A aids no mundo do trabalho e a questão da discriminação: aspectos introdutórios do estudo da tutela jurídica ao empregado portador de HIV

AutorGilberto Carlos Maistro Junior
CargoAdvogado Mestre em Direito Professor nos programas de pós-graduação 'lato sensu' em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (Faculdade de Direito de S.B. do Campo, da Escola Paulista de Direito, da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, do Proordem ABC e da UNISAL - Lorena)
Páginas33-39

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1. Introdução

Traçar linhas gerais sobre a questão da Aids e os seus reflexos nas relações laborais, em especial no que tange aos direitos da personalidade dos empregados portadores de HIV ou acometidos da doença constitui o objetivo deste ensaio.

Para tanto, buscar-se-á pontuar as principais questões pertinentes ao status de doença estigmatizante, que marca a Aids, e a necessidade de combate à discriminação no mundo do trabalho, sofrida pelos empregados portadores de HIV.

Analisar-se-á a questão, outros-sim, embora de modo singelo e objetivo, sob o ponto de vista da realidade brasileira, para, então, da mesma forma, pontuar-se as iniciativas legislativas e a colaboração da jurisprudência pátria no combate a esse indesejado preconceito e a consequente, e não menos odiosa, discriminação que vitima os trabalhadores brasileiros, já fragilizados pela gravidade que marca o referido quadro de saúde, condenando-os, de modo não raro, à quase "morte social" - o que coloca em relevo a importância da questão aqui tratada.

2. A questão da aids como doença estigmatizante e a necessidade de combate à discriminação nas relações laborais

Na Grécia Antiga, "estigma" era a marca (sinal corporal) de desqualificação do cidadão, não raro lançada nos escravos, criminosos e traidores. Modernamente, a palavra continua utilizada, com adaptação de sentido, mas sem a perda da noção central. Estigmatizar significa "marcar negativamente" algo ou alguém. Exatamente nesse sentido, emprega-se a palavra quando se afirma que a Aids ainda é uma doença "estigmatizante"1, por comprometer a condição de aceitação social daquele por ela acometido -como se as agruras típicas da doença já não bastassem a essa pessoa.

Ocorre que, no âmbito social, ainda gera alterações de olhares e comportamentos a notícia de que alguém, presente no ambiente, é portador de HIV ou doente de Aids. Não raro, depara-se com a associação da condição dessas pessoas com as ideias de promiscuidade, desleixo, e até homossexualidade2, nesse último caso demonstrando o potencial multiplicador do pensamento preconceituoso e da conduta discriminatória.

No ambiente de trabalho, a situação não se mostra diferente. O Ministério da Saúde chegou a lançar

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banco de dados sobre violações de direitos e discriminação contra portadores de HIV, inclusive de modo a possibilitar que sejam relatados (ao ministério) tais fatos. Ex-dire-tor-adjunto do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, Carlos Passarelli afirmou, por ocasião do lançamento da referida iniciativa, que um dos tipos de discriminação mais comuns vividos por portadores de HIV ocorre no trabalho. Seja no processo de contratação, seja em demissões sem justa causa.

Consoante noticiado pela Fe-trace - Federação dos Trabalhadores, Empregados e Empregadas no Comércio e Serviços do Estado do Ceará, durante a Conferência Internacional sobre a Aids, ocorrida nos Estados Unidos da América, em Washington D.C, a diretora do Programa da OIT - Organização Internacional do Trabalho - sobre HIV/Aids no mundo do trabalho, fez um apelo em favor da maximização da participação do setor privado no combate à discriminação de portadores da doença no local de trabalho, através da implementação de políticas dirigidas para a redução do estigma e da discriminação, pela via do conhecimento da realidade da doença "além do local de trabalho", inclusive por meio de parcerias público-privada. Traz a notícia, ainda, as seguintes constatações:

"Apesar do progresso e modernidade, a discriminação com pessoas portadores do HIV ainda tem um nível con-sideravelmente alto que diversas vezes o impede ou limita seu acesso a um emprego, de acordo a um estudo realizado com o apoio da OIT.

Algumas das condutas discriminatórias contra portadores incluem o impedimento de ingressar no mercado de trabalho ou até obrigá-las a mudar o trabalho que realiza, o direito a promoção, acesso à educação e formação e o perigo de demissão a qualquer momento.

A OIT colabora com mais de 3 mil empresas em todo o mundo, oferecen-do assistência técnica para o desenvolvimento e a implementação de políticas e programas no local de trabalho e estabelece a não discriminação ou es-tigmatização de trabalhadores que portem o vírus HIV referente à procura de emprego, seja no acesso, ocupação ou permanência no emprego."3 (sic).

A relevância da questão é tamanha que não passou despercebida sequer pela própria ONU, que, em 29 de novembro de 2012, lançou a iniciativa denominada "Chegar a Zero no Trabalho", pela qual almeja a promoção de recomendações da OIT sobre HIV/Aids e diminuir para "zero" a discriminação nas relações laborais, pela via da promoção dos direitos humanos, segurança laboral e melhor acesso à prevenção e tratamento do vírus "dentro de uma perspectiva do trabalho"4. Os números referentes a trabalhadores acometidos de Aids são significativos. Segundo informa a ONU, no site voltado ao Brasil (ONUBR - Nações Unidas no Brasil), mais de 30 milhões de pessoas encontram-se em tal situação de saúde, mas com idade e condições para o trabalho. Porém, ainda enfrentam sérios problemas decorrentes da discriminação. Traz a ONU, em seu sítio na internet, a seguinte notícia, com relatos e dados importantes (de 30.11.2012):

“‘Hoje, devemos, todos juntos, governos, empregadores, organizações de trabalhadores, e outras partes interessadas, nos renovar para proteger aos direitos humanos das pessoas vivendo com HIV, para que possam desfrutar de um desempenho profissional produtivo e viver com dignidade', disse o Diretor-Geral da (OIT), Guy Ryder, no lançamento da campanha, em Genebra.

Segundo a OIT mais de 30 milhões de pessoas vivendo com HIV que estão em idade de trabalhar, ainda enfrentam um alto nível de discriminação. Jovens em idade produtiva representam 40% das novas infecções mundiais por AIDS a cada ano. 'O objetivo mais desafiador é o nível zero de discriminação', disse o Diretor do Escritório Executivo do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), o brasileiro Luiz Loures.

A Diretora-Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Chan, ressaltou a importância dos profissionais de saúde na resposta ao HIV. Segundo Chan, o primeiro passo para o bom tratamento do vírus é assegurar que médicos tenham acesso a ferramentas de combate efetivas.

Ano passado, 1,7 milhão de pessoas morreram de AIDS e 2,5 milhões foram infectadas, um número ainda grande. No entanto, o número de infecções foi inferior em 700 mil em relação a 10 anos atrás e 600 mil pessoas deixaram de morrer em relação a 2005. Grande parte desse progresso está relacionado com o acesso mundial aos medicamentos antirretrovirais."5 (sic)

Na Alemanha, desde 2012, existe a campanha "HIV no mundo do trabalho", com a participação de uma série de empresas - dentre as quais a Ford, a Ikea, a Deutsche Te-lekom e a rede hoteleira NH - que se comprometeram a "fazer mais" para garantir que trabalhadores com HIV possam ter uma vida trabalhista normal6.

3. O problema da discriminação do portador de HIV e do doente de Aids no Brasil

No Brasil, a realidade da discriminação sofrida pelo portador do HIV e pelo doente de Aids não é diferente do constatado alhures.

Estudo pioneiro levado a cabo por Mércia Santos da Cruz, doutora em economia pela Universidade Federal do Ceará e professora na Universidade Federal da Paraíba, e por José Raimundo de Araújo Carvalho Junior, Ph.D. em economia pela PennState University e professor do Departamento de Economia Aplicada da UFC, desenvolvido na subárea "Economia do Trabalho", havido a partir de dados atitudinais, verificou quais são os elementos determinantes da atitude

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discriminatória no mercado de trabalho contra os portadores do vírus HIV no Brasil.

O estudo evidenciou que o "nível" de instrução e renda familiar7 exibem-se como fatores relevantes para uma menor probabilidade de admitir-se a demissão de um indivíduo portador de HIV. Conse-quentemente, quanto mais elevada a condição socioeconômica, menores são os níveis de discriminação. Afirmam os autores do estudo que a referida constatação "reforça a tese de que a discriminação em relação aos portadores do vírus HIV no Brasil é do tipo estatística ou infor-macional". Porém, a constatação mais incômoda foi a de que existem evidências de que há discriminação no grupo específico formado por "empregadores" - embora, nesse resultado, não se tenha verificado uniformidade "para a amostra como um todo"8.

Cruz e Carvalho Junior também destacam que o acesso à informação sobre a doença é muito importante no combate à discriminação pois, quanto maior o conhecimento sobre as suas características, aumenta a discordância total em relação à dispensa. Destacam, ainda, que os indivíduos mais jovens são menos propensos a atitudes discriminatórias, e que o preconceito é relativamente menor no Sudeste do Brasil, em relação às demais regiões do país9.

4. O combate à discriminação em análise: iniciativas legislativas e jurisprudência

Não é de hoje que o legislador pátrio, sensível à questão dos portadores de HIV e doentes de Aids busca solucionar as principais agruras sociais que marcam a vida dessas pessoas.

Justamente na perseguição desse propósito, à guisa de exemplo, estendeu-se aos doentes de Aids uma série de benefícios, dentre os quais o auxílio-doença e a aposentadoria, independentemente de carência, para aqueles que tiverem a manifestação da doença após a filiação à previdência (bem como...

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