Alcance e limites dos acordos de acionistas: a teoria da vontade frente àindisponibilidade e cogência da legislação organicista brasileira em matéria de sociedades anónimas

AutorAlexandre Saddy Chade
Páginas108-136

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Apresentação

O objetivo do presente trabalho é, a partir de casos práticos, discorrer sobre a natureza dos Acordos de Acionistas, conforme qualificada a partir da legislação nacional.

Isto porque, a partir desta qualificação jurídica, e somente com ela, será possível criticar os acórdãos apresentados, definindo-se com maior clareza e precisão os limites legais da manifestação da vontade dos acionistas relativamente à administração da Companhia.

Afinal, sobre o que pode ou não versar o Acordo de Acionistas? Até que ponto a soberania da Assembleia Geral, onde operam-se os efeitos dos Acordos, está ameaçada e relativizada?

Juristas da mais alta qualidade já se debruçaram sobre este tema. Portanto, não pode ser objetivo deste trabalho inovar na matéria, mas ao resumir o posicionamento da doutrina autorizada, pretende-se lançar algumas questões sobre a deficiência prática do sistema jurídico societário, conforme positivado e interpretado pela maioria dos autores.

Não é mais possível, e isto tem sido extremamente prejudicial às empresas e à economia nacional, que ainda nos dias atuais paire sobre nossas cabeças a lâmina da incerteza e da imprecisão em uma matéria tão básica como é a do Acordo de Acionistas. Incerteza esta decorrente, com certeza, da completa dissociação existente entre a regulamentação positivada, e a realidade empresarial. Não raras vezes nossas

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cortes, pouco afetas às peculiaridades societárias, desconsideram a letra da lei, ou por falta de conhecimento, ou por uma coerência íntima decorrente de uma lógica perfeitamente aceitável.

É o que veremos a seguir.

Parte I - Caso "polienka S A." - a soberania do acordo de acionistas

O caso a seguir ementado foi retirado da Revista de Direito Mercantil (RDM) n. 96, pp. 97 e ss. Em anexo a íntegra do acórdão, juntamente com comentários do ilustre jurista Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa.

No nosso entender, tanto a decisão judicial como o parecer que a segue vêm eivadas de incompreensão, senão ilegalidade, demonstrando mais uma vez um caso em que a lógica do mundo real conflita com a lógica do sistema jurídico nacional.

Basicamente, o caso versa a validade de Acordo de Acionistas celebrado para condicionar a forma de preenchimento de casos de administração de sociedade anónima fechada. O referido Acordo dava aos Acionistas a faculdade de nomear os dire-tores da Cia. diretamente, sujeitando o Conselho de Administração à sua decisão e, assim, usurpando um dever deste conselho que é justamente a eleição da diretoria.

Contrariamente à posição dominante na doutrina, o acórdão e o parecer de Haroldo Malheiros são unânimes na soberania absoluta do Acordo sobre os demais órgãos sociais, sujeitando estes àquele, segundo os seguintes termos (vide Anexo I - Caso Polienka S.A.):

"Sociedade Anónima - Companhia fechada - Eleição de Diretoria - Derrogação das normas contidas em acordo de acionistas para preenchimento de cargos de administração - Inadmissibilidade - Pacto elaborado na forma da lei, quando da constituição da sociedade - Ratificação quando da modificação da Lei de S.A. sendo respeitado pelos acionistas.

"Ementa oficial: Sendo a empresa, companhia fechada, é perfeitamente válido acordo de acionistas que indique a forma como serão preenchidos os cargos de administração, desde que tenha sido elaborado quando de sua constituição e arquivado na sede da empresa com a publicidade do ato.

"Assim sendo, o acordo de acionistas pactuado entre as partes, na forma prevista em lei, quando da formação da sociedade, ratificado quando da modificação da lei das sociedades anónimas, não há direito líquido e certo a ser amparado consistente em derrogar normas contidas no acordo para eleição da diretoria da empresa.

"Acórdão: Vistos, relatados (...)

"Trata-se de ação cautelar inominada, objetivando a condução e manutenção do autor Dov Orni, no cargo de Diretor Administrativo Financeiro da Polienka S.A., em respeito ao acordo de acionistas vigente (...)

"(...) apelam as vencidas alegando que... o grupo majoritário pode se opor à eleição de pessoa a quem falte qualidades profissionais ou a que tenham interesses contra a companhia; o autor é desprovido de qualidades para exercer o cargo, não estando os membros do Conselho de Administração obrigados a respeitar a decisão (do Acordo de Acionistas).

"E o relatório.

"No mérito, conforme restou assente, no MS 159.915-1/5, desta 6- C, ao examinar a questão controvertida, com trânsito em julgado:

"'Efetivãmente, sendo a empresa Polienka S/A companhia fechada, é perfeitamente válido acordo de acionistas que indique a forma como serão preenchidos os cargos de administração, desde que tenha sido elaborado quando de sua constituição e arquivado na sede da empresa com a publicidade do ato.

"'Na esteira do ensinamento doutrinário de Modesto Carvalhosa as companhias fechadas são aquelas que obtém recursos de capital mediante subscrição de ações pe-

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los próprios acionistas ou por um grupo restrito de pessoas, mediante o exercício do direito de preferência dos acionistas ou de contrato de participação acionária, celebrado com terceiros subscritores, previamente conhecidos (que) podem tutelar seus interesses no próprio âmbito contratual, dispensada a tutela pública'(...)

"Em resumo: tendo o acordo de acionistas pactuado pelas partes na forma prevista em lei, quando da formação da sociedade, ratificado quando da modificação da lei das sociedades anónimas, sendo respeitado pelos acionistas, não ha direito líquido e certo a ser amparado consistente em derrogar as normas contidas no acordo para eleição da diretoria da empresa. (...)

"O Acordo de Acionistas deve, pois, ser efe ti vãmente cumprido. (...)

"Por outro lado, não há que se ignorar o fato de que o Conselho de Administração da Polienka S/A não é uma entidade autónoma, possuindo forças próprias para ignorar o acordo de acionistas, especificamente em razão da própria natureza que lastreia a Companhia e circunstâncias que envolvem a empresa e seus próprios acionistas. Em consequência, o Conselho de Administração da empresa recorrida não possui o direito autónomo oponível aos direitos dos sócios minoritários com força para vulnerar o acordo de acionistas. Dito Conselho não é mesmo parte da relação jurídica material que liga os acionistas convenientes e, por esta razão não poderia ser parte na presente relação jurídica processual. (...)

"Isto posto, nega-se provimento ao recurso.

"O julgamento teve a participação dos Des. Costa Manso (pres. sem voto), Almeida Ribeiro, e Reis Kuntz, com votos vencedores. São Paulo, 3 de fevereiro de 1994, Melo Colombi - relator."

Na sequência, aRevista de Direito Mercantil traz parecer da lavra do eminente jurista Haroldo Malheiros D. Verçosa que, aderindo por completo os termos, justificativa e votos vencedores do acórdão colacionado, assim manifesta sua integral concordância: "... O grupo majoritário, esteja ou não representado pelo Conselho de Administração não pode invadir a esfera interna das decisões dos participantes do acordo de acionistas, muito menos para decidir quem tem ou quem não tem condições para o preenchimento de cargos da diretoria.

"O Conselho de Administração é órgão da sociedade e não tem poderes para representá-la em juízo, o que compete somente à diretoria (art. 144).

"Dessa maneira, o acórdão ora comentado aplicou corretamente a legislação pertinente...".

Em suma, e o chegando ao quanto realmente importa ao presente estudo: O acórdão, com apoio de Haroldo Malheiros, decreta a mais absoluta prevalência da vontade das partes, enquanto acionistas, sobre a vontade da sociedade controlada, prevalecendo o acordo de acionistas sobre eventual competência deliberativa do Conselho de Administração, o qual deve sujeitar-se ao acordo.

Conforme veremos mais adiante, esta conclusão, apesar de lógica e razoável, não se coaduna com o quanto disposto em nossa legislação societária vigente.

Antes, porém, analisemos outro caso, que aparentemente segue as mesmas conclusões do acórdão supramencionado, indo ainda mais além, reconhecendo a supremacia do Acordo não só no âmbito da sociedade controlada pelos signatários daquele, como prevalecendo e vinculando as sociedades por esta controladas, em primeiro, segundo e terceiro graus, no que será denominado efeito cascata.

Parte II - Caso "família ometto" - o efeito "cascata" do acordo de acionistas

Imagine-se a seguinte situação: Terceira geração de empresa familiar. Primos dis-

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putando o poder a partir de uma holding, que controla outra holding...

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