Desenvolvimento e ajuste do mercado de trabalho no Brasil sob a ordem liberal

AutorDenis Maracci Gimenez
Páginas78-110

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“São quase vinte anos de baixo crescimento, de evolução lenta ou mesmo estagnação dos rendimentos das camadas mais pobres e de bloqueio dos canais que permitiam ou prometiam a ascensão social. Tais tendências, já observadas na década de 1980, foram acentuadas pelas políticas propostas por Collor e depois empreendidas pelo professor Cardoso, a conselho das classes proprietárias locais e de seus aliados estrangeiros. Há quem se irrite com a menção do Consenso de Washington como origem e destino das políticas liberais para a América Latina. A irritação é sintoma da miopia interessada. Basta olhar em volta e observar que as estratégias de ‘integração’ à economia mundial e de ‘modernização´ das relações entre Estado e mercado foram iguais em todos os países e produziram os mesmos resultados sociais catastróficos”.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo1

Há quem afirme o contrário; mas, são inúmeros os sinais de que a sociedade brasileira não viveu nos últimos vinte e cinco anos um período de afluência, de desenvolvimento econômico, progresso material e de melhoria inaudita das condições sociais. Certamente, a gênese da crise, que remonta aos anos 70, não pode ser atribuída às políticas liberais, mas, sem dúvida, o avanço do projeto liberal no Brasil a partir dos anos 90 mostrou-se pródigo em criar e ampliar formas e movimentos diversos de regressão econô-mica e social, agravando a questão social no país e o distanciando das economias mais dinâmicas e desenvolvidas do mundo. Não há característica tão marcante nesse período de hegemonia liberal como o lento crescimento da economia brasileira. A década de 1990 foi a pior década da história republicana brasileira em termos de crescimento da economia, comparável somente ao ritmo de crescimento dos anos 2000.

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Os resultados do período impressionam quando comparados às taxas históricas de crescimento da economia brasileira ao longo do século XX. Mas, a comparação entre a chamada “década perdida” de 1980 e o desempenho da economia brasileira entre 1990 e 2005 também é chocante. Em geral, anos de baixo crescimento, entrecortados por alguns momentos em que a economia apresentou um nível de atividade maior, como no início do Plano Real, em 2000, sob os efeitos da desvalorização cambial e no período recente, sob as benesses da extraordinária expansão do comércio internacional. Momentos em regra abortados por políticas de ajustamento recessivas, caracterizando uma economia em permanente stop and go e que produziu uma taxa de crescimento abaixo daquela dos anos 80, com média anual de 2,2% entre 1990 e 2006.

O baixo crescimento caracteriza um quadro de estagnação relativa sob várias formas. A despeito da insuficiência do progresso material visa-à-vis as necessidades do país e de seu povo, o período de hegemonia liberal vem afastando o Brasil da posição outrora ocupada, como uma das mais importantes e dinâmicas economias periféricas. O desempenho da economia brasileira sob as políticas liberais exclui o Brasil do grupo de países em desenvolvimento mais dinâmicos e o coloca muito abaixo da taxa média de crescimento do conjunto dos países em desenvolvimento e como um dos retardatários na própria América Latina2.

Sob a ordem liberal, reformas atrás de reformas não trouxeram a redenção da década perdida. Ao contrário, o baixo crescimento consolidou-se como norma, em patamares

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inferiores aos dos anos 80. Muitos apontam a recorrência de choques externos como fator determinante do fenômeno ao longo dos anos 90, outros acreditam que o problema decorre do fato de o Brasil não ter feito a lição de casa, implementando reformas radicais. Não obstante, mesmo com a ausência de choques externos nos últimos anos, farto crédito internacional e o comércio mundial crescendo a taxas inauditas na história do capitalismo, o país reproduziu o padrão de crescimento dos anos 90, instável e com taxas médias muito baixas também no período recente.

Não por acaso, desde o Consenso de Washington, verifica-se uma sobreposição contínua das mesmas recomendações. Reformas de primeira geração, reformas de segunda geração, uma nova agenda de reformas, reformando as reformas, são títulos sempre presentes nas formulações do mainstream. Os resultados pífios são sempre justificados pela não realização ou a realização incompleta de reformas. O desdobramento disso é o constante alargamento da agenda reformista, que parte da área econômica e progressivamente engloba outros segmentos, como a área social e do trabalho, chegando ao paroxismo da ampliação das garantias jurídicas por meio de reformas do poder judiciário.

Nesse processo, a lógica de um ajustamento permanente se reproduz. O ajuste econômico nacional perpétuo às condições internacionais e a sua expressão maior, o baixo crescimento, força ajustamentos também contínuos na área social e no mundo do trabalho. Reforma da previdência, tributária, trabalhista, redução dos custos do trabalho, reforma constitucional, entre outros, são temas que crescentemente ganham peso no debate sobre a retomada do desenvolvimento. Retomada que nunca chega e que traz ao debate nacional outras áreas, temas e problemas, desviando o foco da política econômica, tratada como virtuosa.

O fato é que as reformas econômicas liberais não trouxeram de volta o dinamismo econômico prometido por seus defensores e necessário ao país. Muito ao contrário, na esteira da liberalização econômica, da abertura comercial e financeira, da sobrevalorização cambial, dos juros altos, do modelo de gestão das finanças públicas, consolidou-se um padrão de crescimento lento do produto, com perda de participação no comércio internacional, desindustrialização, quebra de cadeias produtivas, baixa taxa de investimento, incapacidade fiscal. Aos homens de boa vontade e atentos ao mundo concreto, não é possível aceitar a tese de que estamos vivendo um período inaudito de avanços sociais, sob uma ordem econômica como essa.

No que se refere especificamente ao mercado de trabalho sob a ordem liberal, contando com os efeitos cumulativos do lento crescimento econômico já experimentado nos anos 80, a estagnação relativa da economia brasileira a partir dos anos 90, sob condições dadas pela abertura indiscriminada da economia, câmbio valorizado, com seus desdobramentos mais hostis sobre o emprego e a renda nacional, se traduziu num quadro de franca desestruturação do mercado de trabalho. Alguns fenômenos são centrais para delimitarmos esse processo sob a ordem liberal: o lento e instável crescimento do produto, com abertura da economia e sobrevalorização cambial na maior parte do período, definiu o lento crescimento do emprego, com redução do emprego industrial e do emprego na

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grande empresa, expandindo o emprego nos serviços e pequenos negócios, com elevação das taxas de desemprego e queda dos rendimentos do trabalho3. Mesmo o período recente de expansão da economia, com seus reflexos positivos sobre o emprego e a renda, tem sido capaz apenas de recolocar parcialmente o mercado de trabalho nas péssimas condições do final do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e início do governo do presidente Lula4.

1. O mercado de trabalho brasileiro e a ruptura na “década perdida”

Nas condições econômicas dos anos 80, dadas pelo padrão de ajustamento econômico e da alternância entre momentos de recessão e crescimento, o país rompe com a trajetória de incorporação acelerada das massas via mercado de trabalho, própria do período de industrialização. Num plano geral, esse rompimento não se traduziu nos anos 80 num processo de desestruturação do mercado de trabalho, mas na sua incapacidade de prosseguir como a grande porta de entrada à incorporação social. Na verdade, mesmo com o baixo e instável crescimento e desajustes macroeconômicos de toda ordem, a ruptura assistida na década de 1980 — sempre lembrada como a “década perdida” — se caracteriza por um mercado de trabalho que passou a não incorporar tanto como nos anos 70.

Sob vários aspectos, o crescimento da ocupação nos anos 80 indica rupturas com o padrão anterior. Os setores mais dinâmicos na geração de oportunidades de trabalho foram, notadamente, o comércio, atividades sociais e administração pública, enquanto os setores mais duramente atingidos pela crise econômica foram a indústria de transformação, construção civil, transporte e comunicação, que reduziram suas respectivas participações no total das ocupações não-agrícolas. O caráter da ruptura do desempenho do mercado de trabalho nos anos 80 pode ser entendido quando observamos que, no conjunto da década, mesmo os setores que reduziram sua participação relativa na ocupação total ainda apresentaram crescimento do emprego, não havendo, assim, redução em termos absolutos do nível de emprego na indústria e na construção civil. Esse caráter se revela, também, pelo processo de diminuição do grau de formalização dos contratos de trabalho entre os não-agrícolas, pois, mesmo sem queda em termos absolutos, ocorreu redução da participação do emprego com carteira assinada (de 59,1% para 55,6%) e o aumento da participação do emprego sem carteira assinada, do trabalho por conta própria e dos empregadores. Sem dúvida alguma, para tal redução da participação do emprego com carteira foi decisivo o desempenho muito inferior da indústria e da construção civil em comparação à década anterior, já que em outros setores o emprego com carteira assinada cresceu relativamente rápido (atividades...

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