaria (Court of Chancery).

A partir do século XV, a Corte da Chancelaria, normalmente encarregada a uma autoridade ligada à Igreja, passou a ser composta por juristas. Em 1529 Tho-mas More foi indicado Chanceler pelo Rei Henrique VIII.6 Tal mudança pode ser facilmente explicada, tendo em vista o rompimento entre o Rei Henrique VIII e a Igreja Católica.

Nesta época, as decisões da Corte de Chancelaria, sempre baseadas no princípio de equidade, deixaram de ser simples recomendações. Formalmente não se reformava as decisões emanadas dos tribunais de common law, mas o desrespeito às decisões do Chanceler podia resultar em diversas penalidades, tais como multas ou até mesmo prisão.

Em 1615, a superioridade dos julgamentos da Corte da Chancelaria sobre os tribunais de common law foi reconhecida e proclamada no âmbito do julgamento do Earl of Oxford's Case, do qual extraímos o seguinte texto: "A razão da existência da Chancelaria é que as ações do homem são

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tão diversas e infinitas que é impossível se fazer qualquer lei geral que possa ser apta a cobrir cada particular e não falhar em nenhuma circunstância. O ofício do Chanceler é corrigir as consciências dos homens nas fraudes, quebras de confiança, erros e opressões de qualquer natureza, e suavizar e amolecer as extremidades da Lei" (tradução livre).7

Os sistemas de common law e da equity conviveram por longo tempo, mais precisamente, até o final do século XIX, quando foram fundidos numa só jurisdição, através dos Judicature Acts, de 1873 e 1875. Tais atos criaram a Supreme Court of Judicature, com uma High Court repartida em divisões, uma das quais absorveu a Corte da Chancelaria, sob a designação de Chancery Division. Todavia, tais atos não promoveram a fusão de common law e da equity, apenas fundiram os tribunais, permitindo que cada Corte aplicasse, caso a caso, conforme apropriado, os princípios de common law ou da equity, preceito este preservado até os dias de hoje.

Como veremos adiante, o surgimento do trust está diretamente relacionado à divisão originária do sistema e à criação dos conceitos oriundos da common law e da equity, considerando-se, ademais, a especial atuação das Cortes da Chancelaria nos litígios relativos à propriedade.

2. 2 O surgimento do "trust"

A figura do trust passou a ser delineada na Inglaterra a partir da conquista nor-manda, em 1066, ocasião em que as terras da nobreza foram tomadas por Guilherme I, que as concentrou em sua propriedade e estabeleceu o sistema feudal. A concessão das terras foi formalizada pelo Rei através do regime dos tenures, caracterizado pelo desdobramento do domínio das terras entre domínio direto, pertencente ao senhor, e domínio útil, pertencente aos vassalos, denominados tenants. No princípio, o Rei era o único tenure, e os concessionários originais, seus vassalos. Os vassalos, por sua vez, passaram a constituir outros vassalos, tornando-se, portanto, tenures destes últimos, e o Rei, senhor de todos os senhores.

Os direitos sobre a terra, conferidos pelo Rei aos seus vassalos, e assim sucessivamente, eram chamados de interests, ou estates. Esta denominação se explica pela ideia original do Direito anglo-saxão, de que ninguém, senão o Rei, ou melhor, a Coroa (Crown), teria a propriedade plena sobre a terra. Assim sendo, todos os demais direitos sobre a mesma eram...

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