Algumas considerações sobre a medida provisória nº 449 e a inconstitucional "bancarização" da dívida ativa da união

AutorCarlos Alexandre Domingos Gonzales; Mario Augusto Carboni
CargoProcurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP; Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP
Páginas1-14

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1. Introdução

Com o intuito de racionalizar a cobrança da dívida ativa da União, o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória nº 449, publicada no diário oficial da União, do dia 3 de dezembro de 2008, a qual alterou a legislação tributária relativa a parcelamentos de débitos tributários.12

Conquanto referida Medida Provisória trate de outros assuntos deveras polêmicos, tais como a remissão de dívidas de até R$ 10 mil vencidas há mais de cinco anos, o objetivo do presente estudo será restrito à denominada "bancarização" da dívida ativa da União, inovações prevista no artigo 55, que transfere para instituições financeiras os atos de cobrança amigáveis de tais créditos. Reza o referido artigo, verbis:

Art.55.Os órgãos responsáveis pela cobrança da Dívida Ativa da União poderão utilizar serviços de instituições financeiras públicas para a realização de atos que viabilizem a satisfação amigável de créditos inscritos.

§ 1º Nos termos convencionados com as instituições financeiras, os órgãos responsáveis pela cobrança da Dívida Ativa:

I - orientarão a instituição financeira sobre a legislação tributária aplicável ao tributo objeto de satisfação amigável;

II - delimitarão os atos de cobrança amigável a serem realizados pela instituição financeira;

III - indicarão as remissões e anistias, expressamente previstas em lei, aplicáveis ao tributo objeto de satisfação amigável;

IV - fixarão prazo que a instituição financeira terá para obter êxito na satisfação amigável do crédito inscrito, antes do ajuizamento da ação e execução fiscal, quando for o caso; e

V - fixarão os mecanismos e parâmetros de remuneração por resultado. Page 2

§ 2º Para os fins deste artigo, é dispensável a licitação, desde que a instituição financeira pública possua notória competência na atividade de recuperação de créditos não pagos.

§ 3º Ato conjunto do advogado-geral da união e do ministro de estado da fazenda:

I - fixará a remuneração por resultado devida à instituição financeira; e

II - determinará os créditos que podem ser objeto do disposto no caput deste artigo, inclusive estabelecendo alçadas de valor.

Percebe-se, pois, que doravante os órgãos responsáveis pela inscrição e cobrança da dívida ativa federal poderão celebrar acordos com instituições financeiras públicas, a fim de viabilizar a satisfação amigável de créditos inscritos.

Feitas tais observações preliminares, cumpre indagar se seria possível, após a inscrição em dívida ativa, a transferência, para instituições financeiras, dos atos de cobrança amigáveis de tais créditos?

Demonstrar-se-á a impossibilidade, em face da violação à Constituição Federal e à Lei Complementar 73/93, de se atribuir a instituições financeiras, ainda que públicas, o desempenho de atividades tipicamente estatais, que somente poderiam ser exercidas por agentes públicos, pertencentes a carreiras típicas de estado.

De início, registre-se que não é de hoje a intenção de se terceirizar a cobrança da dívida ativa da União. Conforme observa Paulo de Barros Carvalho3:

Em abril de 1990 foi editada a medida provisória nº 178 que autorizou o Poder Executivo a ceder, a título oneroso e mediante licitação, créditos inscritos como Dívida Ativa da União. Esgotado o prazo do parágrafo único do artigo 62 da Constituição Federal, não foi convertida em lei, perdendo eficácia

Mais recentemente, a Resolução nº 33/2006, do Senado Federal permitiu a cessão da dívida ativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios para instituições financeiras. Importante ressaltar que, relativamente a essa resolução, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3786 (relator Min. Carlos Aires Brito), movida pela Associação Nacional dos Procuradores de Estado, mas ainda pendente de julgamento.

Alega-se, como argumento para justificar a terceirização da dívida ativa, a ineficiência dos órgãos encarregados da sua cobrança, que na sua maioria carecem de servidores e estrutura para o desempenho dessa relevante função.

Como pano de fundo, há também o interesse declarado de instituições financeiras privadas, nacionais e estrangeiras, que vêem na terceirização da Dívida Ativa federal, estadual e municipal, uma inesgotável fonte de incremento de suas - já vultosas - receitas. Page 3

2. Das funções do estado moderno

Segundo Regis de Castro Andrade4, as funções desempenhadas pelo Estado moderno podem ser classificadas em três grandes grupos: a) funções de Estado stricto sensu; b) funções econômicas e c) funções sociais.

A doutrina é unânime em afirmar que as funções stricto sensu são intransferíveis, logo, exclusivas e permanentes do Estado. Já as funções econômicas são parcialmente intransferíveis. Por derradeiro, as funções sociais são exercidas tanto pelo Estado, quanto pelo setor privado.

Com efeito, o Programa Nacional de Desestatização, iniciado na metade da década de 90, incentivou um programa de privatizações no setor público, sobretudo naquelas funções passiveis de serem exercidas pela iniciativa privada, trazendo como principal bandeira a necessidade de redução dos custos estatais.

Assim, a partir das Emendas Constitucionais nº 5, 6, 7, 8 e 9, todas de 1995, a iniciativa privada passou a agir nas áreas que, até então, eram de atuação exclusiva do Estado. Tal fenômeno se verificou nos serviços públicos de telefonia, energia elétrica, petróleo, gás, conservação de estradas etc.

Todavia, ultimamente, nota-se uma tentativa de transferir para o setor privado também aquelas atividades fins do Estado (funções Estatais stricto sensu), entre as quais se encontram aquelas denominadas tipicamente estatais.

Salvo melhor juízo, a Medida Provisória nº 449, ora em comento, confirma a tendência acima mencionada, ainda que de forma subliminar, transferindo (ad referendum do Congresso Nacional) à iniciativa privada atividades tipicamente estatais, no caso, a cobrança da dívida ativa da União.

3. Carreiras típicas de estado

Registre-se que as denominadas carreiras típicas de estado seriam aquelas carreiras públicas imprescindíveis ao funcionamento do Estado e para as quais não há um paralelo na iniciativa privada.

A Constituição Federal, em seu artigo 3º, consigna os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, quais sejam: constituir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras formas de discriminação.

Pois bem, para atingir tais objetivos a que se propõe, o Estado deve atuar através Page 4 de seus agentes públicos, os quais para se desincumbirem de seus encargos recebem da lei prerrogativas não extensíveis aos demais cidadãos.

Não é por outro motivo que tais carreiras, consideradas típicas de estado, devem adotar o regime estatutário, com vistas a dar aos seus membros garantias no exercício de seus cargos, contra influências políticas. Por conseqüência, fica vedada adoção de regime jurídico diferenciado para servidores de uma mesma carreira ou categoria.

Por essa razão, impõe-se que as carreiras típicas de Estado sejam precisamente identificáveis, ou seja, que seus membros não possam ser confundidos com demais servidores (empregados públicos ou particulares em colaboração com o poder público), exercentes de atividades não típicas.

A primeira norma a elencar as atividades típicas de Estado foi a Lei nº 6.185/74, estabelecendo em seu art. 2º como tais, aquelas compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Procuradoria da Fazenda Nacional, Controle Interno e Ministério Público.

Posteriormente, já na vigência da Constituição Federal de 1988, a Lei nº 7.995/90, no seu artigo 1º, inciso I, consagrou o seguinte rol de carreiras e categorias admitidas como típicas de Estado a serem tratadas de forma isonômica e já à época sujeitas ao regime estatutário, a saber:

São fixados, nas Tabelas do Anexo I e IX desta Lei, os vencimentos ou gratificações:

I - dos integrantes das carreiras ou categorias funcionais Auditoria do Tesouro Nacional, Finanças e Controle, Orçamento, Procurador da Fazenda Nacional, Assistentes Jurídicos, Procuradores Autárquicos, Procuradores e Advogados de Ofício do Tribunal Marítimo, Polícia Federal, Polícia Civil do DF, Diplomata do Serviço Exterior e Gestor Governamental.

Sem prejuízo de leis ou atos normativos definindo ora umas, ora outras as chamadas funções típicas de estado, o certo é que a própria Constituição Federal, ao organizar os Poderes da República, exigiu a instituição de determinadas carreiras essênciais ao funcionamento do Estado. Senão, vejamos:

Reza o artigo 21, inciso I da Constituição Federal, competir a União, exclusivamente, manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. Tal atividade, por ser tipicamente estatal, somente poderá ser exercida pela União, através de órgão específico - no caso, o Ministério das Relações Exteriores -, e por meio de agentes públicos, componentes de carreiras específicas (Diplomatas e Oficiais de Chancelaria).

Do mesmo modo, compete à União, de forma exclusiva, organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (artigo 21, XXIV), atividade tipicamente estatal que será exercida Page 5 por agentes públicos, pertencentes às carreiras de Fiscais do Trabalho e demais Agentes da Inspeção do...

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