Caracterização dos serviços de atenção à dependência de álcool e outras drogas na região da Grande Florianópolis

AutorBianca Spohr - Carolina Leit&atilde - Daniela Ribeiro Schneider
Páginas220-236

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Introdução

O consumo* de substâncias2 psicoativas é um fenômeno civilizatório, ou seja, sempre existiu em todas as culturas humanas o uso de substâncias que alteram os estados de consciência (BUCHER, 1992; MASUR, 1986). No entanto, as características desse consumo modificaram-se significativamente nas últimas décadas, colocando em risco a vida de muitas pessoas, tornando-se mais um dos fatores estressantes a espelhar o sistema econômico contemporâneo e seu ciclo da sociedade de consumo (RIBEIRO & SEIBEL, 1997). O fenômeno do uso de drogas lícitas ou ilícitas e de sua dependência tem crescido significativamente nos últimos tempos,Page 221como reflexo das transformações nas condições sociais e culturais decorrentes do incremento da crise econômica global, com o conseqüente desemprego estrutural, o aumento da criminalidade e do controle de muitas zonas urbanas por grupos do crime organizado, a banalização da miséria. Tais alterações macrossociais desdobram-se em mudanças significativas no contexto sociológico, implicando na fragilização das relações familiares, por meio do gradual esvaziamento do projeto e do desejo de ser das pessoas, advindo da falta de perspectivas sociais e sociológicas.

Em Florianópolis, a situação não é diferente do resto do país e do mundo. A violência urbana tem crescido significativamente em nossa cidade, com o aumento vertiginoso dos casos de homicídios, nos últimos cinco anos, quase todos envolvidos com o tráfico de drogas. Isso explicita a relação perversa entre produção da miséria, violência e drogas, fazendo do consumo indevido de álcool e outras drogas um dos graves problemas a ser enfrentados pelas políticas públicas, bem como por ações sociais e pela produção de conhecimento e de intervenções científicas.

Esse contexto do incremento do uso e abuso de substâncias psicoativas leva, concomitantemente, ao aumento da procura por tratamentos especializados para a problemática da dependência (FORMIGONI, 2000). Segundo dados de pesquisa, somente 23% dos dependentes de drogas procuram serviços de tratamento específico para a problemática (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001), e muitos não os procuram por falta de recursos financeiros. Daí vem a importância de se proceder a uma verificação dos tipos de serviços de saúde oferecidos à população para tratamento dessa problemática, a fim de subsidiar a formulação de políticas públicas na área. Esse é o principal objetivo da presente pesquisa.

A população da Região da Grande Florianópolis, segundo os dados do Censo 2000 (IBGE, 2001) totaliza 803.151 pessoas, sendo que 342.315 estão no município sede. Desse total, em torno de 49% da população são homens (395.500) e 51% são mulheres (407.651). A população acima de dez (10) anos na região totaliza 665.451 pessoas.

Não foram localizadas pesquisas sobre uso de drogas que fossem específicas sobre a Região da Grande Florianópolis. Os dados de pesquisas epidemiológicas mais criteriosas de que dispomos são de caráter nacional. O I Levantamento domiciliar sobre uso de drogas no Brasil , realizado pelo CEBRID, em 2001 (CARLINI et al., 2002), coordenado pela Secretaria Nacional Antidrogas, que fez a pesquisa em 107 cidades brasileiras de mais de 200 mil habitantes, aponta que na Região Sul o uso na vida das drogas (que não álcool e tabaco) foi de 17,1%, um pouco menor do que no conjunto do Brasil (19,4 %). Já o uso na vida do álcool foi de 69,4% e a dependência do álcool é de 9,5% da população. O Sul apresenta o maior índice de consumo de maconha (8,4%), cocaína (3,6%) e crack (0,5%),Page 222com um número significativo de dependentes dessas drogas, sendo o de maconha o maior índice do país (1,6%). Dentre os que já receberam algum tratamento por causa do uso de álcool ou outras drogas estão 3,3% da população sulina, e dentre eles prevalecem os indivíduos de sexo masculino (5,3%) em relação ao feminino (1,5%).

A partir desses dados da Região Sul, podemos estimar alguns dados para a Grande Florianópolis, que permitem vislumbrar que a situação de uso na vida e de dependência de álcool e outras drogas são significativas na população. Dessa forma, tomando como parâmetro os índices acima descritos do CEBRID, tendo como referência a população acima de dez anos da microrregião estudada, fornecidos pelo IBGE, chegaríamos a um número estimado de 63 mil dependentes de álcool (9,5%) e 10 mil dependentes de maconha (1,6%) na Região da Grande Florianópolis, o que certamente representa uma demanda significativa para tratamento da problemática. Se tomarmos o dado do Ministério da Saúde (2001) de que somente 23% dos dependentes procuram tratamento, teremos um número estimado 14 mil dependentes, somente de álcool, em busca por tratamento.

No entanto, ao somar os números oferecidos pelos diversos serviços participantes da pesquisa em relação à capacidade de atendimento mensal (excluídos os grupos de ajuda mútua, que pelas suas características de anonimato não têm como precisar seus números) temos em torno de 700 atendimentos mensais, o que fica muito abaixo da estimativa dessa demanda. Dessa forma, os variados serviços de atendimento ao problema da drogadição existentes na Grande Florianópolis, sejam de caráter público ou privado, não têm como dar conta da demanda estimada. Sabe-se que esse exercício é uma tentativa de aproximação dos dados empíricos, pois deveriam ser realizadas pesquisas epidemiológicas específicas na região para podermos fazer afirmativas precisas e tirar conclusões. Mas esse exercício permite vislumbrar o tamanho da problemática a ser enfrentada.

Sabemos, outrossim, que um dos maiores problemas na atenção à drogadição é a questão da aderência dos dependentes ao tratamento. O número de evasões, de “recaídas” e de retorno de pacientes às instituições de tratamento é alto, geralmente acima de 50%, conforme dados nacionais (OLIVEIRA, 1997; MARQUES & FORMIGONI, 2001). Essa situação remete à questão da efetividade dos tratamentos que temos oferecido à população. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a situação de dependência de drogas é um dos mais sérios problemas de saúde pública no mundo, o que remete à carência de tratamentos psicossociais e farmacológicos que sejam realmente eficazes (WHO, 2004).

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Foi lançada em maio de 2002 a Resolução 101, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA e SENAD, 2002), que estabelece um regulamento técnico para disciplinar as exigências mínimas para os serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas, mais especificamente, no que diz respeito às chamadas Comunidades Terapêuticas, que tiveram dois anos para se adequar ao ali disposto. Além disso, acaba de ser promulgada a Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006 (PRESIDÊNCIA DA REPUBLICA, 2006), que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, assinalando em seu Título III, Capítulo I, artigo 19, que um dos princípios que regem as atividades de prevenção na área deve ser “a articulação entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e a rede de atenção a usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares”. Portanto, esse é um momento importante para se fazer uma avaliação dos serviços e auxiliá-los na busca pelo enquadramento nos parâmetros da legislação, visando à qualificação dos serviços prestados à população.

No Brasil, os serviços de saúde, de maneira geral, padecem pela falta de caracterizações mais precisas, bem como por critérios e processos de avaliação, tanto no que diz respeito à implantação de políticas de saúde, quanto no acompanhamento de programas e serviços, bem como na avaliação dos resultados obtidos nessa área (FORMIGONI, 2000). A inexistência ou a pouca utilização de processos de avaliação nos serviços de saúde nos coloca frente a uma questão crucial de controle social. O investimento de dinheiro público nos serviços de saúde, públicos e mesmo privados, não é pequeno. No entanto, não há como se ter controle do uso e dos resultados desse investimento, justamente porque não há avaliação de processos, nem de resultados. O efetivo controle dos custos do sistema de saúde é uma das prerrogativas do papel do Estado e da sociedade civil.

Nesse contexto, a necessidade de informação sobre o funcionamento e a eficácia do sistema de saúde é de vital importância e o processo de avaliação é indicado como a melhor solução (CONTANDRIOPOULOS et al., 1997). A Organização Mundial de Saúde indica a caracterização e avaliação como o melhor modo de utilização dos recursos disponíveis em termos de dinheiro, de pessoal e de material, e considera que elas representam a solução mais segura para o problema da melhora dos serviços existentes e, ao mesmo tempo, para obter recursos adicionais para desenvolver novos programas (WHO, 2003; GANDRA 1986). A avaliação deveria, na verdade, ser um mecanismo da gestão dos serviços, que produzisse parâmetros avaliativos e indicadores de qualidade que possibilitassem aferir resultados e impactos na alteração da qualidade de vida da população beneficiária, visando realimentar ações, repensar opções políticas e programáticas, o que levaria a outro patamar (FIDELIS & ESCOREL, 2001).

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É importante destacar que a presente caracterização dos serviços de atenção à dependência de álcool e outras drogas na Grande Florianópolis poderia ser um primeiro passo na direção de se estabelecer critérios e processos de avaliação dessas instituições de saúde nessa região.

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